» Doença
Joseli Lannes-Vieira
Laboratório de Biologia das Interações, Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz
E-mail: lannes@ioc.fiocruz.br
A tripanossomíase americana, posteriormente denominada doença de Chagas em homenagem ao seu descobridor o pesquisador brasileiro Carlos Chagas, é uma importante doença parasitária resultante da infecção pelo protozoário parasito hemoflagelado Trypanosoma cruzi, tendo insetos triatomíneos como vetores. As formas mais importantes de transmissão da doença de Chagas ainda são as vetoriais (seja via lesão resultante da picada, seja por mucosa ocular ou oral), contudo apresentam também importância epidemiológica a transmissão transfusional e congênita.
Na décade de 80 do século XX, diversos autores estimavam que a doença atingia cerca de 18-20 milhões de indivíduos nas áreas endêmicas da América Latina. Dados recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgados após encontro de especialistas na Argentina em 2005, indicavam a existência de 16-18 milhões de infectados pelo T. cruzi, contudo em recente publicação estima este número em 12-14 milhões de indivíduos na América Latina, sendo ainda encontrados indivíduos contaminados em países da Europa e América do Norte, na maioria das vezes resultante da migração de indivíduos infectados em busca de melhores condições de vida. Estes dados mostram a inexistência de inquérito epidemiológico recente e indicam, como apontado pela OMS, a necessidade ainda atual de conhecimento da prevalência e incidência da doença. De qualquer modo, os números indicam a importância social da doença de Chagas100 anos após sua descoberta.
No Brasil, é compulsória a notificação de casos agudos da doença de Chagas, segundo a Portaria 5 de 21 de fevereiro de 2006 da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde. Devido aos recentes surtos de infecção aguda pelo T. cruzi, principalmente infecção por via oral, após reunião de especialistas e cientistas em 2005 a Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde lançou o I Consenso Brasileiro em Doença de Chagas , foi revisto e atualizado em 2015 na forma do II Consenso Brasileiro em Doença de Chagas . Em 2011, a Sociedade Brasileira de Cardiologia lançou a I Diretriz Latino-Americana para Diagnóstico e Tratamento da Cardiopatia chagásica . Informações oficiais do Ministério da Saúde do Brasil sobre diversos aspectos da doença de Chagas podem ser obtidas no Portal da Saúde do Ministério da Saúde.
Ainda que iniciativas da OMS e de governos da América Latina tenham levado ao controle da transmissão vetorial da doença em diversas áreas endêmicas pelo seu principal vetor, o Triatoma infestans, a inexistência de vacina e de tratamento eficaz, principalmente para os pacientes com a forma crônica da doença, são ainda desafios a serem enfrentados. Um dos desafios atuais no tratamento de pacientes infectados pelo T. cruzi é a identificação de marcadores clínicos e laboratoriais indicadores de risco ou prognóstico para o desenvolvimento de arritmias, falha cardíaca e morte para um indivíduo chagásico.
O diagnóstico da infecção aguda, crônica ou congênita emprega métodos parasitológicos, sorológicos e moleculares. Após a infecção, a maioria dos indivíduos apresenta fase aguda assintomática. Anos, ou mesmo décadas, após a fase aguda da infecção ~40% dos pacientes desenvolvem formas sintomáticas da fase crônica da doença.
A patologia é principalmente caracterizada pela forma cardíaca, com cardiomiopatia dilatada associada com miocardite, fibrose e disfunção cardíaca. Cerca de 10% dos indivíduos infectados desenvolvem a forma gastro-intestinal que pode resultar em mega-cólon e/ou mega-esôfago, que são frequentemente associadas à forma cardíaca, constituindo a forma crônica mista, como recentemente revisto por Moncayo e Higuchi e colaboradores.
A reativação da doença de Chagas em portadores do vírus da imunodeficiência humana (HIV), pacientes transplantados ou com neoplasias tem sido descrita, incluindo a presença da forma nervosa. Nestes casos, o tratamento específico anti-parasito é efetivo no controle da parasitemia e na melhora clínica.
Modelos experimentais, ainda que restritos à reprodução de aspectos pontuais da doença de Chagas, permitem o estudo de alguns aspectos da patologia e da fisiopatogenia das fases aguda e crônica da infecção pelo T. cruzi.
Algumas hipóteses tentam explicar a patogenia dos danos teciduais que levam às disfunções dos órgãos, sendo proposto que estes sejam diretamente induzidos pelo parasito e/ou indiretamente por desregulação da resposta imune específica ao parasito, ainda que os fatores fisiopatogênicos que controlam o resultado final da infecção não estejam elucidados, como revisto por Higuchi e colaboradores, Dos Reis, Cunha-Neto e colaboradores e Kierszenbaum. Existem evidências de que a persistência do parasito nos tecidos associada a mecanismos homeostáticos mal-adaptados, como os processos oxitativos/anti-oxidativos e pró-inflamatórios/anti-inflamatórios, sejam críticos para a patogênese e a progressão da doença de Chagas, como revisto por Higuchi e colaboradores e Lannes-Vieira. A progressão de uma infecção, assim como o quadro clínico resultante, é dependente de uma complexa relação parasito-hospedeiro que envolve fatores ambientais e genéticos tanto do hospedeiro quanto do parasito. Neste contexto, estudos mais recentes também apontam a possibilidade de predisposição genética dos pacientes ao desenvolvimento das formas clinicas da fase crônica da doença de Chagas.