Atenção Integral ao Paciente Portador de Doença de Chagas
Uma Proposta para o Cuidar
Wilson de Oliveira Jr.*
A utopia está lá no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos, e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isto: para que eu não deixe de caminhar.
Eduardo Galeano
O modelo de crescimento econômico adotado no País, no século vinte, contribuiu sobremaneira para a migração rural-urbana de indivíduos portadores de doença de Chagas (DC), levando-os a procurar grandes centros em busca de melhores oportunidades de trabalho, resultando daí a chamada “urbanização” da doença. Estima-se que 70% desses pacientes residam na periferia das grandes cidades em condições tão precárias quanto àquelas encontradas na zona rural de origem 1. Atualmente, cerca de um milhão de pacientes portadores da doença vivem na periferia das cidades de São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, constituindo, assim, uma verdadeira endemia urbana. 2
Embora sejam inegáveis os avanços no controle da transmissão da doença de Chagas , especialmente nas ações voltadas ao combate vetorial e na garantia de segurança transfusional, ainda estima-se que existem cerca de três milhões de pacientes crônicos remanescentes. Desses, 30% apresentam ou irão apresentar comprometimento cardíaco, o que demanda a necessidade da criação de serviços estruturados para o seu acompanhamento. Apesar da enorme importância da cardiopatia chagásica crônica (CCC) em países endêmicos, as definições de conduta clínica referentes aos portadores dessa patologia são derivadas da transposição de conhecimentos adquiridos em estudos realizados em outras cardiopatias. Portanto, a criação dos serviços estruturados para atendimento ao paciente portador de CCC, além de impactar positivamente na assistência, possibilitará o estímulo ao ensino e à pesquisa, minimizando, dessa maneira, a carência ora existente.3,4
A DC é uma síndrome complexa, sobretudo quando evoluí com insuficiência cardíaca e/ou arritmias graves, com elevada morbimortalidade. Em se considerando a importância do impacto de fatores sociais, econômicos e culturais envolvidos na gênese e na evolução da doença, sua abordagem requer adoção de um modelo assistencial que transcenda o aspecto puramente biológico, procurando oferecer ao paciente uma assistência integral que leve em consideração o conjunto de determinantes biológicos, psicológicos e sociais. Essa iniciativa requer a formação de uma equipe multiprofissional, tecnicamente bem preparada e sintonizada com a ideologia do cuidar. A experiência tem demostrado que, diante dessas peculiaridades, um importante desafio é imposto para o sistema de saúde, uma vez que existem numerosas lacunas no manuseio dos pacientes, quando acompanhados em clínicas sem estrutura adequada.5
Uma estrutura adequada implica em espaço ambulatorial próprio, vinculado a um hospital ou com retaguarda hospitalar, com disponibilidade de métodos diagnósticos não-invasivos e invasivos, tratamento clínico e cirúrgico e de alternativas para implante de marcapasso e cardiodesfibrilador/CDI. Esse serviço tem como objetivo melhoria da adesão ao tratamento, diminuição da morbimortalidade e impacto positivo na qualidade de vida dos pacientes. 5
Ressalte-se que o cuidar do paciente com CCC implica um contexto de múltiplas, crescentes e complexas demandas assistenciais que justificam a criação de serviços estruturados a possibilitar um atendimento abrangente, devendo ser criado preferencialmente em hospitais de ensino.
1. Atribuições do Serviço Estruturado
1- Realizar o diagnóstico etiológico por meio de dados clínico-epidemiológicos e testes sorológicos (dois testes com metodologias diferentes).
2- Estadiar o comprometimento cardíaco que determinará a periodicidade do acompanhamento.
3- Estabelecer o plano terapêutico (etiológico e sintomatológico) e o prognóstico de acordo com o grau de comprometimento cardíaco.
4- Monitorar o paciente de maneira sistematica.
5- Identificar comprometimento digestivo associado e, quando presente, orientar ou encaminhar para serviço de referência em gastroenterologia.
6- Tratar as comorbidades identificadas ou encaminhar o paciente para interconsulta em serviço especializado.
7- Estimular a adesão ao tratamento farmacológico e não-farmacológico otimizando a relação custo/efetividade.
8- Propiciar ações educativas, ao paciente, familiares e cuidadores, sobre a doença, o autocontrole, objetivando a identificação precoce de sinais e sintomas de descompensação cardíaca.
9- Esclarecer sobre a impossibilidade de doar sangue, órgãos e tecidos.
10- Propiciar orientação nutricional.
11- Oferecer suporte psicológico ao paciente e seus familiares objetivando diminuir o estigma, o autopreconceito, os tabus e as crenças em relação às doenças.
12- Orientar sobre aspectos médico-trabalhistas e previdenciários, gestação, planejamento familiar, exercício físico e atividade sexual.
13- Esclarecer o paciente e seus familiares, quando indicados, sobre a necessidade de implante de marcapasso ou CDI, bem como de transplante cardíaco.
14- Esclarecer sobre a prevenção de fatores agravantes (álcool, tabagismo, drogas lícitas e ilícitas).
15- Capacitar e reciclar profissionais da saúde com enfoque específico às peculiaridades do paciente portador de CCC, estimulando o ensino e a pesquisa.
16- Identificar outros membros da família contaminados pelo T.cruzi e incorporá-los ao serviço para conduta terapêutica.
17- Estimular e apoiar a criação de associações de pacientes portadores de doença de Chagas visando melhor integração de seus participantes (pacientes e familiares), estabelecendo um canal de voz com a comunidade científica e política a respeito de suas reivindicações .5
2. Equipe multiprofissional
A multidisciplinaridade é, hoje, reconhecida como a melhor forma de assistência aos pacientes com doença crônica. Ao criar-se um serviço destinado e vocacionado ao atendimento a portadores de doença de Chagas, torna-se importante contemplar as peculiaridades e as múltiplas necessidades dessa população, procurando compreendê-las dentro de um contexto biopsicossocial, o que se pressupõe uma assistência mais eficiente e mais próxima de sua realidade.6,7,8,9 Nessa proposta de trabalho, cada componente da equipe tem o seu papel definido, devendo conhecer seus limites, suas possibilidades e suas responsabilidades, embora seja fundamental que todos interajam entre si. Cada um deles observa uma face da verdade do mesmo indivíduo. É necessário que essa equipe tenha conhecimento básico da CCC, assim como da rotina de sua condução, para que todos falem uma mesma linguagem. Dessa forma, busca-se evitar informações distorcidas, ou mesmo iatrogênicas. Diante da necessidade de interação de múltiplos saberes, o grande desafio é manter no ambiente da equipe um clima de cooperação, evitando sempre a competição predatória. 10,11,12
O serviço estruturado deve dispor idealmente dos seguintes profissionais: médico cardiologista, enfermeiro, psicólogo, nutricionista e assistente social, podendo ser ampliado de acordo com a adoção de novas terapêuticas, com a participação do educador físico, fisioterapeuta, farmacêutico, terapeuta ocupacional. Vale ressaltar que a dimensão da equipe deverá ser ajustada à realidade e às possibilidades de cada serviço, à demanda de pacientes e acima de tudo ao que se propõe. 5, 13
2.1. Médico Cardiologista.
Cabe ao médico receber o paciente referendado quer pela assistência primária, quer pelos serviços de hemoterapia, ou de outros setores do hospital. A partir de anamnese clínico-epidemiológica e da confirmação sorológica, o diagnóstico é estabelecido, e exames complementares são realizados. De acordo com o grau de comprometimento cardíaco, o plano terapêutico é traçado, devendo-se, paralelamente, identificar a presença de comorbidades , tratando-as ou encaminhando o paciente para interconsulta em serviço especializado. Importante ressaltar o estabelecimento de uma boa relação médico-paciente e seus familiares de forma empática. Sempre que poss ível, o paciente deve ser acompanhado pelo mesmo médico, visando fortalecer o vínculo e, consequentemente, a adesão ao tratamento. Além das atribuições assistenciais, cabe, ainda, ao médico a coordenação do serviço, o apoio e a interação entre os demais profissionais da equipe. 5,13
2.2 Enfermagem
O profissional de enfermagem desempenha um papel fundamental no seguimento de portadores de CCC, cabendo-lhe manter: contato frequente com o paciente desde o início do tratamento, monitorando sinais e sintomas que indiquem precocemente descompensação; controle do balanço hídrico; orientação aos pacientes e seus familiares; gerenciamento da interação entre os diversos profissionais da equipe; controle de interconsultas e alimentação do banco de dados.
A consulta da enfermagem, geralmente é consecutiva à do médico, momento em que são reforçadas as orientações farmacológicas e não-farmacológicas, assim como o fortalecimento do vínculo do paciente com a equipe. A enfermagem deve dispor também de um canal permanente de voz com os pacientes, por meio de linha telefônica específica “Disque CCC”, utilizado como instrumento para esclarecimento de dúvidas, orientação a respeito de tratamento, encaminhamento para emergências, quando necessário, além de busca ativa de pacientes evadidos, visitas domiciliares e contato telefônico permanente, especialmente após a alta hospitalar. O contato frequente possibilitará a detecção precoce da necessidade de intervenções terapêuticas adicionais. 5,9,13
2.3 Nutricionista
A atenção nutricional é de suma importância no seguimento a pacientes portadores de CCC. Cabe ao nutricionista estabelecer o diagnóstico do estado nutricional e, por meio da anamnese, conhecer a quantidade e a qualidade dos alimentos consumidos no cotidiano do paciente. É por meio dessa avaliação dietética que o nutricionista pode detectar preferências e| aversões alimentares, como também alergias e intolerâncias a determinados alimentos.
Um fator que deve estar presente na orientação nutricional e dietética é a prescrição dentro das possibilidades socioeconômicas, culturais e ambientais dos pacientes . Isso permite que o plano alimentar proposto seja factível, contribuindo à adesão do paciente e à reeducação alimentar. A composição dos alimentos deve ser esclarecida, especialmente a respeito do teor de sódio neles contido, sobretudo nos processados. Deve-se diferenciar, também, alimentos diet, daqueles ligth. A orientação alimentar deve ser planejada mediante avaliação bioquímica previamente solicitada na consulta médica. A depender dos resultados encontrados, pode ser necessária uma intervenção nutricional mais específica no que se refere às restrições e às liberações de alimentos. 5,9,13
2.4 Psicólogo
A abordagem dos aspectos psicoemocionais é um dos importantes pilares do modelo de assistência biopsicossocial. O impacto psicológico causado pela enfermidade, com a perda gradual da capacidade física, a maior dependência dos familiares – até mesmo para o autocuidado nos casos mais graves – o medo de morte iminente, internações frequentes, dentre outras, torna a presença do psicólogo imprescindível na equipe multiprofissional. Esses aspectos podem levar a uma considerável sobrecarga emocional podendo favorecer o surgimento de quadros de ansiedade e depressão, sendo mais um fator a contribuir para o agravamento da doença e favorecendo a não-adesão ao tratamento. Cabe ao psicólogo detectar os aspectos psicoemocionais que possam impactar negativamente na evolução da doença , assim como identificar dificuldades do relacionamento afetivo, sexual, familiar e social que possam aumentar o nível de estresse no paciente. Cabe, ainda, ao profissional a identificação de casos mais graves de comprometimento mental, realizando o devido encaminhamento para interconsulta psiquiátrica, especialmente visando a possível indicação de farmacoterapia. 5,9,13
2.5 Assistente Social
A raiz socioeconômica está fortemente envolvida na gênese e na evolução da doença de Chagas. Em se tratando de uma enfermidade negligenciada que atinge basicamente uma população excluída pela conjunção de doença e extrema pobreza, cabe ao assistente social identificar fatores que possam dificultar ainda mais a implementação do cuidado. Em sua avaliação são observados: condição sanitária de moradia, meio de locomoção utilizado, grau de escolaridade, disponibilidade de recurso financeiro para aquisição de medicamentos ou como consegui-lo através do Sistema Único de Saúde (SUS), situação laborativa ou previdenciária. Uma vez estratificada a condição socioeconômica do paciente, medidas são tomadas no sentido de minimizar o impacto das carências que possam estar dificultando a adesão ao tratamento. 5 ,9,13
2.6 Educador Físico
Ainda como perspectiva dentro dessa abordagem multidisciplinar e entendendo a importância da prática de exercício físico, sempre que possível há necessidade da inclusão do educador físico na equipe, objetivando o estímulo a um melhor condicionamento do paciente. A prática de exercício, com seus benefícios amplamente consolidados, visa propiciar a participação dos pacientes portadores de CCC em um programa de reabilitação cardiovascular. Tal iniciativa intenciona não só a restituição de uma condição clínica satisfatória, mas também pode ampliar a capacidade laborativa, com conseqüente melhora do estado psicoemocional. 5,9,13,14
2.7 Farmacêutico
O serviço de atenção ao portador de CCC deve ter o apoio de um serviço farmacêutico hospitalar, com o objetivo de orientar a equipe, os pacientes, seus cuidadores e familiares quanto diversos aspectos relacionados ao tratamento sintomático e etiológico. 15
3.Papel do Paciente
Na assistência integral, o paciente deixa de ser mero receptor de informações e passa a ter posição ativa no processo terapêutico, contribuindo, sobremaneira para uma melhor adesão ao tratamento. Cada paciente deve conhecer seu diagnóstico e tratamento, bem como sugeri-se que sempre tenha em mãos um sumário de seu diagnóstico e tratamento elucidativo e atualizado. Os pacientes devem ser orientados sobre qual serviço procurar em casos de urgência/ emergência. A organização de grupos de discussão permite o esclarecimento de dúvidas sobre a doença, auxiliando o paciente no enfrentamento às mudanças de estilo de vida necessárias ao seu tratamento. 5 ,9,13
4.Papel da Família
A família é o terceiro vértice do chamado triângulo terapêutico – médico, paciente e familiares – desempenhando papel ativo em todo o processo. O suporte familiar tem influência direta na adesão ao tratamento farmacológico e não-farmacológico. Por este motivo, os familiares devem receber as mesmas orientações do paciente. Por outro lado, aqueles que lidam diretamente com o paciente requerem também uma atenção especial da equipe, pois considerável sobrecarga emocional lhes é imposta. A participação ativa da família permite, ainda, compreender o modo como a doença repercute no seio familiar. Núcleos familiares estáveis, harmoniosos e solidários funcionam como fator estabilizador para o paciente. Por outro lado, famílias com evidente comprometimento em sua dinâmica podem funcionar como fator de desestabilização e, consequentemente, contribuir para descompensação da doença. 5 ,9,13,16
5. Educação e Saúde
A educação do paciente e seus familiares começa pela avaliação do seu conhecimento sobre a doença e o seu tratamento. É por meio de ações educativas periódicas que a equipe multidisciplinar pode esclarecer o paciente e seus familiares sobre aspectos relevantes que estão envolvidos na evolução da doença.
Atividades educativas individuais e/ou coletivas devem ser realizadas periodicamente, devendo-se focar em informações sobre o que é a doença, mecanismo de contágio, evolução, necessidade de avaliações periódicas mesmo naqueles indivíduos assintomáticos, importância do tratamento regular e impossibilidade de doação de sangue, órgãos ou tecidos. Essa estratégia permite melhorar o nível de compreensão e favorece uma melhor integração entre a equipe, paciente e seus familiares. Nesse processo, a linguagem utilizada deve ser clara e objetiva, evitando-se o uso excessivo de termos técnicos que só aumentam a distância entre equipe e paciente.
O processo educativo em grupo possibilita o crescimento de todos os envolvidos no ato de cuidar.16,17,18
6. Benefícios esperados de um serviço estruturado para acompanhamento a pacientes portadores de CCC
O serviço estruturado para acompanhamento de portadores de CCC pode comprovar o que tem sido descrito para outras doenças crônicas, a exemplo da hipertensão arterial e da insuficiência cardíaca, onde essa abordagem tem trazido melhor relação custo/benefício quando comparado ao atendimento não-estruturado. 18,19,20,21
Embora se saiba que aparentemente a implantação de um serviço estruturado implica em maior investimento no número de profissionais envolvidos, recurso financeiro limitado e aspectos gerenciais, acredita-se que a sua criação poderá ser custo/efetivo em médio e longo prazo, particularmente em relação ao paciente portador de CCC que apresenta situação socioeconômica desfavorável dificultando o seu acesso e a adesão ao tratamento. Portanto, esse atendimento estruturado pode propiciar maior acesso, favorecendo agilidade no diagnóstico, otimização e racionalização da terapêutica existente, além de promover o resgate de um atendimento mais humanizado e individualizado. Essa proposição não deve ser encarada como um modelo matemático fechado, mas como princípios gerais de orientação para auxiliar na composição de serviços estruturados Em suma, os serviços estruturados têm como missão precípua promover uma assistência que favoreça a estabilidade clínica, psicológica e social do paciente. 22,23,24
- Professor Adjunto de Cardiologia da Universidade de Pernambuco-UPE
- Médico Cardiologista do Hospital Universitário PROCAPE-UPE
- Coordenador do Serviço de Referência em Doença de Chagas e Insuficiência Cardíaca/PROCAPE-UPE