Consenso

CONSENSOS BRASILEIROS EM DOENÇA DE CHAGAS COMO FERRAMENTA PARA GARANTIA DE DIREITO À SAÚDE PELO ACESSO À ATENÇÃO INTEGRAL NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)

 

Alberto Novaes Ramos Jr

Federal University of Ceara, School of Medicine, Department of Community Health, Fortaleza, Ceara, Brazil.

Andréa Silvestre de Sousa

Oswaldo Cruz Foundation, Evandro Chagas National Institute of Infectious Diseases, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brazil.

Federal University of Rio de Janeiro, School of Medicine, Department of Internal Medicine, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brazil.

João Carlos Pinto Dias

Oswaldo Cruz Foundation, René Rachou Institute, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil.

 

Introdução

No Brasil, a doença de Chagas apresenta carga de morbimortalidade expressiva, com milhões de pessoas afetadas em cenários distintos do País, diante dos fluxos migratórios históricos e atuais. Apesar disto, persistem falhas significativas no Sistema Único de Saúde (SUS) em garantir acesso a diagnóstico e tratamento às pessoas afetadas, suas famílias e comunidade. Além disto, reconhece-se que o seu caráter de condição crônica e a necessidade de prevenir incapacidades e reabilitar as pessoas afetadas trazem desafios ainda não superados. Por outro lado, o estigma relacionado à doença e o impacto na qualidade de vida potencializam o ciclo de negligência e pobreza.

Globalmente, estima-se que menos de 90% das pessoas que necessitam de tratamento específico no mundo de fato têm acesso a esta intervenção. Existem falhas críticas em termos da disponibilidade de métodos diagnósticos efetivos e de novas opções terapêuticas mais seguras e eficazes nas diversas fases da doença. O acesso a estas intervenções é reconhecido como elemento crítico do direito à saúde, com vistas a reduzir a carga da doença e a contribuir para a ruptura do ciclo de pobreza em diferentes gerações de famílias e comunidades.

Após quase 110 anos desde a descoberta da doença por Carlos Justiniano Ribeiro Chagas (1909), importantes lacunas nos campos técnico, científico e político tornam a construção de qualquer documento síntese de evidências científicas um grande desafio. A escassez de evidências científicas para doenças negligenciadas em geral coloca em situação de grande vulnerabilidade as pessoas afetadas e amplifica o ciclo de negligência. A despeito deste cenário, estas questões devem ser superadas para o efetivo enfrentamento desta condição. No caso da doença de Chagas, é emblemática a situação das indicações para tratamento específico (ampliadas no atual consenso brasileiro) e a vigilância epidemiológica da doença em sua fase crônica (fortemente recomendada no atual consenso brasileiro).

De fato, diretrizes, protocolos e consensos têm-se tornado cada vez mais comuns como ferramentas que auxiliam o cuidado e a prática clínica (sem substituir o julgamento clínico), gerando melhorias do ensino e da gestão, além de servirem de embasamento para reivindicações dos movimentos sociais. Um importante objetivo desses documento seria ampliar o alcance da agenda de doenças insuficientemente reconhecidas pela sociedade em geral, como a doença de Chagas e outras negligenciadas, organizando a atuação dos serviços e profissionais de saúde.

 

Consensos brasileiros

Em 8 de setembro de 2000 surgem da Declaração do Milênio das Nações Unidas os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), adotados pelos 191 estados membros. Embora não estivessem diretamente citadas no documento, as doenças tropicais negligenciadas (DTNs), entre elas a doença de Chagas, tiveram seus principais determinantes sociais colocados em perspectiva. Entre estes, foram incluídos como objetivos: 1 – Acabar com a fome e a miséria, 2 – Oferecer educação básica de qualidade para todos, 3 – Promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres, 4 – Reduzir a mortalidade infantil, 5 – Melhorar a saúde das gestantes, 6 – Combater a Aids, a malária e outras doenças, 7 – Garantir qualidade de vida e respeito ao meio ambiente e 8 – Estabelecer parcerias para o desenvolvimento.

Em meio aos debates sobre a resposta brasileira a esta agenda, por indução do Ministério da Saúde (MS) do Brasil, em articulação com especialistas e pesquisadores, deflagrou-se entre a segunda metade de 2004 e a primeira metade de 2005 uma série de reuniões de planejamento para a composição do I Consenso Brasileiro em Doença de Chagas. Entre as atividades mais significativas organizou-se de 07 a 09 de junho de 2005 a Reunião Nacional para Constituição do Consenso Brasileiro sobre a Doença de Chagas, fruto da parceria entre o Programa Nacional de Controle da doença de Chagas e a Unidade de Epidemiologia do Programa Nacional de DST e Aids – atualmente Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle de IST, HIV/Aids e Hepatites Virais (ambos da Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde). Estiveram presentes renomados especialistas e pesquisadores brasileiros, muitos dos quais, autores do documento. Colaboraram sobremaneira para potencializar esta iniciativa os fortes movimentos técnico-políticos das reuniões de Pesquisa Aplicada em Doença de Chagas em Uberaba, Minas Gerais, sob a liderança da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT).

Naquele momento já eram sinalizadas explicitamente como preocupações para o País:

Reforçar a prioridade da doença de Chagas como problema de saúde pública incorporando de forma totalizadora, integral e intersetorial, outros aspectos além do controle vetorial, como novas estratégias de vigilância epidemiológica e de controle das transmissões transfusional e vertical, o desenvolvimento de pesquisas prioritárias e a atenção integral ao indivíduo com doença de Chagas crônica na rede.”

Como também:

Reforçar que a Gerência Técnica do Ministério da Saúde para o controle da doença de Chagas deve ser valorizada, tanto do ponto de vista do seu corpo técnico (recursos humanos) quanto no aporte de recursos financeiros (orçamento).”

A publicação deste I Consenso teve um impacto significativo técnico-político, não apenas no País, mas também em outras regiões endêmicas, assim como em regiões não endêmicas que estavam sendo desafiadas com a ocorrência da doença relacionados aos movimentos migratórios. Houve o compromisso de compor revisões sistemáticas a cada 5-10 anos com vistas à garantia das melhores evidências. Com esta experiência acumulada, diante da clara necessidade de revisão daquele documento, empreendeu-se um novo grande trabalho. O objetivo foi sistematizar e padronizar estratégias de diagnóstico, tratamento, prevenção e controle da doença de Chagas no Brasil, de modo a refletir as evidências científicas mais atuais disponíveis nos planos nacional e internacional.

O movimento foi deflagrado entre 2010 e 2011, com início de planejamento. Neste período tornou-se um documento referencial, em especial para gestores, pesquisadores, profissionais de saúde, professores universitários e para a sociedade em geral, incluindo o movimento social organizado voltado para a doença de Chagas que se estruturava no ano de 2010 em uma Federação Internacional – FindeChagas. Entretanto, somente em maio de 2013 retomou-se no Brasil a construção efetiva de todo o processo, a partir da reorganização dos nove grupos de trabalho e fortalecimento do grupo de coordenação dentro do MS e da SBMT.

No cenário internacional, a agenda pós-2015 (pós-ODM) foi reconfigurada gerando uma nova e ambiciosa agenda universal com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas. Pela primeira vez as DTNs são incorporadas em uma meta específica dentro de um objetivo (3) que se remete a “assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades”. A Meta 3.3 refere-se a “até 2030, acabar com as epidemias de AIDS, tuberculose, malária e doenças tropicais negligenciadas, e combater a hepatite, doenças transmitidas pela água, e outras doenças transmissíveis.

Às voltas com os ODS, publica-se o II Consenso Brasileiro em Doença de Chagas, um marco fundamental para configurar parte da resposta brasileira. O cuidado em todo o processo reforçou a busca de alcance de contextos para além dos brasileiros, com vistas à utilização por outros países endêmicos, mas também não endêmicos.

Os complexos e desafiadores cenários político-econômicos do Brasil e da América Latina reforçam a importância da composição de consensos. O Brasil tem tido um papel de liderança neste movimento juntamente com outros países. Entretanto, também têm trazido questões que visam refletir sobre o real limite entre a disponibilidade de diretrizes baseadas em evidências e as necessidades em saúde percebidas e sentidas pelas pessoas afetadas. Além da disponibilidade de diretrizes baseadas em evidências, verifica-se que entre e dentro dos diferentes países há falta de padronização mínima das condutas indicadas, o que de fato gera obstáculos ainda maiores em se pensando em uma resposta global integrada.

 

Desafios:

O processo de construção de consensos envolve um grupo de especialistas e/ou pesquisadores, devendo incluir também representantes das populações afetadas. Para a composição deste documento brasileiro de 2015 levou-se em consideração evidências quantitativas disponíveis coletivamente coletadas. Estas evidências foram filtradas através de uma “lente clínica” do grupo de elaboração de modo a garantir maior rigor nas recomendações e sua aplicabilidade nos cenários reais do SUS. Levou-se em consideração o cenário epidemiológico atual, os avanços técnico-científicos baseados em evidências, bem como a experiência de diversos especialistas que se dedicam ao estudo da doença e atuam como referências nacionais e internacionais.

Com todas estas dimensões incluídas, buscou-se compor um documento com o máximo de precisão, responsável (para as pessoas afetadas e suas famílias, comunidade, ciência em geral e toda a sociedade), previsível (fornecendo detalhes e números específicos), defensável (transparente) e passível de utilização (em uma variedade de configurações do mundo real).

Para as pessoas afetadas, o maior benefício que pode ser alcançado com o consenso é melhorar os resultados de sua saúde, com maior segurança de que as condutas adotadas pelos profissionais de saúde representem os referenciais nacionais, vislumbrando a garantia de sua qualidade de vida. Em uma perspectiva mais ampliada, a apropriação de consensos pelas pessoas afetadas e suas famílias pode contribuir para que eles tenham maior potencial para influenciar as políticas públicas. Isto significa, por exemplo, a maior integração das ações de controle no sistema de saúde, obtendo em resposta, a composição de outros pontos de atenção, visando a garantia de acesso com equidade.

Já para os profissionais de saúde, a adoção do consenso pode melhorar a qualidade das decisões clínicas, sobretudo para aqueles profissionais não totalmente habilitados ou com condutas desatualizadas dentro das políticas públicas nacionais. As orientações do documento podem atuar como ponto de referência comum para avaliações prospectivas e retrospectivas das práticas de profissionais de saúde, visando maior qualificação no cumprimento das melhores práticas de cuidados.

Em síntese, a elaboração e a divulgação deste documento visam contribuir com o aperfeiçoamento da prática clínica, da prevenção, do desenvolvimento de pesquisas e do planejamento de políticas públicas direcionadas para a vigilância em saúde e o controle da doença de Chagas em todas as esferas de gestão, visando a redução da sua morbimortalidade no Brasil. Pretende-se ainda instrumentalizar as pessoas afetadas na tomada de suas decisões individuais ou coletivas, enquanto movimentos sociais.

O cenário político-econômico atual na América Latina tem ampliado de forma acelerada as desigualdades sociais, ao mesmo tempo em que se fragiliza o papel do Estado no desenvolvimento e regulação de ações de atenção à saúde, vigilância e controle de doenças negligenciadas, como a doença de Chagas. O Brasil nos últimos três anos, em particular, tem retrocedido rapidamente em suas políticas sociais, com forte aprofundamento da concentração de renda, sendo novamente inserindo na lista dos países mais desiguais do mundo. Isto amplia os contextos de vulnerabilidade individual e social que colocam antigos e novos determinantes para a ocorrência da transmissão desta doença. Paralelamente, o enfraquecimento da rede de atenção à saúde no SUS limita ainda mais o acesso aos serviços, gerando situações de grave vulnerabilidade programática, com forte restrição do acesso à saúde, em especial nas áreas de maior endemicidade. Espera-se que este cenário não diminua o grande potencial que o II Consenso Brasileiro em Doença de Chagas pode ter.

 

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