Estudos Iniciais
Os conhecimentos sobre a doença: Carlos Chagas e a caracterização clínica da tripanossomíase americana (1909-1934)
Simone Petraglia Kropf
Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Email: simonek@coc.fiocruz.br
A primeira caracterização do quadro clínico da tripanossomíase americana, descoberta em 1909, foi apresentada por Carlos Chagas em outubro de 1910, em conferência na Academia Nacional de Medicina. Além dos dados da observação clínica realizada em Lassance, os dados histopatológicos produzidos por Gaspar Vianna, também pesquisador de Manguinhos, foram fundamentais para a sua composição.
Chagas dividiu a infecção em duas modalidades: aguda e crônica. A fase aguda foi classificada em duas formas: 1) casos com graves distúrbios cerebrais, como meningo-encefalite, derivados da ação do T. cruzi sobre o sistema nervoso central, e constituídos geralmente por crianças menores de um ano, que quase nunca sobreviviam; 2) casos sem tais manifestações, com prognóstico mais benigno, que, entre 10 e 30 dias, evoluíam para o estado crônico, com a regressão dos sintomas do período inicial. Pela abundância dos tripanossomas na circulação sanguínea durante o período agudo, o diagnóstico parasitológico era feito mediante observação direta do sangue.
Do conjunto sintomatológico do período agudo – febre contínua e intensa, gânglios na região cervical, axilas e região inguinal, esplenomegalia, hepatomegalia, alterações do sistema nervoso (fenômenos de meningismo), alterações cardíacas e afecções oculares –, Chagas destacou alguns sinais que, pela sua constância, deveriam ser privilegiados como elementos de especificidade da doença e, consequentemente, base para o diagnóstico clínico. Expressando o que, segundo ele, era um distúrbio tireoidiano derivado da ação patogênica do T. cruzi sobre esta glândula, o principal destes sinais seria a intumescência no rosto (mixedema), de grande frequência em crianças desde os primeiros dias da infecção e que conferia aos doentes um facies característico.
A fase crônica compreendia a maioria dos doentes e era constituída de elementos endócrinos, cardíacos e neurológicos. Para Chagas, a característica clínica mais constante e saliente da nova tripanossomíase eram as perturbações funcionais da tireóide, expressas, principalmente, pela hipertrofia da glândula (bócio ou “papo”). Em maio de 1910, ele havia publicado nota-prévia formulando a hipótese da etiologia parasitária do bócio endêmico.
Esta afecção tireoidiana, à qual eram associados distúrbios físicos e mentais constitutivos do cretinismo endêmico, era conhecida desde a Antiguidade e descrita, sobretudo, nas regiões montanhosas dos Alpes europeus. Ao final do século XIX, sua etiologia ainda não havia sido totalmente elucidada. Alguns a creditavam à carência química de iodo na água, enquanto outros cogitavam da ação de microorganismos. O bócio endêmico tinha grande prevalência em Minas Gerais e, desde o século XVIII, despertava a atenção de naturalistas, viajantes e médicos (Figura 1 e 2). Pela desfiguração física que provocava, sobretudo quando atingia grandes volumes, e pela associação com o cretinismo, era considerado um dos principais motivos do atraso dos camponeses mineiros.
Segundo Chagas, em Minas Gerais e em outras regiões onde houvesse a transmissão do T. cruzi, o bócio endêmico não era a mesma entidade nosológica que havia na Europa, mas uma decorrência da ação deste parasito sobre a tireóide. Sua convicção fundamentava-se em três ordens de evidências. Em primeiro lugar, observava sinais clínicos de hipotireoidismo em indivíduos com outros sinais da tripanossomíase, tanto na fase aguda quanto crônica (inclusive em bebês em aleitamento exclusivo, o que, segundo ele, afastava a hipótese relacionada à deficiência química da água). Além disso, as autópsias revelavam lesões na tireóide que, segundo ele e Vianna, seriam provocadas pelo parasito. Finalmente, os dados de natureza epidemiológica: “até agora, de observações pessoais e de informações colhidas, ns regiões de Minas, onde existe o bócio existe também o inseto transmissor da esquizotripanose”. Com base em tais argumentos, concluía: “Seja o bócio endêmico europeu de origem hídrica ou infecciosa, o nosso, aquele que temos estudado em nosso Estado natal, constitui sem dúvida uma síndrome da tireoidite parasitária, nome com muita felicidade criado pelo ilustrado professor Miguel Pereira”.
Considerando-se os efeitos que o comprometimento da tireóide provoca no desenvolvimento orgânico dos indivíduos, este se tornou um dos principais caminhos pelos quais Chagas afirmaria a importância médico-social da doença, como “condição mórbida crônica que inutiliza o indivíduo para a atividade vital” e como “um fator importante de degeneração humana”.
Os distúrbios endócrinos da fase crônica, segundo Chagas, variavam de intensidade e por isso ele os classificou em duas formas clínicas: pseudo-mixedematosa e mixedematosa. A primeira seria a de maior relevo, compreendendo a grande maioria dos portadores da infecção. Tratava-se de crianças ou jovens que, tendo sobrevivido à fase aguda, sofriam os efeitos ainda leves do hipotireoidismo. O “papo” ainda era incipiente, não se caracterizando pelo grande volume que, depois de uma evolução progressiva, viria a ter em alguns adultos. A forma mixedematosa abrangeria os casos menos comuns de maior gravidade do comprometimento da tireóide. Ao invés da hipertrofia da glândula, observava-se a sua atrofia, ou seja, a total destruição da função, com efeitos extremamente debilitantes.
A terceira forma da infecção crônica seria a forma nervosa, cujos sinais, presentes sobretudo em crianças, seriam perturbações motoras (como diplegia), da linguagem (como afasia ou disartria) e da inteligência, como idiotia (retardo mental grave) e demência (Figura 3). Juntamente com o “papo”, tais distúrbios, atribuídos à ação do parasito sobre o sistema nervoso central, assumiriam grande relevo nas declarações de Chagas sobre a gravidade dos efeitos físicos e sociais da doença. Assim como na forma aguda meningo-encefálica, também neste aspecto se tornaria frequente a alusão a “criaturas condenadas à existência de monstros”.
Outra síndrome clínica da fase crônica era a forma cardíaca. Os sinais mais característicos derivados da localização parasitária no “elemento nobre do miocárdio” seriam certas alterações do ritmo cardíaco, como as extrassístoles (distúrbio da excitabilidade) e, em menor grau, perturbações na condução do estímulo, como o bloqueio cardíaco. Diferentemente das outras formas, que atingiam preferencialmente crianças, Chagas observou a presença destes fenômenos em indivíduos a partir de cerca de 16 anos. O prognóstico era, em geral, grave, levando à insuficiência cardíaca e, em alguns casos, à morte repentina, por assistolia. Este era mais um aspecto do impacto médico-social da doença, acentuava, por comprometer a vitalidade de indivíduos em plena idade produtiva.
Quanto ao diagnóstico, na modalidade crônica, diferentemente do que ocorria na fase aguda, os parasitos não se encontravam na circulação sanguínea, o que impedia a demonstração parasitológica por observação direta do sangue. O procedimento utilizado, nestes casos, era a inoculação do sangue “suspeito” em cobaias. Uma vez ocorrida a morte do animal, a identificação de formas esquizogônicas em seu pulmão (que Chagas considerou estágios evolutivos do T. cruzi) determinaria a positividade do diagnóstico. Este método seria abandonado em 1913.
Apesar do estágio incipiente das pesquisas, já em 1910 Chagas salientou que a presença do barbeiro vinha sendo atestada em “quase todo o norte de Minas, em vastas regiões do Oeste do mesmo Estado e ainda nos Estados de Mato-Grosso e Goiás”, o que lhe permitia especular que “vastíssima será a extensão do país onde grassará a esquizotripanose”. Tais dados advinham, sobretudo, dos estudos de Arthur Neiva, que se dedicava aos estudos entomológicos em Manguinhos (Neiva 1910).
Deste primeiro desenho clínico da doença, destacam-se os seguintes traços fundamentais: tratava-se de uma infecção essencialmente crônica, de evolução progressiva, contraída nas primeiras idades, por praticamente todos aqueles que residiam em habitações infestadas por barbeiros e que, por atingir os indivíduos em plena fase de formação física e mental, produzia impactos permanentes sobre sua vitalidade e desenvolvimento orgânico. Suas principais manifestações clínicas eram distúrbios endócrinos (principalmente tireoidianos), nervosos e cardíacos.
Apesar de atribuir importância a estes três eixos do quadro clínico, Chagas conferia uma nítida ênfase ao primeiro deles. Um dos principais indícios desta primazia foi a denominação, proposta por Miguel Pereira e utilizada amplamente por Chagas, para referir-se à doença: tireoidite parasitária. Na expressão de outro renomado médico da época, Miguel Couto, a hipertrofia da tireóide constituía o selo da doença e passou a constituir o traço de maior destaque na visualização da nova entidade médica. O “papo” era, assim, visto como o sinal primordial para o diagnóstico clínico da infecção.
Chagas defendia publicamente, desde 1910, a noção de que a nova tripanossomíase era uma doença de grande importância médico-social. Usando um termo bastante recorrente no debate intelectual da época, ela conduziria à “degeneração” física e mental das populações rurais, comprometendo a produtividade e o progresso do país. Deste modo, deveria ser firmemente combatida pelo poder público. Em sua conferência na Academia Nacional de Medicina, ele alertou:
“É bem dolorosa a impressão trazida pelos fatos mórbidos observados naquelas zonas; dolorosa para o médico, que nos recursos atuais da ciência não encontra ainda meio eficaz de combate ao terrível inimigo; dolorosa para o estadista que demoradamente raciocinar sobre o obstáculo fatalmente oposto por aquela condição mórbida a quaisquer tentativas de progresso coletivo; dolorosa, finalmente, para o altruísta, que ali terá desenhada a miséria humana em sua expressão a mais completa, qual seja a fatalidade de uma moléstia crônica, capaz de inutilizar a mentalidade, a inteligência, a atividade vital, a vida, enfim, na sua condição de normalidade necessária à felicidade humana”.
Suas declarações tiveram grande impacto. Elas desvendavam, diante da elite médica e política da capital federal, o retrato da doença e da miséria do interior do Brasil. Enunciava-se então o preceito fundamental que, ao longo da década de 1910 e especialmente a partir da eclosão da I Guerra Mundial, seria amplificado no chamado movimento sanitarista: a idéia de que a superação dos males do Brasil dependia de uma intervenção do Estado em prol do saneamento de seus sertões. Até o final de sua vida, Chagas enfatizaria a necessidade de prevenir e combater esta e outras endemias do interior, como caminho para a “redenção sanitária” e o progresso econômico das populações rurais do país.
Em 1911, Chagas aprofundou sua classificação clínica, reiterando a primazia conferida aos elementos endócrinos e sua convicção quanto à etiologia parasitária do bócio endêmico. Além das perturbações tireoidianas, apontou a presença de deficiências ovarianas e supra-renais, chegando a propor, para este último aspecto, a criação de uma forma clínica específica.
A partir de 1913, o processo de definição e reconhecimento da nova tripanossomíase como entidade nosológica específica asssumiria um novo rumo. Estudos iniciados por Henrique Aragão comprovaram que as formas esquizogônicas encontradas no pulmão de cobaias infectadas experimentalmente (que Chagas julgava serem estágios evolutivos do T. cruzi) correspondiam a outro parasito, o Pneumocystis carinii. Além de levar a uma revisão do ciclo daquele parasito, tais estudos invalidavam o principal método de diagnóstico parasitológico utilizado por Chagas para as formas crônicas da tripanossomíase. A partir de então, apesar da proposição de novos métodos de diagnóstico – como o teste sorológico baseado na fixação de complemento, desenvolvido por César Guerreiro e Astrogildo Machado em 1913, e o xenodiagnóstico, proposto por Émille Brumpt em 1914 – as incertezas quanto à comprovação parasitológica dos casos crônicos geraria questionamentos à definição clínica desta modalidade da infecção.
Em 1915/1916, estudos feitos na Argentina sob a liderança do microbiologista Rudolf Kraus, da Universidade de Viena, confrontaram alguns enunciados de Chagas para as formas crônicas da tripanossomíase, em especial a hipótese da etiologia parasitária do bócio endêmico. Apesar da comprovada distribuição de vinchucas infectadas no território argentino, os pesquisadores inquietavam-se com o fato de não ter sido diagnosticado nenhum caso humano da doença. Eles relatavam que, em províncias onde havia vetores, muitas vezes não se identificavam portadores de bócio; ou então, quando estes eram encontrados, não se conseguia comprovar a infecção por aquele parasito. Kraus e seus colaboradores argumentaram então que as manifestações tireoidianas e nervosas atribuídas à tripanossomíase americana correspondiam, na realidade, ao bócio e o cretinismo endêmicos já descritos na Europa, atribuídos por muitos à deficiência de iodo.
Em resposta a estes questionamentos, Chagas publicou, em 1916, três importantes trabalhos, em que reiterou suas convicções sobre o comprometimento endócrino e neurológico na tripanossomíase. Contudo, mesmo reafirmando seus enunciados, Chagas passou a conferir-lhes novas ênfases e significados, minimizando a primazia atribuída aos sinais tireoidianos e reforçando a importância dos elementos cardíacos. Em extenso trabalho publicado em 1916, estabeleceu nova terminologia para a classificação das formas crônicas, substituindo as formas “pseudo-mixedematosa” e “mixedematosa”, respectivamente, por “forma indeterminada” e “forma hipo-tireoidiana”. No primeiro caso, estariam reunidos os casos crônicos relativamente recentes, que ainda não manifestavam “as alterações anatômicas profundas, determinantes de síndromes clínicas definitivas”. Constituiriam, segundo ele, “formas de passagem”, pela indeterminação em sua fisionomia clínica.
Afirmando que, “na tripanossomíase a insuficiência tireoidiana é somente um dos elementos da moléstia e não constitui, por si só, a entidade nosológica”, Chagas empenhava-se em garantir que, mesmo que tal aspecto viesse a ser descartado, isso não descartaria a existência da doença como “moléstia autônoma (…) caracterizada por sintomatologia bem determinada e bem fundamentada em lesões histo-patológicas”.
Em operações discursivas bastante significativas do movimento pelo qual a tripanossomíase americana deixava de ser caracterizada como afecção fundamentalmente endócrina, o bócio endêmico – até então visto como “selo da doença” – passou a ser qualificado como “um problema discutível, anexo à história clínica da tripanossomíase”. A partir de então, Chagas deixou de utilizar o termo tireoidite parasitária para referir-se à doença.
A diretriz assumida neste “novo enquadramento do quadro clínico da doença”, iniciado em 1916, foi a progressiva valorização dos aspectos cardíacos. Em 1922, em parceria com Eurico Villela, Chagas publicou um extenso trabalho sobre a forma cardíaca, que, segundo os autores, deveria ser vista como “a característica clínica por excelência da tripanossomíase americana”.
Ironicamente, neste mesmo ano de 1922, teve início na Academia Nacional de Medicina uma intensa polêmica em que um grupo de médicos contestou diversos aspectos dos trabalhos de Chagas, recolocando as dúvidas lançadas na Argentina, especialmente a correlação com o bócio e a idéia, derivada desta associação, de que a doença era uma vasta endemia de grande impacto médico-social. Apesar de Chagas já vir, desde 1916, afirmando que a hipótese sobre o bócio poderia ser revista, a grande visibilidade política conferida à tripanossomíase americana, entre 1916 e 1919, no âmbito do movimento sanitarista havia reforçado, pela dramaticidade social que impunham ao desenho clínico daquela endemia, justamente os aspectos que mais eram objeto de contestação no terreno da discussão científica: o “papo” e os distúrbios nervosos.
Na conferência que proferiu no encerramento desta polêmica, Chagas prosseguiu afirmando que, mesmo que se refutassem os enunciados relativos ao bócio e a outras de suas formulações, não se podia duvidar dos “sinais iniludíveis” que fundamentavam a tripanossomíase americana como entidade clínica real e específica. Mais uma vez, apontou a forma cardíaca como “o aspecto mais interessante e característico da tripanossomíase americana”.
Ainda que com menor intensidade do que a forma cardíaca, a forma nervosa, apesar de contestada, seguiria motivando as pesquisas de Chagas e seus colaboradores. A partir de 1923, experiências de Eurico Villela e outros pesquisadores, que reproduziram paralisias e outros distúrbios neurológicos em cães inoculados com o T. cruzi, foram vistas como reforço à tese da especial “predileção” desse protozoário, pelo menos de algumas cepas dele, pelo sistema nervoso. Estudos com animais demonstravam também a transmissão congênita, intra-útero, do T. cruzi. Num momento em que as doutrinas em neurologia postulavam que as infecções congênitas eram as mais propícias ao comprometimento do sistema nervoso, fortalecia-se a idéia de que a ação patogênica daquele parasito sobre tal sistema orgânico se dava desde a vida embrionária.
Em 1932, em sua última apresentação científica sobre a doença, Chagas apresentou uma sistematização do “estado atual da tripanossomíase americana”, cujo objetivo era salientar justamente os avanços na compreensão da forma nervosa. Depois de manifestar seu entusiasmo com o impulso conferido a esta vertente, o trabalho abordou a forma cardíaca, reafirmando sua importância central:
“As alterações variadas do ritmo cardíaco constituem a característica sintomática de maior valia para o diagnostico clínico dessa infecção; (…) o índice endêmico da tripanossomíase americana deverá ser apreciado, principalmente, pela percentagem, sempre muito elevada, de indivíduos com alterações do ritmo cardíaco”.
As outras modalidades clínicas da doença, entre as quais as síndromes endócrinas e o bócio, constituíam, segundo ele, “aspectos menos esclarecidos”. Dizia ele:
“Embora persistente na convicção anterior, devemos confessar que o assunto oferece margem a divergências, sendo passível de contestação à doutrina formulada. (…) É uma questão aberta, a merecer estudo e perspicácia”.
Após a morte de Chagas (1934), confirmou-se que a tripanossomíase americana e o bócio endêmico eram endemias sobrepostas e totalmente distintas. Assim como seus enunciados sobre as formas endócrinas, a forma nervosa crônica também seria abandonada.
Entretanto, suas formulações sobre a forma cardíaca seriam amplamente confirmadas e ampliadas, especialmente a partir das pesquisas de seus seguidores em Manguinhos, como Evandro Chagas e Emmanuel Dias. Este último, diretor do Centro de Pesquisas e Profilaxia da Moléstia de Chagas – posto do IOC criado em 1943 em Bambuí, Minas Gerais –, produziu, juntamente com o cardiologista Francisco Laranja, trabalhos que consolidariam, ao longo da década de 1940, a caracterização da cardiopatia chagásica crônica como a principal expressão clínica da doença de Chagas.
Na década de 1950, a partir de trabalhos de Joffre M. de Rezende e Fritz Koeberle, comprovou-se outro enunciado que Chagas propusera em 1916: o de que o “mal de engasgo” ou megaesôfago é decorrente da ação patogênica do T. cruzi. A forma digestiva (megaesôfago e megacólon) passou então a compor, juntamente com a forma cardíaca e a forma indeterminada, o quadro clínico da infecção crônica.
Polêmica
A polêmica em torno da doença de Chagas (1915-1923)
Simone Petraglia Kropf
Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Email: simonek@coc.fiocruz.br
Em seus primeiros trabalhos de caracterização clínica da tripanossomíase americana, Carlos Chagas afirmou que a nova entidade mórbida, descoberta por ele em Lassance em 1909, definia-se por distúrbios endócrinos, neurológicos e cardíacos. Em sua concepção, em Minas Gerais e demais regiões onde houvesse a transmissão pelo T. cruzi, o bócio endêmico (hipertrofia da tireóide, popularmente conhecida como “papo”) tinha etiologia diferente daquele encontrado na Europa, constituindo uma manifestação clínica da tripanossomíase, decorrente da ação do parasito sobre tal glândula. A ênfase neste e em outros sinais tireoidianos fez com que Chagas se referisse à doença como tireoidite parasitária. Esta tese foi o cerne das controvérsias de que a enfermidade se tornou objeto a partir de meados da década de 1910.
Estudos feitos, na Argentina, sob a liderança do microbiologista Rudolf Kraus, da Universidade de Viena, confrontaram, em 1915/1916, os enunciados de Chagas para as formas crônicas endócrinas e nervosas da tripanossomíase, em especial a etiologia parasitária do bócio endêmico. Apesar da distribuição de vinchucas infectadas no território argentino, não havia sido diagnosticado nenhum caso humano da doença. Os pesquisadores relatavam que, em províncias onde havia vetores, muitas vezes não se identificavam portadores de bócio; ou então, quando estes eram encontrados, não se conseguia comprovar a infecção por aquele parasito (o método usado por Chagas para a demonstração parasitológica dos casos crônicos – a detecção de formas esquizogônicas no pulmão de cobaias infectadas – havia sido refutado em 1913, quando se comprovou serem estas correspondentes a outro parasito).
Kraus e seus colaboradores argumentaram então que as manifestações tireoidianas e neurológicas atribuídas à tripanossomíase americana em sua fase crônica corresponderiam, na realidade, ao bócio e o cretinismo endêmicos já descritos na Europa, cuja causa muitos creditavam à carência de iodo. Como tentativa de explicar a ausência de casos da tripanossomíase no país, os pesquisadores apresentaram a hipótese de que “la vinchuca infectada en la República Argentina, con mucha probabilidad, no produce la enfermedad de Chagas. La causa pode ser uma atenuación del tripanossoma por el clima”. Tais colocações lançavam dúvidas sobre a própria definição da tripanossomíase, sobretudo em sua modalidade crônica, enquanto entidade clínica diferenciada.
Em setembro de 1916, Carlos Chagas rebateu tais alegações ao tomar parte no Primeiro Congresso Médico Nacional, realizado na capital argentina, anexo ao qual promoveu-se uma Conferência Internacional de Bacteriologia e Higiene. Reiterou que, mesmo que viesse a rever algumas de suas idéias, nenhuma das contestações ameaçava seu conceito geral da doença que, salientou, não se restringia ao país em que havia sido descoberta. Contudo, ainda que reiterando suas principais convicções, Chagas deu início a um importante processo de “reenquadramento” no desenho clínico da tripanossomíase, minimizando a primazia que até então conferia aos sinais tireoidianos e reforçando a importância dos elementos cardíacos.
Na nova classificação que propôs para as formas crônicas, apresentada em extenso trabalho em 1916, suavizou o peso dos elementos endócrinos e apresentou a etiologia parasitária do bócio endêmico como “problema anexo”, passível de revisão. Num indício bastante significativo do movimento pelo qual a tripanossomíase americana deixava de ser caracterizada como afecção fundamentalmente endócrina, seu descobridor deixou de utilizar o termo tireoidite parasitária como uma de suas denominações.
A controvérsia científica na Argentina teve impacto no campo médico brasileiro, sobretudo no âmbito do debate nacionalista – que se intensificou com o advento da I Guerra Mundial – em torno das precárias condições sanitárias do interior do país, formalizado no chamado movimento pelo saneamento rural do Brasil. Em recepção a Aloysio de Castro (diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro) e a Chagas, que retornavam do referido congresso na Argentina, o médico Miguel Pereira proferiu a famosa sentença que se tornaria o símbolo deste movimento: “o Brasil é um imenso hospital”. Uma das motivações centrais de seu discurso foi justamente chamar a atenção para a gravidade e a importância daquela enfermidade que, apesar de posta em dúvida no país vizinho, constituía, como dizia Chagas desde o início da década de 1910, um dos principais flagelos do país, juntamente com a malária e a ancilostomose.
Enquanto o próprio Chagas revia, em seus trabalhos, o peso que havia conferido aos distúrbios endócrinos, o discurso combativo do movimento sanitarista – liderado por Belisário Penna – realçava a dramaticidade social da tripanossomíase americana justamente pelos elementos postos em questão na controvérsia científica: as deformidades físicas e mentais materializadas no bócio e na forma nervosa, que, segundo proclamava Penna, atingiria cerca de três milhões de brasileiros.
Esta imbricação entre ciência e política, ao mesmo tempo em que dava visibilidade pública à doença de Chagas, gerou as condições para que alguns médicos brasileiros, no calor do debate nacionalista da década de 1920, confrontassem os enunciados científicos de Chagas e acusassem de anti-patriótico, pessimista e exagerado os que, como ele, qualificavam o Brasil como país doente.
Em julho de 1919, Henrique Aragão corroborou, em discurso na Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro (SMCRJ), as incertezas sobre a enfermidade descoberta por seu colega de Manguinhos. Declarando que a etiologia parasitária do bócio endêmico era insustentável, apontou o que considerava outras fragilidades das proposições de Chagas, como o reduzido número de casos comprovados, que não chegaria a quatro dezenas. Baseando-se nos argumentos de Kraus, Aragão afirmou que uma explicação seria a baixa patogenicidade do T. cruzi para o organismo humano, sobretudo em adultos. Tocando num outro ponto que se tornaria polêmico, referiu-se a Oswaldo Cruz como o “descobridor do T. cruzi”, no que foi apoiado por Henrique Figueiredo de Vasconcellos, também pesquisador de Manguinhos. O discurso provocou reação imediata. Belisário Penna desafiou Vasconcellos a discutir a questão, afirmando que ninguém melhor do que ele, Penna, que testemunhara a descoberta de Chagas em Lassance, para atestar sua autoria naquele processo.
No mês seguinte, Vasconcelos pronunciou conferência na SMCRJ em resposta a Penna. Reafirmou que, por ter sido o autor da infecção experimental que revelara o novo parasito, cabia a Oswaldo Cruz a prioridade de sua descoberta e por isso a doença deveria ser chamada de “moléstia de Cruz e Chagas”.
Outro aspecto em questão era a importância médica e social da doença. Vasconcellos esclareceu que não duvidava de que o parasito tivesse alguma ação patogênica, mas que não podia aceitar a extensão que muitos atribuíam à tripanossomíase, em função da associação com o bócio endêmico. Afirmava que, assim como na Argentina, em vários estados brasileiros onde havia barbeiros infectados a busca de doentes havia sido infrutífera e o número de casos registrados permanecia ínfimo. Numa evidência dos significados políticos que envolviam o tema, Vasconcellos acentuou que julgava necessária “uma reação, não para destruir a obra do Dr. Carlos Chagas, (…) mas para colocá-la dentro dos seus verdadeiros limites”. As “cores tétricas” com que muitos pintavam a doença descoberta em Lassance trariam, segundo ele, o descrédito sobre o país, afugentando os imigrantes tão necessários ao progresso nacional.
A polêmica atingiu sua máxima intensidade em 1922. Ao receber Figueiredo de Vasconcellos como membro honorário da Academia Nacional de Medicina (ANM), o literato e catedrático de Higiene da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Afrânio Peixoto, lançou o estopim de uma aguerrida contenda que se desdobraria por um ano. Ao referir-se aos serviços prestados por Vasconcellos a Manguinhos, ironizou:
“Durante o vosso consulado poderíeis ter feito mais (…). Poderíeis ter achado alguns mosquitos, inventado uma doença rara e desconhecida, doença de que se falasse muito, mas quase ninguém conhecesse os doentes, encantoada lá num viveiro sertanejo de vossa província, que magnanimamente distribuiríeis por alguns milhões de vossos patrícios, acusados de cretinos.”
Em carta a Miguel Couto, presidente da Academia, Chagas declarou-se atingido em sua honra pessoal e profissional e solicitou que fosse nomeada uma comissão especial para posicionar-se diante de alguns quesitos, por ele formulados, relativos à caracterização clínica e epidemiológica da doença e ao mérito de seus trabalhos. Do parecer desta comissão, dependeria sua permanência naquela casa.
Quase um ano depois, em novembro de 1923, o assunto voltou ao plenário da Academia, entrando na ordem do dia das sessões. Vasconcellos pronunciou uma conferência afirmando que as próprias publicações iniciais de Chagas sobre a descoberta não deixavam dúvidas de que fora Oswaldo Cruz quem primeiro vira ao microscópio as formas de tripanossoma no sangue dos macacos. Cabia-lhe, portanto, a prioridade da descoberta do T. cruzi.
Na mesma sessão, o tom da contenda elevou-se ainda mais quando Peixoto, por carta, reiterou suas dúvidas a respeito da “raridade nosográfica” que, em ácida ironia, chamou de “a doença de Lassance”.
O professor da Faculdade de Medicina da Bahia e amigo pessoal de Chagas, Clementino Fraga, partiu em sua defesa. Disse ter testemunhado “doentes em farta cópia” em Lassance, assim como o fizera a comissão enviada pela Academia em 1910, da qual o próprio Vasconcellos havia feito parte. Observou que, antes mesmo da infecção experimental, havia sido Chagas o responsável pelo “achado inicial”, ao surpreender, ainda no sertão mineiro, os flagelados no interior do barbeiro.
Em réplica, insistindo sobre a necessidade de se retirarem os exageros sobre a dimensão daquela entidade mórbida, Vasconcellos mais uma vez deixou clara a dimensão política do tema: “Não desejo que a nossa terra seja considerada como o único país do mundo em que, de norte a sul, de leste a oeste, grasse uma moléstia terrível, horrorosa, não conhecida em nenhuma outra parte do mundo”.
Cada etapa da polêmica era registrada pelos jornais. Uma reportagem afirmava que as dúvidas sobre a descoberta de Chagas resumiam-se a “ciumadas, inimizades e nada mais” e manifestava preocupação com a imagem da ciência nacional: “E que idéia ficarão fazendo de nós, dos nossos cientistas, os luminares da medicina estrangeira, ao constatarem que no Brasil nem se sabe quem fez a descoberta importante, negando-se ao médico tido como descobridor as glórias de um caso líquido?” (“Tripanossoma e… ciumadas”, O Brasil, Rio de Janeiro, 18 de novembro de 1923).
Na conferência do professor de parasitologia da Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, Paulo de Figueiredo Parreiras Horta, foram discutidas a natureza do parasito e a difusão da doença. Reproduzindo a argumentação de Kraus, Horta disse que, em suas viagens pelo país, havia observado a disseminação de barbeiros em vários estados mas que, apesar das buscas, não se havia conseguido comprovar parasitologicamente casos clínicos da doença. Defendeu então a hipótese de que o T. cruzi seria um parasito saprófita (inofensivo), ou então que teria uma virulência bem menor do que se pretendia, provocando infecções benignas e esporádicas. Concluiu: “Pois bem: os casos de tripanossomíase humana autênticos, já assinalados, são poucos e limitados a uma zona do país. É a incógnita que fica”.
Na mesma sessão, Fraga fez sua defesa formal de Chagas, apresentando, em reforço à sua argumentação, carta em que o próprio filho de Oswaldo Cruz, Bento, atestava que seu pai sempre atribuíra a descoberta integralmente a Chagas e protestava contra o que qualificou como desrespeito à memória do criador de Manguinhos.
Em 23 de novembro de 1923, foi lido na Academia o tão aguardado parecer. Sobre a questão da prioridade da descoberta, a posição foi favorável a Chagas:
“No correr dessa série coordenada de fatos, o descobridor do parasito, que não foi achado por acaso mas procurado numa ilação lógica, não seria, portanto, quem por ventura primeiro o visse, mas forçosamente quem nessa concatenação tudo dispusera para que fosse encontrado”.
Depois de negar as alegações de Horta quanto à inocuidade do T. cruzi, o parecer abordou o quesito, apresentado por Chagas, sobre a caracterização e individualização clínica da tripanossomíase americana. Destacando as dificuldades ainda existentes quanto aos métodos de diagnóstico das formas crônicas, tanto sorológicos quanto parasitológicos, acentuou que a comissão não se sentia com condições para responder à questão de maneira inequívoca, inclusive no que diz respeito ao controvertido ponto da relação com o bócio endêmico. O assunto permanecia, assim, como havia admitido o próprio Chagas, uma “questão aberta”. Num ensejo de contemporização, apesar das “restritivas decorrentes da natureza mesma do assunto, ainda em estudo”, a comissão considerava ter “respondido positivamente” ao ponto formulado por Chagas.
O parecer deixou igualmente em aberto a questão da dimensão social da tripanossomíase:
“(…) a nova doença, cuja extensão geográfica, bem como o coeficiente de morbidade, escapam aos meios de sindicância de que a Comissão dispõe, mas a cujo respeito há documentos indicativos de outros focos no continente americano, representa, qualquer que seja a sua difusão no interior do país, um problema de ordem social da maior relevância, merecedor da atenção do Estado”.
Quanto ao valor científico e à natureza idônea dos trabalhos de Chagas, não haveria dúvida: “a Academia Nacional de Medicina não pode deixar de conservar integral o conceito que determinou a inclusão do Dr. Carlos Chagas no seu grêmio”.
O último ato da polêmica na ANM foi a conferência pronunciada por Chagas, em concorrida sessão na noite de 6 de dezembro, que ganhou destaque na imprensa (Figura 1). O descobridor da tripanossomíase americana declarou-se empenhado em sintetizar os fundamentos de “uma convicção inabalável”, mas não escondeu a mágoa:
“Não valera a todos a palavra de quem, para salvaguardar o patrimônio científico de uma escola, hoje se encontra na atitude de réu, autuado de improbidade e de demolidor das prerrogativas de robustez e resistência da nossa gente dos campos”.
Rebatendo seus críticos, Chagas apresentou o que considerava os “sinais iniludíveis” da caracterização clínica da tripanossomíase, tanto em sua fase aguda quanto crônica. Seguindo uma tendência já expressa em seus trabalhos desde 1916, deu especial destaque à forma cardíaca, como o elemento mais forte e bem caracterizado da infecção crônica.
Sua conferência foi encerrada com uma forte crítica ao “falso nacionalismo” de Peixoto e seus porta-vozes. Reiterando a importância social do estudo e do combate das endemias rurais, protestou contra os que o acusavam de “desamor à nossa terra”:
“(…) não me posso capacitar, Sr. Presidente, de que constitua nacionalismo sincero e verdadeiro esse empenho em desviar as providências do Estado de um dos assuntos que mais se impõem ao nosso zelo de brasileiros (…).Continuarei resoluto nas minhas convicções científicas, e nem um dia eu me afastarei dos sentimentos de zelo pela vida e pela saúde dos meus patrícios nos campos. É meu dever de médico, é a solidariedade humana que me orienta”.
Apontando a contradição de Peixoto, ao negar as bandeiras da campanha pelo saneamento dos sertões, da qual ele próprio havia sido “uma das vozes mais autorizadas” alguns anos antes, Chagas desafiou-o a “verificar pessoalmente”, em viagem ao interior em sua companhia, a verdade ou o erro de suas conclusões.
O episódio da Academia passou a constituir um divisor de águas na biografia de Chagas e na trajetória da doença por ele descoberta. Sobre a contenda com Kraus, muitos contemporâneos próximos a Chagas (como Eurico Vilella), ainda que menosprezando as objeções levantadas, reconheceram nela uma controvérsia eminentemente científica. O próprio Chagas ressaltava a natureza científica das alegações do colega austríaco: “ele é um pesquisador e as suas observações têm, naturalmente, procedência” Contudo, acentuava que aqueles que, como Vasconcellos e Peixoto, faziam-se porta-vozes de Kraus tinham, na realidade, “intuitos secundários” (“A moléstia de Chagas. A sua difusão no Brasil e em quase toda a América”, A Rua, Rio de Janeiro, 18 de agosto de 1920).
Ao longo da polêmica, a idéia de que Chagas enfrentava detratores, num embate movido por rivalidades e sentimentos de inveja e despeito, foi se consolidando. Com o seu falecimento, em 1934, tal interpretação foi reforçada por médicos e cientistas que reverenciaram sua memória. Em 1944, o professor da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, Octavio de Magalhães, assim referiu-se ao episódio:
“Toda vez que oigo la expresión enfática, de que ‘la escuela es la vida’, recuerdo las vidas de Oswaldo y de Chagas, ambos flagelados en el via crucis de sus empeños por el bien colectivo, martirizados en las cumbres de sus Gólgotas”.
A noção de que Chagas foi vítima de um processo de difamação, movido por rancores pessoais, continua presente nas interpretações sobre a polêmica. Muitos defendem que esta poderia ter sido a causa de lhe ter sido negado o Prêmio Nobel, para o qual fora indicado em 1920, e que não foi, estranhamente, concedido a ninguém naquele ano.
Outro aspecto recorrentemente enfatizado é que a contenda na Academia fez com que a doença ingressasse num período de “esquecimento”. Chagas Filho afirmou que, depois de um “período heróico”, de reconhecimento nacional e internacional dos estudos sobre a nova doença, as dúvidas iniciadas na Argentina e, sobretudo, a “grande luta” na ANM instauraram uma “fase de desencanto e desentendimento”. Segundo ele, ao trazer uma “onda de suspeição e de descrédito à própria doença de Chagas”, a polêmica teve consequências desastrosas, na medida em que gerações de médicos brasileiros se formaram “sem que se lhes tivesse sido focalizada devidamente a importância da doença”. Somente na década de 1950, teria se iniciado o período de “perfeita compreensão nacional e internacional do problema representado pela doença de Chagas”.
Chagas Filho aponta o que, segundo ele, constituíram os principais fatores a motivar a disputa que, para seu pai, constituiu “um drama íntimo de grandes proporções”. O motivo predominante teria sido a inveja pelo seu reconhecimento nacional e internacional. Contundo, acentuou, haveria razões mais concretas para os ressentimentos. No caso de Peixoto, seria o fato deste ter sido preterido para o cargo de diretor do órgão federal de saúde pública, assumido por Chagas em 1919. Outras fontes de conflito teriam sido a ascensão de Chagas na hierarquia do IOC e as tensões com o establishment médico da Faculdade de Medicina.
Os historiadores Jaime Benchimol, Luiz Antonio Teixeira e Nara Britto também enfatizam que a sucessão na direção de Manguinhos foi um aspecto central das rivalidades que nutriram a polêmica. Além disso, Chagas enfrentou, desde o início de sua administração no instituto (1917-1934), muitas críticas, no contexto da crise interna derivada das restrições financeiras vividas ao longo da década de 1920. As disputas políticas no âmbito de sua gestão no Departamento Nacional de Saúde Pública (1919-1926) também contribuíram para o desgaste.
Stepan, por sua vez, aponta que o conflito esteve relacionado aos debates mais gerais em torno da medicina tropical e aos seus significados para a identidade nacional. Segundo a autora, nas reações de Peixoto à representação do Brasil como nação de degenerados estava expressa a condenação à idéia da especificidade da medicina tropical, que, segundo ele e outros médicos, estimulava antigos estereótipos que afrontavam o orgulho nacional, além de um determinismo climático incompatível com as perspectivas redendoras da higiene.
Alguns autores, como Coutinho, defendem que o episódio da ANM, motivado sobretudo por rivalidades e inimizades pessoais com Chagas, pelo teria acarretado a “desconstrução” da doença como fato científico e tema de relevância médico-social no país, mergulhando-a numa fase de descrédito.
Em nossa interpretação, consideramos que a polêmica que cercou a tripanossomíase americana deve ser compreendida como uma controvérsia que mobilizou elementos de natureza científica (relativos às dúvidas que de fato cercavam a caracterização clínica e epidemiológica da doença) e também política, em vários sentidos. Constituindo uma fase específica da própria trajetória de construção deste objeto científico, a controvérsia na Academia teve, ao nosso ver, como fator determinante, a dimensão política do confronto entre distintas posições no debate nacionalista da época, às quais se associavam distintas maneiras de conceber a doença de Chagas como um símbolo da identidade nacional, enquanto “doença do Brasil”.
Apesar do novo rumo seguido a partir de então, esta trajetória prosseguiria. As novas trilhas que Chagas havia tomado em 1916 foram reforçadas e levariam, após a sua morte, sob novas circunstâncias institucionais, sociais e políticas, a uma nova etapa do que se constituiu, desde 1909, num processo longo e coletivo de produção de consenso, que mobilizou diferentes atores, instituições e interesses, envolveu acordos e disputas e exibiu, em distintos contextos, suas peculiaridades.
Romaña
A contribuição de Salvador Mazza, Cecilio Romaña e dos médicos argentinos ao estudo da doença de Chagas
João Carlos Pinto Dias
Centro de Pesquisas René Rachou, Belo Horizonte
E-mail: jcpdias@cpqrr.fiocruz.br
Tem sido grande e relevante a contribuição argentina quanto à evolução dos conhecimentos e ao enfrentamento da tripanossomíase americana, especialmente a partir dos anos 1930. Há registros antigos e importantes sobre a presença de triatomíneos nas habitações rurais, especialmente a noroeste e no corredor chaquenho, possivelmente decorrentes da dispersão passiva do Triatoma infestans, principal espécie domiciliada no país. Com epicentro nos vales de Cochabamba, o T. infestans disseminou-se através da migração de populações nativas e espanholas no sentido norte-sul, permeando as quebradas e se assestando em ranchos primitivos de Jujuy, do sul peruano e do norte chileno. Há informes, ainda, de mortes súbitas e megas entre essas populações, como há múmias de dois mil anos em Atacama, com vestígios do parasito em lesões viscerais sugestivas. No período pós independência, tudo indica que a esquisotripanose se espalhou de vez por pelo menos duas quintas partes da Argentina, alcançando sua máxima endemicidade entre os anos 1920 e 1950. Já em 1911, Lozano e Maggio vão em missão oficial a Manguinhos, trazendo para Buenos Aires lâminas, mostruários e pranchas alusivos ao Trypanosoma cruzi, à doença e aos triatomíneos, cedidos por Chagas e Oswaldo. Logo recolherão, Maggio e Rosembuch, T. infestans naturalmente infectados de várias partes do país, sem, no entanto, detectarem casos humanos, especialmente procurados em indivíduos com bócio. Importante ainda será consignar a apresentação de Carlos Chagas num congresso em Buenos Aires, 1916 (onde foi arguido por Kraus) e a estada de Mazza no Rio e em Manguinhos, tendo contatos com Chagas, em 1918. Os dois primeiros casos agudos descritos na Argentina serão detectados em 1924 por Mulhens, Diós, Petrocchi e Zuccarini, respectivamente em Tucumán e Jujuy. Um terceiro caso será descrito um ano depois. Nesta época Salvador Mazza estaria viajando com Charles Nicolle pelo Interior do País, para reconhecimento da patologia regional e em franca elaboração dos sonhos que viriam a redundar na fundação da MEPRA (Misión de Estúdios de Patologia Regional Argentina), em Jujuy, 192). A partir de então, Mazza se converterá no principal investigador argentino da esquizotripanose, estudando na MEPRA vetores e reservatórios, casos humanos agudos (cerca de 1.400) e crônicos, realizando mais de cem necropsias, fazendo infecções experimentais e testando métodos diagnósticos e procedimentos terapêuticos. Capacitará e entusiasmará inúmeros médicos para o diagnóstico e o manejo da doença, palmilhará o país em seu vagão ferroviário, à busca de casos e divulgando a enfermidade. Até sua morte, em 1946, Mazza publicará mais de 250 trabalhos sobre diferentes aspectos da doença de Chagas e participará de inúmeras reuniões científicas, muitas delas organizadas por ele mesmo. Há muita similitude na trajetória deste grande pesquisador com a vida e a obra dos pioneiros brasileiros. Como Oswaldo, Mazza estudou no Pasteur e trouxe técnicas e concepções científicas modernas para o seu país, inclusive protagonizando na Argentina a visita fundamental de Charles Nicolle, como Cruz fizera com Giemsa, Duerck, Max Hartmann e Von Prowazeck em Manguinhos. Como Chagas, foi ao sertão e ali se fixou, na trilha do que percebeu fundamental à sua ciência, também vivendo e trabalhando num vagão, também tendo sido extremamente bem formado em Parasitologia, Medicina Experimental e Patologia. Como Emmanuel Dias, conclamou médicos, autoridades, população e jornalistas para a luta contra a “vinchuca”, o rancho e a doença. Aliás, viveu intensamente sua Jujuy, pelos mesmos exatos vinte anos que durou a primeira fase de Bambuí. Visionário, Mazza previu a transmissão transfusional, introduziu o teste de fixação de complemento em seu país e descreveu o primeiro caso humano de transmissão oral.
Os grandes aportes de Mazza se iniciarão no período mais difícil e triste da vida de Carlos Chagas, que começa na década de 20, por conta de detratores e invejosos, no seio da Academia Nacional de Medicina. Certamente por inveja, despreparo e ressentimentos, o libelo contra Chagas se baseava em vários equívocos, como detalhes da descoberta do parasito e a não detecção de casos humanos em áreas de triatomíneos, passando pela não associação da parasitose com o bócio e pela total incompetência dos detratores para estabelecer vínculo entre os quadros crônicos (especialmente da cardiopatia) com a infecção pelo tripanosoma. Viveu-se no Brasil, especialmente entre 1923 e 1933, uma fase de descrédito e arrefecimento nas pesquisas sobre a entidade, não obstante Carlos Chagas seguir atuante e dar sequência a dois projetos de excepcional importância a médio prazo: a) formar e manter um quadro mínimo de discípulos que lhe seguiriam a pesquisa e, b) aprofundar os estudos da cardiopatia crônica, através da eletrocardiografia. Em tal contexto, o trabalho dos argentinos, de Mazza em particular, será essencial para a continuidade dos estudos e do interesse pela doença. Nem tanto uma redescoberta, como pensam alguns, mas um avanço importantíssimo, em sintonia com vários dos postulados de Chagas e, ainda, uma contribuição inequívoca para a revisão da questão do bócio endêmico. Mais ainda, a detecção progressiva de casos agudos no Chaco, em Santa Fé e no Noroeste Argentino iria de vez configurar a grande dispersão e a importância médico-social da doença, nesta fase de descrédito.
Em tal particular, sobressai enormemente a questão da descrição de um sinal extremamente chamativo para os casos agudos, o complexo oftalmo-ganglionar, descrito pelo médico argentino e assistente de Mazza, Cecílio Romaña em 1935, na IX reunião da MEPRA em Mendoza.
O sinal consiste em chamativo quadro ocular de porta de entrada da doença de Chagas aguda. Trata-se de um edema bipalpebral, geralmente unilateral (um olho só) que envolve ingurgitamento ganglionar satélite (geralmente pré auricular), conjuntivite e dacrioadenite (inflamação da glândula lacrimal acessória). Tem uma temperatura morna, é indolor e geralmente não supura, evoluindo em algumas semanas ou meses. Pode ocluir todo o olho e deixar a longo prazo, como “reliquat”, um discreto fechamento da pálpebra afetada (o quadro geral pode assemelhar-se com picadas de insetos, tersol, conjuntivite, traumatismo etc).
Cecílio apresentou seu trabalho em plenário, de maneira precisa e didática, consubstanciado em observações que já fizera um ano antes no Norte Santafesino e no Chaco, inclusive originando duas notas na MEPRA. Conforme Segura, “Mazza autorizo la publicación de Romaña sobre el complejo oftalmoganglionar, pero se sintió muy impresionado por la propuesta que hizo Emmanuel Dias en esa reunión para denominar a dicho complejo como “signo de Romaña”, porque consideró que eran signos ya sugeridos por Carlos Chagas”. A polêmica estendeu-se por vários anos, gerando réplicas e tréplicas entre Mazza e seus amigos, Dias e o próprio Romaña, dela resultando o afastamento de Cecílio da equipe e um certo agastamento de Mazza com Dias e Evandro Chagas. Na verdade, o sinal fora visto (e fotografado) por Mazza e pelo próprio Chagas (ver fotos em Chagas 1916) na Argentina e em Lassance, mas jamais sistematizado ou tendo recebido a devida atenção como fizera Cecílio. Por outro lado, no entanto, o calor do debate e a sequência de sua repercussão acabaram por ser um elemento adicional a sua divulgação, fazendo da descrição deste sinal um marco científico e epidemiológico da moléstia, facilitando enormemente o diagnóstico da fase aguda não só na Argentina como por toda a área endêmica. Conforme Pick (1954), nos primeiros 25 anos após a descoberta de Chagas somente 34 casos agudos foram descritos, 29 deles por Chagas, no Brasil, enquanto centenas foram registrados após a descrição de Romaña. Pellegrino (1954), reforça estes dados, informando que, apenas nos dez meses que se seguiram à descrição, 139 casos agudos foram publicados, em grande maioria portadores do sinal de Romaña. Nas revisões disponíveis sobre o tema, a ocorrência do sinal aparece em média entre 50 e 70% dos casos agudos por via vetorial detectados em diferentes áreas endêmicas, sendo que na casuística do próprio Mazza, computados 1.232 casos, 61,3% apresentavam o sinal. Em outras séries importantes, Lugones descreve o sinal em 81,5% dentre 601 casos na Argentina, contra 96% de Talice e Rial (no Uruguai, 100 casos); no Brasil, Rassi encontra 57% em Goiás, H. Ferreira detecta 39,2% em Uberaba e Dias et al. 49,2% em Bambuí, MG. Hoje há um consenso geral sobre o valor relativo do complexo oftalmo ganglionar, no sentido de que segue sendo o mais chamativo dos quadros indicadores da esquizotripanose aguda em áreas de transmissão vetorial, apresentando uma especificidade razoável, embora uma série de entidades possa provocar quadro semelhante. Na verdade, em área endêmica a imensa maioria dos casos agudos passa desapercebida, devendo o sinal de Romaña incidir, de fato, em uma parcela provavelmente menor que 50% dos que se infectam. Na verdade, entretanto, é tão chamativo e de fácil associação (ademais de tão propalado, desde sua descrição), que seus portadores são encaminhados ao médico muitas vezes já com a suspeita da família ou do primeiro atendente, constituindo-se de certa forma uma ponta de iceberg no quadro da doença de Chagas aguda. Historicamente, inclusive, especula-se se o próprio Romaña não teria sido influenciado – em suas primeiras buscas- pelas fotos de alguns casos de Chagas e de alguns dos primeiros casos agudos argentinos, que Mazza fez circular no País, ao tentar motivar os médicos do interior quanto à doença. A polêmica seguiu durante alguns anos, especialmente entre Mazza e Emmanuel Dias, que havia proposto o nome do sinal e defendia a precedência e exatidão da descrição de Romaña, amigo que acolheu em Manguinhos por alguns anos. Foi o sinal de Romaña que desencadeou o importante trabalho de Bambuí, Brasil, chamariz para a descoberta do primeiro caso agudo na área por Torres Sobrinho e Amílcar Martins, em outubro de 1940. Cecílio seguiu trabalhando, principalmente em Tucumán. Havia descrito o primeiro caso crônico na Argentina, em 1941, realizou trabalhos em epidemiologia, anatomia patológica e profilaxia, descrevendo com Abalos, em 1948, a ação eficaz do BHC contra os triatomíneos, concomitantemente ao trabalho de Dias e Pellegrino, no Brasil. Aprofundou seus estudos sobre o complexo oftalmo ganglionar e o reproduziu experimentalmente em macacos e outros mamíferos. Amava o Brasil, onde sempre foi acolhido e respeitado, especialmente no Instituto Oswaldo Cruz. Ao final dos anos 50, devido a pressões políticas, trasladou-se para Barcelona, passando a lecionar na Faculdade de Medicina. Em 1963 publicou o excelente compêndio Enfermedad/ de Chagas, tendo fundado, em 1979, um Comitê Internacionl de Luta contra a doença. Faleceu em fevereiro de 1997, aos 96 anos de idade. Mazza seguiu ativo e produtivo até sua inesperada morte, em Monterrey, México, 1946. Era um congresso médico internacional, oportunidade em que se reconciliou de forma muito terna e amistosa com Emmanuel Dias. Sentindo-se mal, foi atendido prestimosamente por este e por Francisco Laranja, infelizmente não sobrevivendo ao extenso infarto. É considerado o maior “chagólogo argentino”, responsável maior, indubitavelmente, pela retomada definitiva dos estudos sobre doença de Chagas. A MEPRA não lhe sobreviveu, como soe acontecer a similares instituições que vicejam apenas no relampejar fulgurante de grandes homens.
Na sequência de Mazza e Romaña, seguiu heroicamente a Argentina sua produção científica e seus esforços de luta contra a doença de Chagas. Nomes respeitáveis e conhecidos como Abalos, Rebosolán, Yanowsky, Cazzullo, Rosenbaum, Cerisola, Castagnino, Salica, Cichero, Segura, Bozzinni, Jörg, Basso, Storino, Manzullo, Madoery, Kuschnir, Alvarez, Lugones, Stopanni, Frash, Ripoll, Soza, Ledesma, Moya, W. Colli, Chiale, Cosio, Carcavallo, Sosa-Estani, Ortega, Salomón. Leguizamón, Ruiz, Sica, Freilij, Castagnino, Titto, Alderette, Zerba, Schmunis, Mouso, Marteleur, Yosa, Posse, Milei, Sgaminni, Rabinovich, Cura, Freire, Niño, Salica, Bravo, Zerba, Gurtler, Pérez, Brenner, Gonzalez-Cappa, Fatalla, Rowheder, Cura, Del Ponte, Berjarano, Bonet, Bocca Tourres, Wygodzinsky e vários outros produziram e seguem produzindo importantes aportes ao conhecimento e o enfrentamento da esquizotripanose. Da Argentina vieram importantes aperfeiçoamentos para o diagnóstico parasitológico e imunológico da doença, assim como fundamentais aportes ao melhor conhecimento e manejo da cardiopatia crônica chagásica. É inconteste a liderança nacional do Instituto Fatala Chaben, na capacitação ao diagnóstico e tratamento específico para todo o país, assim como foi de suma relevância o Programa de Salud Humana de Pilar Alderette, instrumentando em toda a zona endêmica regional os recursos humanos e materiais para, durante dez anos, enfrentar-se e prevenir-se a doença. Deste trabalho, embasado no Comitê Internacional criado por Romaña em 1979 (vide retro), e somado a uma impressionante unidade de pensamento e propósitos da comunidade científica latino americana envolvida com a tripanossomíase, originou-se em 1991 a vitoriosa Iniciativa do Cone Sul contra a Doença de Chagas, lançada em reunião dos ministros da área e liderada pelas delegações da Argentina e do Uruguai. Extraordinária evolução têm tido os estudos sobre a esquizotripanose na Argentina, em todos os setores. Pontificam as investigações bioquímicas, moleculares, genéticas e de tratamento específico, ao lado de ingentes esforços por otimizar e consolidar a luta anti vetorial. Cerca de 100% dos bancos de sangue estão controlados, mas ainda restam bolsões de transmissão vetorial e congênita no país. Novas gerações de pesquisadores vêm se formando e o interesse pela doença não decaiu, renovado, a cada ano, em múltiplas oficinas de estudo e na participação de pesquisadores e sanitaristas em seminários regionais, como de Uberaba e Caxambu. Releva notar, finalmente, o grande impacto e o bom serviço que a Federação Argentina de Cardiologia vem prestando ao mundo com seu “Foro Virtual sobre la Enfermedad de Chagas”, conduzido initerrupta e eficazmente há cinco anos, na Internet, por Edgardo Schapachnick e seus companheiros.
Patologia
A história da patologia da doença de Chagas
Zilton A. Andrade
Laboratório de Patologia Experimental. Centro de Pesquisa Gonçalo Moniz/Fiocruz
E-mail: zilton@cpqgm.fiocruz.br
Logo depois que Chagas, em 1909, fez a descoberta do Trypanosoma cruzi e da doença que o mesmo causava, Gaspar Vianna, em 1911, fez o estudo da sua patologia, como um coroamento para o grande feito científico de Chagas. Os estudos que se seguiram com Magarinos Torres, Crowell, Jorg e Mazza fizeram com que os dados fundamentais da patologia da doença de Chagas já estivessem consolidados por volta da metade do século XX. Daí para cá as contribuições não cessaram, evidenciaram a grande complexidade da patogenia da doença, e vêm servindo como estímulo para o desenvolvimento da nossa ciência experimental.
O desenvolvimento histórico dos conhecimentos sobre a doença de Chagas apresenta um aspecto curioso. O interesse por cada uma das formas com que a doença se apresenta tem surgido separadamente no tempo, o que se deve a causas diversas. Parece que, em uma determinada época, o interesse concentra-se sobre uma fase ou forma clínica da doença. Este relato utiliza este fato para descrever brevemente os progressos no estudo da patologia da doença de Chagas, e procura mostrar os motivos desta concentração de interesse para diferentes formas clínicas em diferentes épocas.
Forma aguda da doença de Chagas
Podemos considerar um primeiro período, que vai de 1909 até fins da década de 1930, quando o interesse pelo estudo da doença esteve centrado na sua forma aguda (Figura 1). Embora tenha Carlos Chagas desde cedo começado a investigar diversas formas clínicas da doença, inclusive uma forma nervosa, as publicações que apareciam davam a impressão de que esta se concentrava na zona rural. A descrição do sinal do olho ou sinal de Romaña (1935), bem como dos chagomas cutâneos e dos lipo-chagomas, facilitava o reconhecimento do caso e servia para ilustrar as várias publicações a partir da década de 1930. O estudo da mInstituto Oswaldo Cruzardite difusa, com o seu agente causal no interior das fibras contráteis, já vinha acompanhado de interpretações patogenéticas. Quando o interesse pelo estudo da nova doença tinha inexplicavelmente diminuído entre os brasileiros, foram as seguidas publicações de casos agudos feitas pelo grupo de Mazza na Argentina que vieram trazer novo alento para a retomada dos estudos.
A forma crônica cardíaca
A partir de meados da década de 1930, e se estendendo pelos 30 anos seguintes, o interesse se concentrou na forma crônica cardíaca da doença (Figura 2) . O grande fator motivador desta tendência foi a entrada do eletrocardiógrafo em uso cada vez mais comum nos hospitais e consultórios médicos, aliado à detecção progressiva de um número assustador de casos da cardiopatia crônica, mesmo entre a população urbana. A partir dos estudos de Francisco Laranja e colaboradores, os cardiologistas nas grandes cidades dos países da América, onde a doença é endêmica, se surpreenderam ao constatar uma patologia miocárdica crônica, progressiva e grave, que exibia um matiz variado de arritmias, isoladas ou conjugadas, como ainda não tinha sido visto em qualquer outra cardiopatia. A patologia cardíaca foi detalhadamente investigada em material de necropsias e os achados observados foram correlacionados com as manifestações clínicas e eletrocardiográficas, aparecendo em destaque os fenômenos trombo-embólicos. A raridade com que os parasitos eram encontrados nas secções, ao contrário do que acontecia com a forma aguda, levantava discussões para o diagnóstico histopatológico e para a interpretação da patogenia.
A Forma digestiva
Por volta dos anos 1960 houve um surto de interesse para a forma digestiva da doença (Figura 3). A obtenção de antígenos purificados e bem padronizados, bem como a introdução de novas técnicas, melhoraram a sorologia a tal ponto que muitos passaram a ter mais confiança nos resultados da mesma. Daí foi um passo para se testar uma teoria mantida de longa data por médicos do Brasil Central que trabalhavam numa área onde a doença de Chagas, o megaesôfago e o megacólon eram endêmicos: que os megas digestivos eram uma manifestação da doença de Chagas. Eles juntavam então às evidências clínicas e epidemiológicas estudos sorológicos bem confiáveis, e viram que os portadores de megaesôfago e megacólon de fato exibiam sistematicamente uma sorologia positiva para o Trypanosoma cruzi. Seguiram-se os estudos sobre patogenia, capitaneados por Fritz Koeberle, de Ribeirão Preto, centrados na possibilidade de uma nova patologia que afetava, difusa e primordialmente, o sistema nervoso autônomo. Embora os postulados fundamentais desta teoria (que indicavam a doença de Chagas como uma doença do sistema nervoso autônomo, sendo a cardiopatia crônica, uma cardiopatia neurogênica) não tenham sido confirmados, os estudos anatômicos contribuíram decisivamente para o reconhecimento da forma digestiva da doença de Chagas, justamente pelos amplos debates que suscitaram.
A forma crônica indeterminada
Desde 1983, quando foi instalado o programa oficial de combate ao Triatoma infestans com inseticidas de ação residual nas moradias, estamos presenciando uma redução drástica da transmissão que se reflete no quase desaparecimento das formas agudas da infecção, numa baixa reatividade sorológica de escolares nas áreas endêmicas, e num decréscimo da morbidade e da mortalidade nas formas crônicas, como descrito por Dias e colaboradores. A forma indeterminada passou a ser hoje em dia a forma mais frequente de todas (Figura 4). Embora seja uma forma relativamente benigna, é surpreendente quão pouco ainda conhecemos sobre o significado e a patogenia desta forma da doença de Chagas. Por isso o seu estudo nestes tempos de controle da transmissão é uma prioridade para os interessados nos problemas da doença.
Na realidade, o interesse pela forma indeterminada da doença de Chagas surgiu desde os tempos iniciais dos estudos, quando foram encontrados indivíduos infectados, mas sem a doença. A idéia inicial era que eles fossem “cardíacos potenciais”, que viriam a morrer subitamente. Esta noção revelava a falta de um critério seguro para se separar a forma indeterminada dos portadores da doença de Chagas assintomáticos. Tal critério foi estabelecido pela Sociedade Brasileira de Medicina Tropical em seu encontro de 1985, o que veio a representar um progresso para os estudos longitudinais, clínicos e patológicos (Figura 5). Os estudos anatômicos têm revelado que os portadores da doença de Chagas assintomáticos, que vieram a morrer subitamente, pertenciam na realidade à forma crônica cardíaca da doença. Os verdadeiros portadores da forma indeterminada costumam apresentar apenas uma discreta mInstituto Oswaldo Cruzardite focal ao exame microscópico. Os estudos experimentais têm revelado que tais focos de mInstituto Oswaldo Cruzardite têm uma evolução cíclica, surgindo após estímulo parasitário, e se resolvendo por apoptose das células inflamatórias e re-absorção do excesso de matriz extracelular (Figura 6). Esta evolução pode ocorrer por tempo prolongado, sem maior repercussão sobre o paciente, desde que não ocorra uma, até agora imprevisível, mudança do padrão imunopatológico, como revisto por Andrade e colaboradores em 1997. A elucidação do significado da forma indeterminada e do mecanismo de sua transição para a forma crônica cardíaca constituem um dos grandes desafios para o estudo da patologia da doença de Chagas nos dias atuais.
Cardíaca
A forma cardíaca da doença de Chagas – Histórico
Anis Rassi
Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO, Brasil
E-mail: anisrassi@arh.com.br
Simone Petraglia Kropf
Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Email: simonek@coc.fiocruz.br
Carlos Chagas, em seus primeiros trabalhos sobre a nova tripanossomíase humana descoberta por ele em 1909, apontou a importância das alterações cardíacas derivadas da ação patogênica do Trypanosoma cruzi, na fase aguda e, sobretudo, na fase crônica da infecção. Os dados histopatológicos produzidos por Gaspar Vianna, também pesquisador do Instituto de Manguinhos, foram fundamentais para a caracterização destas alterações. Nas autópsias que realizou, Vianna localizou parasitos em grande número no interior das células cardíacas, de casos agudos, com intenso processo inflamatório em torno, após a ruptura da célula parasitada.
Ao apresentar, em 1910, a primeira sistematização detalhada do quadro clínico da doença, Chagas designou a forma cardíaca como uma das formas da infecção crônica, a se expressar por arritmias ocasionadas pelas lesões do miocárdio pelo T. cruzi. Tal fenômeno, afirmou, era de “frequência impressionante e seguramente nunca observada” em outras cardiopatias. Seus sinais peculiares eram, segundo Chagas, certos distúrbios da excitabilidade, como as extra-sístoles e, em menor grau, perturbações na condução do estímulo, como o bloqueio cardíaco completo, publicado no artigo “Nova entidade morbida do homem” no Brasil Médico em 1910.
Em 1911, a relevância da forma cardíaca foi novamente destacada. Apesar da ênfase nos elementos tireoidianos que vinha marcando suas formulações – e que o levou a referir-se à nova tripanossomíase como “tireoidite parasitária”, Chagas observou que, em muitos casos, as irregularidades do ritmo cardíaco eram “o fenômeno mais facilmente apreciável, que primeiro fere a atenção do observador, salientando-se como elemento capital nos dados fornecidos pela semiótica física”, como publicado por Chagas em 1911 nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz.
Chagas salientava a gravidade do prognóstico desta forma clínica, que, numa frequência incomum, levava à morte repentina, por assistolia, indivíduos jovens, que muitas vezes aparentavam gozar de boa saúde. Este aspecto seria progressivamente valorizado como elemento de especificidade na definição da nova entidade nosológica e como evidência de seu impacto médico-social, pela perda de vitalidade que causava entre trabalhadores em plena idade produtiva, nas áreas rurais afetadas pela tripanossomíase.
Carlos Chagas é reconhecido como pioneiro na introdução da eletrocardiografia no Brasil, sendo de 1912 a primeira referência, em seus trabalhos, ao registro elétrico dos batimentos cardíacos. À época, o eletrocardiógrafo – inventado em 1901 pelo holandês William Einthoven – era de galvanômetro de corda, de difícil manejo, sobretudo no que diz respeito à estabilidade dos dispositivos para a obtenção dos traçados. Além disso, o registro se fazia em papel fotográfico.
Em 1916, em função de questionamentos a suas teses sobre os distúrbios endócrinos e neurológicos atribuídos à infecção pelo T. cruzi (particularmente à concepção da etiologia chagásica do bócio endêmico), Chagas procedeu a uma importante revisão de seus estudos. A partir de então, retrocederia no relevo conferido aos aspectos tireoidianos e reforçaria, progressivamente, os aspectos cardíacos. No contexto do debate nacionalista intensificado com a I Guerra Mundial, o chamado movimento sanitarista – do qual Chagas era liderança, ao lado de Miguel Pereira, Belisário Penna e Monteiro Lobato – projetou na cena pública a importância social da endemia chagásica. Os prejuízos ao trabalho rural causados pela forma cardíaca eram um dos elementos a justificar as reivindicações pela intervenção do Estado em prol do saneamento rural do Brasil.
Em 1922, em parceria com Eurico Villela, Chagas publicou um extenso trabalho sobre a forma cardíaca da tripanossomíase americana, onde foram apresentados, detalhadamente, os principais sinais físicos do esgotamento progressivo do órgão (como os sinais de insuficiência cardíaca e o aumento no volume do coração, por exemplo), os sintomas subjetivos referidos pelos pacientes (como o “avexume” ou o “baticum”), a evolução dos processos patológicos e as experiências com drogas para tratamento das arritmias. Segundo os autores, a forma cardíaca deveria ser vista como “a característica clínica por excelência da tripanossomíase americana”; as arritmias características desta cardiopatia, afirmavam, constituíam elementos clínicos suficientemente individualizados para garantir o diagnóstico diferencial daquela entidade nosológica, bem como para “avaliar o índice endêmico da doença”, como descrito por Chagas e Villela.
Na conferência que proferiu em 1923 – ao fim da célebre polêmica travada na Academia Nacional de Medicina em torno de seus trabalhos – Chagas afirmou que, mesmo que se refutassem os enunciados relativos ao bócio e a outros aspectos de suas formulações, não se podia duvidar dos “sinais iniludíveis” que fundamentavam a tripanossomíase americana como entidade clínica real e específica. Mais uma vez, apontou a forma cardíaca como “o aspecto mais interessante e característico da tripanossomíase americana”, a fundamentar a especificidade clínica e a importância epidemiológica da doença.
Nos anos seguintes, e até o seu falecimento em 1934, Chagas prosseguiria em seus estudos sobre este aspecto da doença que leva seu nome. Um indício da importância deste caminho de pesquisa foi a trajetória de seu próprio filho Evandro, que se dedicou ao estudo clínico e eletrocardiográfico da cardiopatia chagásica, especialmente na fase aguda.
A idéia de que o estudo da forma cardíaca era a via preferencial para superar as dúvidas que cercavam a definição clínica e a dimensão geográfica da tripanossomíase americana foi expressa em revisão realizada pelo parasitologista inglês Warrington Yorke em 1937.
“There seems, on the whole, to be a prima facie case that American trypanosomiasis may actually be responsible for a good deal of the heart disease which is apparently so common in certain endemic areas in Brazil, Uruguay and the Argentine, and the cause of so many early deaths. (…) If this should eventually prove to be the case, then American trypanosomiasis will indeed assume a pathological significance of the first magnitude. The subject is obviously one which urgently requires much further work”.
Esta diretriz foi justamente uma das dimensões do trabalho realizado, na década de 1940, no Centro de Estudos e Profilaxia da Moléstia de Chagas, posto do Instituto Oswaldo Cruz criado, em 1943, na cidade de Bambuí em Minas Gerais. Os avanços nesse sentido se deveram basicamente às pesquisas realizadas por Emmanuel Dias, discípulo de Chagas em Manguinhos e diretor do posto, Genard Nóbrega, do Hospital Evandro Chagas, e por Francisco Laranja, cardiologista com vasta experiência clínica e em eletrocardiografia. Na época, este era um campo que passava por expressivos aperfeiçoamentos técnicos, sobretudo em função da contribuição do norte-americano Frank Wilson, que estabeleceu as derivações precordiais múltiplas como procedimento a conferir maior precisão ao exame dos distúrbios elétricos do coração. A própria cardiologia vivia um importante processo de institucionalização como especialidade distinta no campo médico. Em 1943, foi fundada a Sociedade Brasileira de Cardiologia.
Realizando exames sistemáticos nos possíveis portadores da infecção chagásica em Bambuí e regiões vizinhas do oeste mineiro, Laranja, Dias e Nóbrega vieram a estabelecer um quadro eletrocardiográfico detalhado da cardiopatia chagásica crônica, individualizando-a como entidade clínica diante de outras cardiopatias e garantindo os meios para que ela fosse reconhecida não apenas por especialistas, mas pelos clínicos em geral.
Em 1945, foram apresentados os primeiros resultados deste estudo eletrocardiográfico, feito num universo diversificado em termos de faixa etária e de tempo de infecção. Dos 183 indivíduos classificados como casos crônicos mediante teste sorológico ou xenodiagnóstico, 90 (49,2%) tiveram eletrocardiogramas que evidenciavam lesão no miocárdio. Tal trabalho, uma das principais referências da contribuição do posto de Bambuí ao estudo clínico da doença de Chagas, consolidava noção de que a forma cardíaca crônica constituía “a verdadeira expressão clínica da doença”. Mesmo a forma indeterminada, na qual se encontraram cerca de 50% dos doentes crônicos, foi então definida em referência à cardiopatia, na medida em que, segundo tais autores, os indivíduos assintomáticos apresentavam-se como “cardíacos potenciais”, que, a qualquer momento, poderiam ser surpreendidos pelos efeitos da ação do parasito sobre seu coração, como descrito por Dias, Laranja e Nóbrega.
Como sinais mais indicativos da cardiopatia chagásica crônica, Dias, Laranja e Nóbrega apontaram (i) os distúrbios da condução do estímulo e, além dos (ii) bloqueios aurículo-ventriculares (especialmente o bloqueio A-V total), destacaram a importância do (iii) bloqueio do ramo direito (BRD), cuja detecção se tornava possível graças às modernas técnicas eletrocardiográficas. Além destes, outro sinal que viria a ser apontado, mediante os estudos de Bambuí, como “evidência sugestiva” para o diagnóstico da cardiopatia chagásica crônica foram as (iv) extrassístoles ventriculares, já apontadas por Chagas como arritmia característica da tripanossomíase americana crônica.
À medida que aumentava o número de casos identificados pelo posto de Bambuí, consolidavam-se os conhecimentos sobre a forma cardíaca da doença de Chagas. Em 1948, em outro grande trabalho de revisão, baseado na análise de mais de 600 casos da doença, Laranja, Dias e Nóbrega forneceram novos dados sobre o quadro eletrocardiográfico específico desta cardiopatia – “um dos mais variados e curiosos que se encontra em cardiopatologia” – apontando as manifestações clínicas relacionadas.
A realização de inquéritos entre indivíduos não previamente selecionados veio, por sua vez, reforçar os argumentos quanto à especificidade desta entidade clínica, mostrando que o padrão eletrocardiográfico dos casos estudados em Bambuí era encontrado em outros grupos de população em áreas endêmicas. Em 1947, Dias, Laranja e o médico mineiro José Pellegrino examinaram 312 indivíduos entre trabalhadores da Rede Mineira de Viação e suas famílias, comprovando, mediante os eletrocardiogramas, a alta prevalência dos sinais peculiares da cardiopatia chagásica crônica entre os que possuíam reação sorológica positiva para a infecção pelo T. cruzi. Este estudo, publicado em 1948, foi pioneiro por utilizar o método eletrocardiográfico como critério de investigação epidemiológica. O inquérito realizado, por Pellegrino e Borrotchin em 1948, entre pacientes do Hospital da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte também confirmou a importância da infecção chagásica como fator etiológico de problemas cardiovasculares em áreas com alta frequência de triatomíneos.
Além do argumento epidemiológico, outro argumento importante quanto à especificidade da cardiopatia chagásica foi a reprodução, por Pellegrino, em cães inoculados experimentalmente com o T. cruzi, de uma cardiopatia crônica com as mesmas características eletrocardiográficas, radiológicas e clínicas encontradas nos seres humanos. Ao mesmo tempo, os avanços produzidos, na época, nos métodos de diagnóstico sorológico, em especial na reação de fixação do complemento (reação de Guerreiro e Machado), facilitavam o reconhecimento dos casos de infecção crônica, corroborando os dados da pesquisa clínica.
Em decorrência deste conjunto de pesquisas, Laranja, Dias e Nóbrega declararam, em 1948, que a experiência adquirida em Bambuí permitia-lhes a convicção de que a tripanossomíase americana em sua fase crônica “encontra expressão clínica essencialmente em uma cardiopatia bem definida em seus caracteres anátomo-patológicos, clínicos, radiológicos e eletrocardiográficos, permitindo-lhes individualização segura”. Sintetizando a contribuição do posto de Bambuí, Laranja considerou-a o início de uma nova fase na “história acidentada” da doença de Chagas, em que o reconhecimento da cardiopatia chagásica crônica como “entidade clínica de realidade indiscutível” propiciou a superação do “ceticismo generalizado” que se impusera sobre o assunto depois da fase inicial da descoberta e dos primeiros estudos de Chagas e seus colaboradores, como descreveu Laranja em 1949. Os trabalhos de Laranja, Dias Nóbrega e Miranda seriam internacionalmente difundidos, em 1956, na prestigiosa revista norte-americana Circulation, em artigo que seria um dos mais citados da literatura sobre a doença de Chagas.
Na década de 1950, uma contribuição importante aos estudos sobre a cardiopatia chagásica foram os trabalhos do patologista austríaco Fritz Köberle, contratado em 1953 pela recém-criada Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Suas pesquisas contribuíram para explicar, em parte, a patogenia das alterações morfológicas e funcionais específicas da cardiopatia chagásica crônica. Segundo ele, tais alterações tinham como fator determinante um processo de desnervação ocasionado por lesões no sistema nervoso autônomo do coração, à semelhança do que encontrou em outros órgãos, principalmente o esôfago e o cólon.
A segunda metade do século XX foi bastante pródiga no avanço diagnóstico e terapêutico da cardiopatia chagásica crônica, que, pelo seu potencial de morbimortalidade, representa sério problema de saúde pública, e tem como manifestações três síndromes: (i) a arrítmica, (ii) a insuficiência cardíaca e (iii) a tromboembólica, que se apresentam isolada ou associadamente e cuja gradação depende do estádio evolutivo da moléstia. No geral, as síndromes de insuficiência cardíaca e do tromboembolismo comportam-se como as de outras mInstituto Oswaldo Cruzardiopatias, porém, a arrítmica, por sua frequência, variedade, qualidade e gravidade, faz da cardiopatia chagásica crônica um modelo invulgar para investigação clínica, terapêutica, eletrocardiográfica, eletrofisiológica e prognóstica. Cansaço e dispnéia a esforços cada vez menores, palpitação, pré-síncope e síncope são sintomas que se fazem presentes nos cardiopatas portadores da doença de Chagas, cumprindo assinalar que há casos de cardiopatia (principalmente em seu estágio inicial) sem nenhum sintoma; nesses casos o diagnóstico é lembrado pelo encontro de alteração eletrocardiógrafica sugestiva da etiológica (como bloqueio de ramo direito, hemibloqueio anterior esquerdo, extrassistolia ventricular e bloqueio atrioventricular de 1º, 2º e 3º graus) e sujeito à confirmação pela realização de provas sorológicas diagnósticas. O tromboembolismo se faz tanto para a grande circulação (cérebro, membros, rins, baço etc.), como para a pequena circulação (pulmões).
Tal avanço se deu graças à introdução de métodos laboratoriais, à invenção de aparelhos e à síntese de produtos farmacêuticos para melhor e mais aprofundadamente examiná-la e tratar suas diferentes manifestações. Foram tantas e de tal valor que tornaram obsoletos recursos até então relativamente novos.
O próprio eletrocardiógrafo recebeu vários aperfeiçoamentos, como a inscrição direta em papel termo-sensível, redução do peso e do tamanho – a permitirem torná-lo portátil – funcionamento a pilha – de grande utilidade em inquéritos populacionais de áreas rurais – automoticidade etc.
A eletrocardiografia dinâmica (Holter) e o teste ergométrico (inicialmente empregado com vistas ao estudo da cardiopatia isquêmica) tornaram-se, a partir da década de 1970, peças invulgares para quantificar e qualificar as arritmias taqui e/ou bradicardizantes, sintomáticas e, principalmente, as assintomáticas, orientando com acerto o tratamento. Tais métodos são também de grande valor na avaliação terapêutica de drogas anti-arrítmicas e, na detecção de eventual efeito pró-arrítmico das mesmas, na avaliação do funcionamento de marca-passo cardíaco artificial implantado, na avaliação médico-trabalhista e na identificação de pacientes sob maior risco de morte súbita cardíaca.
Da mesma forma, o ecocardiograma, que, do primitivo modo-M, em pouco tempo foi aperfeiçoado para bidimensional e, atualmente, dopller color, fornecendo dados da morfo-dinâmica cardíaca não suplantáveis por nenhum outro método não-invasivo de investigação. O ecocardiograma tornou-se mais valioso que o exame radiológico do coração ao permitir o estudo da contratilidade mInstituto Oswaldo Cruzárdica, ao determinar com maior precisão os diâmetros das cavidades, ao informar o valor da fração de ejeção ventricular e por detectar aneurisma ventricular e trombose intra-cardíaca. Restou ao exame radiológico o diagnóstico de estase vascular pulmonar.
O diagnóstico laboratorial sorológico da fase crônica da doença de Chagas foi modificado. A reação de Guerreiro-Machado, introduzida em 1913, foi substituída por métodos simplificados, como a hemaglutinação indireta, a imunoflorescência indireta e a ELISA, todas de sensibilidade e especificidade em torno de 98%. No diagnóstico parasitológico, o xenodiagnóstico ganhou modificações para aumentar sua sensibilidade, estando hoje melhor padronizado e podendo ser realizado pela técnica artificial ou indireta. Paralelamente, também o hemocultivo sofreu sensíveis avanços, permitindo obter-se uma sensibilidade diagnóstica até maior que a do xenodiagnóstico. Deve ser ressaltado que tanto o xenodiagnóstico como o hemocultivo são, fundamentalmente, exames realizados em laboratórios de pesquisa em pacientes submetidos a tratamento específico para avaliação dos resultados do mesmo.
Outro método, este semi-invasivo, de investigação da cardiopatia chagásica crônica, que passou a ser utilizado a partir de 1980, é representado pelo estudo eletrofisiológico intracardíaco, diagnóstico e terapêutico, realizado por meio de cateterismo, para estudo do sistema específico de condução, cujas indicações principais consistem em avaliação da função do nódulo sinusal, estudo dos bloqueios átrio e intra-ventriculares, diagnóstico diferencial entre taquicardia paroxística ventricular e taquicardia paroxística supraventricular com condução aberrante, reprodução de taquiarritmias malignas, localização de foco arritmogênico e ablação do mesmo transcateter utilizando corrente elétrica direta.
Sob o ponto de vista de tratamento medicamentoso também foi modelar o avanço. Diuréticos mercuriais cederam lugar, a partir da década de 1960, à furosemida e aos tiazídicos, mais potentes e menos tóxicos. Nos últimos anos, inibidores da enzima conversora da angiotensina, espironolactona, anti-adesivos plaquetários, anti-coagulantes e também betabloqueadores, incorporaram-se ao tratamento clínico da insuficiência cardíaca e do trombo-embolismo. Aqui, destaca-se também a introdução de novos anti-arrítmicos, especialmente da amiodarona, a partir da década de 1970, no tratamento das arritmias ventriculares, a melhorar sensivelmente o prognóstico da cardiopatia chagásica crônica.
Para as bradiarritmias, tristemente assistidas até então pelos cardiologistas e culminadas com a morte súbita, pela ineficácia do tratamento clínico, passou-se a contar a partir da década de 1960 com o recurso do marca-passo cardíaco artificial implantável (inicialmente, epimiocárdico, a exigir toracotomia e, depois, endocárdico por via transvenosa), que sofreu sucessivos aperfeiçoamentos com o correr dos anos. Tantos foram os aperfeiçoamentos, que, no jargão dos especialistas, diz-se que, antes, o portador de marca-passo tinha que adaptar-se a ele, ao passo que, hoje, é o marca-passo que se adapta às necessidades de quem o tem implantado; além disso, seu gerador é pequeno (3 cm de diâmetro e 0,5 cm de espessura) e leve (10 g). Para as taquiarritmias ventriculares (taquicardia ventricular sustentada e fibrilação ventricular) outro recurso elétrico foi inventado, e utilizado a partir da década de 1990. Trata-se do cardioversor-desfibrilador implantável, que, conforme a programação, dispara um choque, praticamente não percebido pelo seu portador, face a uma taquicardia paroxística e, obrigatoriamente, durante uma fibrilação ventricular, ocasião em que o paciente se encontra inconsciente (síncope). Também ele, primitivamente, como o marca-passo, era de grandes proporções e pesado. Hoje, porém, suas dimensões e peso diminuíram muito, a ponto de permitirem implante transvenoso, e mais, apresentam também função de marca-passo, para tratar eventual bradiarritmia que, com relativa frequência se associa à taquiarritmia na cardiopatia chagásica crônica.
Para os casos terminais de cardiopatia chagásica crônica, principalmente de insuficiência cardíaca irredutível, o transplante cardíaco se apresenta como solução. Em seu histórico há dois períodos: (i) o primeiro, de 1967 (quando foi realizado por Christian Barnard) a 1980, e (ii) o segundo, após 1980, período em que novas drogas imunodepressoras foram incorporadas ao tratamento, melhorando, sensivelmente, o prognóstico. Data de 1985 a realização do primeiro transplante cardíaco em chagásico crônico, tendo sido feitos, até o presente, algumas centenas de casos em 57 hospitais credenciados, com resultados tão bons ou até melhores do que os efetuados por cardiopatia de outra etiologia. No contexto, há que considerar o T. cruzi, face ao uso de imunodepressores, que podem provocar reativação da infecção. Não há consenso sobre o uso profilático de tripanossomicida antes ou após a cirurgia. Somos de opinião, com base empírica, que deve ser realizada (no pré-operatório se as condições gerais do paciente o permitirem) ou, caso contrário, no pós-operatório imediato, usando benznidazol (5 mg/kg/dia durante 60 dias).
Outro recurso para o tratamento de cardiopatia chagásica crônica grave foi recentemente adotado por um grupo de pesquisadores da Bahia, liderado por Ricardo Ribeiro dos Santos, que consistiu no implante de células-tronco de medula óssea do próprio paciente, com base em dados de literatura. Como os resultados iniciais deste estudo foram promissores, o Ministério da Saúde proporcionou um ensaio multicêntrico, nacional, duplo-cego, placebo-controlado, já em andamento, para averiguar o real valor do método. Serão incluídos 300 pacientes com cardiopatia chagásica crônica (classe funcional III e IV da NYHA), metade dos quais será tratada com células-tronco de medula óssea em injeção intra-coronária e a outra metade com placebo. Aguardemos o resultado.
Todos esses avanços diagnósticos e terapêuticos permitiram, gradativamente, a otimização da atenção ao chagásico, modificando o prognóstico da cardiopatia chagásica crônica na segunda metade do século XX, a favor de uma melhor qualidade e maior quantidade de vida.
Paralelamente a todas as conquistas semiotécnicas e terapêuticas observadas na segunda metade do século XX, ocorreu grande incremento do estudo da cardiopatia chagásica crônica sob todos seus aspectos, tornando-a assunto obrigatório e frequente em congressos médicos e reuniões afins, bem como a formação de núcleos de pesquisa em diversos centros: Ribeirão Preto (SP), Goiânia (GO), Belo Horizonte (MG), Uberaba (MG), São José do Rio Preto (SP), São Paulo (SP), Salvador (BA), Rio de Janeiro (RJ), Brasília (DF), Recife (PE), Uberlândia (MG), Campinas (SP).
Forma digestiva da doença de Chagas
Resenha histórica
Joffre Marcondes de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás
Membro titular fundador da Sociedade Brasileira de História da Medicina
E-mail: jmrezende@cultura.com.br
Desde a descoberta da doença de Chagas em 1909 que a mesma passou a ser considerada uma das possíveis causas do mal de engasgo, afecção endêmica existente no Brasil, cuja sintomatologia é a mesma da acalásia do esôfago, de ocorrência universal. Caracteriza-se pela perda do peristaltismo esofagiano e falta de relaxamento do esfíncter inferior às deglutições, o que acarreta dificuldade de ingestão dos alimentos, que ficam em grande parte retidos no esôfago, causando a progressiva dilatação deste órgão. A semelhança das duas afecções levou muitos autores a acreditar que se tratasse de uma mesma e única entidade mórbida. O que as distinguia era a inusitada frequência do mal de engasgo em certas regiões do Brasil, em contraste com a raridade da acalásia em qualquer país do mundo. Para se ter idéia da incidência do mal de engasgo no Brasil, basta dizer que a casuística relatada em trabalhos publicados por apenas cinco autores, entre 1939 e 1993, alcançou a soma de 7.435 casos.
Para explicar este fato foram aventadas várias hipóteses, admitindo-se a ação de fatores ambientais, de natureza tóxica, infecciosa ou alimentar, que poderiam estar contribuindo para o caráter endêmico da afecção. Pensou-se na ação tóxica de uma variedade de mandioca consumida pela população rural, na malária e outras doenças infecciosas, na desnutrição de modo geral ou na carência específica de vitamina B1 na alimentação.
No livro Brazil and Brazilians, publicado em 1857, seus autores, dois missionários norte-americanos, baseados nas informações de um médico que clinicava em Limeira, no estado de São Paulo, descreveram o mal de engasgo como “uma nova doença”, que grassava no interior do País, de “Limeira até Goiás”. A identidade deste médico só recentemente foi revelada.
Arthur Neiva e Belisário Penna, em sua célebre viagem científica pelo interior do Brasil, realizada em 1912, descreveram com grande riqueza de detalhes o mal de engasgo do ponto de vista clínico e epidemiológico; chegaram a cogitar de uma causa infecciosa para a endemia, como se depreende de seu experimento injetando sangue de um doente em preá, porém não a relacionaram com a doença de Chagas.
A primeira referência documentada à possibilidade da etiologia chagásica do mal de engasgo é do próprio Carlos Chagas em seu trabalho sobre a forma aguda da tripanossomíase, publicado em 1916. Suspeitando da relação etiológica entre as duas endemias, assim se expressou: “será o mal de engasgo um elemento a mais da Trypanosomíase brasileira e essa disfagia das formas agudas traduzirá a fase inicial da syndrome?”. E, mais adiante, concluiu. “tornam-se precisas novas pesquizas que autorizem, de modo irrecusável, incluir o mal de engasgo na sintomatologia multiforme da infecção pelo Trypanosoma cruzi“. É digno de nota o fato de Chagas ter-se referido ao mal de engasgo como síndrome e não como doença.Por razões inexplicáveis, os estudiosos da doença de Chagas, na época, ou desconheceram as palavras de Chagas ou não se sentiram motivados para empreender as novas pesquisas que se faziam necessárias.
Passaram-se os anos e só na década de 30 surgiram os primeiros estudos sobre a patologia do mal de engasgo, realizados por pesquisadores paulistas. Moacyr Amorim, Alípio Correa Netto e Eduardo Etzel lançaram novas luzes para clarificação do problema. Demonstraram eles a existência, no mal de engasgo, de lesões degenerativas do plexo mientérico de Auerbach, não somente na parede do esôfago como em todo o trato digestivo. Este achado permitiu unificar em uma só entidade o mal de engasgo e a dilatação do cólon, comumente encontrados no mesmo paciente.
A dilatação do cólon denominava-se megacólon; por analogia, considerando-se que o esôfago também se apresenta dilatado, adotou-se para o mal de engasgo a denominação de megaesôfago proposta por von Hacker em 1907 para os casos de acalásia idiopática. Desde então, as duas condições foram consideradas manifestações de uma mesma afecção.
As lesões degenerativas do sistema nervoso entérico foram atribuídas à carência de vitamina B1 na alimentação, conforme a teoria defendida por Eduardo Etzel em 1935, teoria esta que foi bem aceita pela comunidade científica nacional e internacional, perdurando até a década de 50.
Por outro lado, o mal de engasgo sempre foi objeto de investigação por parte dos médicos que trabalhavam no interior, tanto do ponto de vista clínico como epidemiológico. Constituía uma observação frequente a presença no mesmo paciente de megaesôfago e cardiopatia chagásica. Dados de natureza epidemiológica indicavam que o mal de engasgo era uma endemia própria da zona rural; os habitantes das cidades acometidos pelo mal, com raríssimas exceções, haviam residido em fazendas ou pequenos povoados.
Em Goiânia, Joffre Rezende verificou que a afecção incidia principalmente em famílias de baixa renda que viviam em habitações precárias construídas de pau-a-pique com paredes barreadas, onde se colonizavam triatomíneos hematófagos, e que o maior número de casos de megaesôfago atendidos em hospitais da cidade procedia de municípios do interior do Estado com alto índice de infecção natural dos triatomíneos pelo Trypanosoma cruzi, conforme levantamento feito pelo Departamento Nacional de Endemias Rurais.
Tudo indicava que, assim como a cardiopatia, o megaesôfago era consequência da doença de Chagas.
Outro argumento que corroborava a hipótese da etiologia chagásica do megaesôfago endêmico residia no elevado índice de positividade da reação de fixação do complemento de Guerreiro e Machado em pacientes com megaesôfago ou megacólon, muito acima do encontrado em qualquer grupo não selecionado da população de áreas endêmicas. A primeira pesquisa neste sentido foi realizada por Eurico Vilela em 1930, na cidade de Belo Horizonte. Em 186 pessoas investigadas, 53 (28,5%) tinham a reação de Guerreiro e Machado positiva, ao passo que em 13 pacientes com megaesôfago, oito eram positivos (61,5%). Também em Belo Horizonte, Melo Alvarenga procedeu à reação de Guerreiro e Machado em 16 casos de megaesôfago, encontrando-a positiva em oito (50%). As baixas percentagens obtidas deviam-se à pouca sensibilidade do antígeno empregado. Com o aperfeiçoamento deste, na década de 40, Pedreira de Freitas obteve 91,2% em 80 casos de megaesôfago e megacólon, e Laranja, Dias e Nóbrega, 97,0% em 81 casos. Diversos outros autores registraram elevado índice de positividade da reação de Guerreiro e Machado em pacientes de megaesôfago e megacólon.
Apesar de toda a evidência clínica, epidemiológica e sorológica, ainda havia opositores à etiologia chagásica dos megas. Baseavam-se nos seguintes argumentos teóricos de uma lógica aparente, quais sejam: o megaesôfago não ocorre em todas as regiões endêmicas da doença de Chagas, como a Venezuela e os países da América Central; a grande maioria dos portadores da doença de Chagas não apresenta megaesôfago ou megacólon; a alta positividade da reação sorológica pode ser explicada pela superposição de duas áreas endêmicas, a exemplo do que ocorreu com a Doença de Chagas e o bócio endêmico; não foram encontrados parasitos na parede do esôfago ou do cólon de casos autopsiados; o megaesôfago é a mesma acalásia do esôfago, encontrada onde não há doença de Chagas; o megacólon pode ser devido a outras causas e também ocorre em regiões não chagásicas.
Nos Congressos Médicos do Triângulo Mineiro e Brasil Central, realizados a partir de 1947, o tema foi muito debatido e os médicos locais, alicerçados em sua vivência com o problema, sempre defenderam a etiologia chagásica dos megas contra todos esses argumentos.
A importância conferida nesses Congressos à doença de Chagas e ao megaesôfago endêmico pode ser apreciada no artigo de Porto e Porto, intitulado História do megaesôfago nos Congressos Médicos do Brasil Central. Neste artigo, os autores referem-se, em sequência cronológica, às contribuições mais relevantes e finalizam com as seguintes palavras:
“Nestes 13 congressos Médicos do Triângulo Mineiro e Brasil Central realizados de 1947 a 1965 o tema megaesôfago foi constante. Teve a aparência de insubordinação esta constância. Parecia uma atitude de protesto contra as cátedras… que silenciaram longo tempo sobre um mal comum difundido no Brasil e de conhecimento secular até dos curandeiros e benzedores”.
Além do tema megaesôfago, os Congressos de Triângulo Mineiro e Brasil Central também influenciaram no reconhecimento da gravidade da doença de Chagas como problema de saúde pública e na conscientização das autoridades sanitárias do País sobre a necessidade urgente de iniciar-se uma campanha de profilaxia dessa endemia. Neste sentido foi decisiva a participação de Emmanuel Dias e de outros chagólogos ilustres, dentre os quais Amilcar Viana Martins, José Pelegrino, Humberto Ferreira, Pedreira de Freitas.
Para a aceitação definitiva da etiologia chagásica do megaesôfago e megacólon faltava, entretanto, a comprovação anatomopatológica.
Esta comprovação coube a Fritz Koeberle. Austríaco de nascimento, Koeberle veio para o Brasil em fins de 1953, contratado para instalar e dirigir por um período de três anos, o Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Ao fim de seu contrato, decidiu permanecer no Brasil; naturalizou-se brasileiro, revalidou seu diploma de médico e prestou concurso para professor catedrático, tornando-se titular daquela Faculdade até sua aposentadoria em 1976. Interessou-se desde o início pelo problema do mal de engasgo e sua possível relação com a doença de Chagas. Após rever a literatura existente a respeito, convenceu-se de que a tripanossomíase era a verdadeira causa do megaesôfago e megacólon endêmicos no Brasil. De um lado, os dados clínicos, epidemiológicos e sorológicos convincentes da relação etiológica entre as duas endemias; de outro lado, os achados anatomopatológicos de lesões degenerativas do plexo mientérico de Auerbach em casos de megaesôfago autopsiados, lesões estas encontradas não somente nos segmentos dilatados, mas em todo o trato digestivo.
A principal função do plexo mientérico na parede do trato digestivo é de coordenar a motilidade em seus diferentes segmentos. Restava provar que aquelas lesões eram primitivas e a dilatação secundária às alterações motoras decorrentes da desnervação produzida pela infecção por T. cruzi.
Koeberle desenvolveu suas pesquisas em autópsias de portadores da doença de Chagas, em animais naturalmente infectados e na infecção experimental em animais de laboratório. Verificou haver na fase aguda da infecção parasitismo da parede muscular do trato digestivo e processo inflamatório envolvendo o plexo mientérico. Na fase crônica observou que a desnervação se apresenta de modo irregular, com distribuição e intensidade variáveis. Teve então a idéia de realizar estudo quantitativo dos neurônios do esôfago em autópsias de indivíduos não portadores e em portadores da doença de Chagas com e sem megaesôfago. Na contagem dos neurônios, que era feita no terço inferior do esôfago, a redução do número de neurônios mostrou-se muito variável. A desnervação era uma constante nos portadores da doença de Chagas, porém menos intensa naqueles casos de esôfago aparentemente normal. Concluiu, após comparar os casos com e sem megaesôfago, que a evolução da esofagopatia chagásica para um megaesôfago típico só ocorre quando a desnervação atinge um limiar, que foi estimado em 90%.
Estudos quantitativos foram igualmente feitos em relação ao cólon, os quais demonstraram que a desnervação não se restringe ao segmento dilatado, comumente reto e sigmóide, como se acreditava, e se estende a todo o cólon. O nível crítico de redução do número de neurônios para o aparecimento do megacólon foi estimado em 55%.
A seguir, seus colaboradores prosseguiram os estudos quantitativos em relação a outros segmentos do trato digestivo: estômago, duodeno, intestino delgado, apêndice cecal e cólon, demonstrando, em todos eles, significativa redução do número de neurônios. Ao estudar a cardiopatia chagásica crônica, Koeberle constatou igualmente redução do número de células nervosas do coração.
Da série de trabalhos publicados por Koeberle sobre a patologia do aparelho digestivo na doença de Chagas devem mencionar-se com destaque, como referência, a Nota Prévia em colaboração com Estévão Nador e aqueles de maior relevância que se seguiram.
Inicialmente, Koeberle admitira que a destruição neuronal resultasse de uma neurotoxina liberada pelos parasitos após a ruptura de pseudocistos de amastigotas; posteriormente reconheceu tratar-se de um mecanismo imunológico.
Em face dos achados que configuravam um aspecto inteiramente novo na patologia da infecção pelo T. cruzi, Koeberle estabeleceu uma nova visão da doença de Chagas, conceituando-a como doença do sistema nervoso autônomo periférico.
Este conceito mostrou-se bastante fértil e propiciou a realização de numerosas pesquisas que evidenciaram múltiplos transtornos em diferentes setores do organismo nos portadores da doença de Chagas.
Posteriormente, outros autores, não só confirmaram os estudos de Koeberle, como verificaram a existência de desnervação em outros órgãos.
Diante da comprovação da etiologia chagásica do megaesôfago e megacólon endêmicos e da desnervação intrínseca em todo o trato digestivo, fazia-se mister rever a classificação das formas clínicas da doença de Chagas, considerando a existência de grande número de casos de megaesôfago e megacólon sem cardiopatia, antes incluídos na forma indeterminada e considerados tão somente como cardíacos potenciais.
Joffre Rezende, em 1956, propôs a denominação de forma digestiva para caracterizar as manifestações decorrentes das “lesões do tubo digestivo com as consequentes alterações da motilidade”, denominação esta que foi bem aceita pela comunidade científica. Em 1959, o mesmo autor ampliou o conceito de forma digestiva para abranger, além das desordens motoras, as alterações secretoras e absortivas do aparelho digestivo, já conhecidas ou que viessem a ser descritas no futuro, independentemente da presença ou não de dilatação do esôfago ou do cólon.
Muitos dos novos aspectos da patologia da doença de Chagas e de suas manifestações no aparelho digestivo foram divulgados pela Revista Goiana de Medicina. Esta revista, de pretensões modestas, foi fundada pela Associação Médica de Goiás em 1955 com o principal objetivo, segundo consta do editorial de seu primeiro número, de melhorar o “padrão da Medicina que se pratica em Goiás, preparando o terreno da nossa futura Faculdade de Medicina”. A Faculdade nasceu em 1960 como entidade privada, sendo federalizada nesse mesmo ano com a criação da Universidade Federal de Goiás.
Desde o seu início, a Revista Goiana de Medicina deu prioridade em sua linha editorial aos trabalhos relacionados à patologia regional, em especial à doença de Chagas, considerada na época a principal endemia do Estado de Goiás.
Graças aos artigos publicados, desde o seu primeiro número, sobre a doença de Chagas, a Revista se projetou no cenário médico nacional e internacional, grangeando a confiança de pesquisadores dos grandes Centros do País, que nela publicaram importantes trabalhos sobre a Tripanossomíase americana.
No período de 35 anos, (1955 a 1990), dentre 564 títulos de artigos originais publicados, 201 (35,6%) referem-se à doença de Chagas e, destes, 85 (42,3%) dizem respeito à forma digestiva em seus diferentes aspectos, desde a patologia ao tratamento cirúrgico do megaesôfago e megacólon.
Em decorrência dos conhecimentos adquiridos, aceita-se atualmente a classificação da doença de Chagas nas seguintes formas clínicas: indeterminada, cardíaca, digestiva e mista ou associada (cardíaca + digestiva). A forma digestiva tem sido relatada com uma prevalência muito variável, conforme a região geográfica. No Brasil, a literatura médica existente registra maior número de casos na região central do país, compreendendo parte dos estados de Minas Gerais, Goiás, São Paulo, Bahia e sul do Piauí. Sua ocorrência é excepcional nos países situados acima da linha equatorial, como a Venezuela e os países da América Central onde a doença de Chagas é bem estudada e reconhecida como causa de cardiopatia.
No Brasil, a prevalência da forma digestiva tem sido estimada com base no diagnóstico da esofagopatia em inquéritos radiológicos feitos em populações chagásicas das áreas endêmicas, por meio da abreugrafia de 35 e 70 mm. Em sete desses inquéritos, totalizando 2.073 casos a prevalência oscilou entre 7,1 e 18,8, com a média de 8,8.
A esofagopatia chagásica foi considerada um bom indicador da forma digestiva, tendo em vista que muitas das alterações encontradas em outros setores do sistema digestivo ocorrem em associação com o megaesôfago.
Ao exame radiológico, na dependência da evolução da afecção, o esôfago pode apresentar diferentes aspectos morfológicos que foram classificados em quatro grupos por Joffre Rezende e colaboradores. Os dois primeiros grupos compreendem a fase compensada do megaesôfago, em que há maior atividade contrátil da parede muscular do esôfago, enquanto os dois últimos correspondem à fase descompensada em que a atividade motora é mínima ou inexistente.
As alterações motoras registradas à manometria são muito variáveis na fase compensada e seguem um padrão uniforme na fase descompensada, como demonstraram Henrique Pinotti, Renato Godoy e Joffre Rezende.
Na forma digestiva, além do megaesôfago e megacólon, foram descritas por vários autores alterações motoras e ou funcionais no estômago, duodeno, jejuno-íleo, vias biliares extra-hepáticas, glândulas salivares e pâncreas, conforme a revisão bibliográfica feita recentemente por Joffre Rezende e Hélio Moreira.
A existência de uma gastropatia chagásica fora antes suspeitada por Calil Porto com base unicamente na observação clínica. As alterações gástricas são encontradas em cerca de 20% dos pacientes que apresentam megaesôfago. Ao exame radiológico, o volume gástrico é extremamente variável e é característica a ausência de câmara de ar no estômago nos pacientes com megaesôfago avançado. Hipersensibilidade da musculatura da parede gástrica ao estímulo farmacológico colinérgico, bem como distúrbios da motilidade e da secreção podem ser detectados por diferentes métodos em pacientes com a forma digestiva. Em tais casos, o esvaziamento gástrico acha-se acelerado para líquidos e retardado para sólidos e há menor relaxamento adaptativo do corpo gástrico à distensão do estômago. Recentemente um estudo por eletrogastrografia demonstrou alteração do ritmo elétrico do estômago, com disritmia gástrica.
Os estudos da secreção gástrica revelaram hipossecreção cloridropéptica, tanto basal como sob diferentes estímulos: histamina, histalog, insulina, pentagastrina e infusão de íons cálcio. Quando se associa a um destes testes o estímulo com uma substância colinérgica, como a metacolina ou o betanecol, obtém-se um aumento da secreção tanto do ácido clorídrico como da pepsina, o que demonstra que a hipossecreção é determinada principalmente pela desnervação intrínseca do estômago e não pela redução do número das células secretoras. Paralelamente, verifica-se a existência de hipergastrinemia de jejum e pós-prandial.
Além destas alterações motoras e secretoras, é frequente a presença de gastrite crônica em diferentes graus de intensidade, cujos fatores etiopatogênicos parecem ser múltiplos, estando entre eles, possivelmente, o refluxo biliar duodenogástrico e a infecção pelo Helicobacter pylori.
Em casos com acentuada dificuldade de esvaziamento gástrico, antes rotulados de “acalásia do piloro”, encontra-se hipertrofia do músculo pilórico. Nestes casos está indicada a piloroplastia como complemento da cardiomiotomia no tratamento cirúrgico do megaesôfago.
Depois do esôfago e do cólon, é o duodeno o segmento que mais vezes se apresenta dilatado. Quase sempre o megaduodeno está associado a outras visceromegalias. A dilatação pode localizar-se apenas no bulbo (megabulbo), na segunda e terceira porções, ou comprometer todo o arco duodenal. Mesmo nos casos em que não há dilatação é frequente a discinesia e a hiper-reatividade ao estímulo colinérgico decorrente da desnervação. Os sintomas eventualmente causados pelo megaduodeno podem confundir-se com a dispepsia de origem gástrica tipo dismotilidade.
No intestino delgado os estudos histopatológicos evidenciaram uma desnervação do sistema nervoso entérico menos acentuada do que a do esôfago e do cólon. A dilatação do jejuno ou do íleo a ponto de configurar o megajejuno e megaíleo é ocorrência rara, havendo poucos casos relatados.
As repercussões da enteropatia chagásica são pouco evidentes do ponto de vista clínico, porém podem ser detectadas em investigações direcionadas para esse fim. Foram comprovadas alterações motoras, tanto em estudos radiológicos como manométricos. O complexo motor migratório interdigestivo apresenta anormalidades em pacientes com outras manifestações da forma digestiva. Possivelmente em decorrência desse fato há um maior crescimento da flora bacteriana, que se assemelha, em certos casos, à encontrado na síndrome de alça estagnante.
Estudos sobre a absorção intestinal em pacientes com a forma digestiva revelaram uma absorção acelerada de glicose e outros açúcares. Em consequência, a prova de tolerância oral à glicose pode apresentar curvas glicêmicas anormais, com hiperglicemia transitória na primeira hora. Ao lado da hiperabsorção glicídica verificou-se hipo-absorção lipídica de grau leve, que não chega a alterar o teor de excreção da gordura fecal. Ambas as alterações descritas são atribuídas, em parte, a distúrbios do esvaziamento gástrico.
A dilatação do cólon ocorre na maioria das vezes no segmento distal, compreendendo o reto e o cólon sigmóide.
A vesícula biliar sofre igualmente desnervação intrínseca na forma digestiva da Doença de Chagas, com alterações motoras de enchimento e esvaziamento. Anormalidades foram também registradas por manometria no esfíncter de Oddi. A colecistomegalia, no entanto, é pouco frequente, assim como a dilatação do colédoco. Há dados na literatura que sugerem maior incidência de colelitíase em portadores da doença de Chagas com megaesôfago e/ou megacólon.
As glândulas salivares, notadamente as parótidas, apresentam-se hipertrofiadas nos pacientes com megaesôfago, o que é comum em qualquer esofagopatia obstrutiva em consequência do reflexo esofagossalivar, que produz hipersalivação. Nos portadores da doença de Chagas, entretanto, há maior sensibilidade das glândulas salivares ao estímulo mecânico da mastigação e ao estímulo farmacológico pela pilocarpina. Além disso, a hipersalivação e a hipertrofia das parótidas persistem em pacientes esofagectomizados, o que demonstra não se tratar apenas do complexo esofagossalivar e sim do comprometimento da inervação dessas glândulas na doença de Chagas.
Em relação ao pâncreas exócrino, sua capacidade funcional está preservada em relação ao estímulo direto sobre a glândula. Pode haver, no entanto, deficiência secretora por estímulo indireto, decorrente de alterações na liberação de hormônios duodenojejunais.
Figura 1. Distribuição de 150 casos de megaesôfago no Estado de Goiás em 1956. A área geográfica de sua ocorrência coincidia com a região mais infestada por triatomíneos infectados pelo T. cruzi.
Figura 2. Número de neurônios em um segmento de 1 mm do terço inferior do esôfago em indivíduos normais, em portadores da doença de Chagas sem megaesôfago e em portadores com megaesôfago, (Köberle, 1961).
Figura 3. Corte histológico da parede muscular do esôfago em um caso de megaesôfago chagásico, mostrando processo inflamatório na região do plexo mientérico e despovoamento neuronal. Observa-se um único neurônio em degeneração (seta).
Figura 4. Fisiopatologia da forma digestiva da doença de Chagas.
Figura 5. Classificação radiológica do megaesôfago em quatro grupos, conforme a evolução da afecção.
Figura 6 – A – Megaesôfago e megaestômago. B – Megaesôfago e megaduodeno. C – Megabulbo e megajejuno. D – Megacólon.
Figura 7 – Colecistomegalia e dilatação do colédoco em chagásico com a forma digestiva da doença de Chagas.
Figura 8 – Hipertrofia das parótidas comumente encontrada em casos de megaesôfago chagásico, o que confere ao paciente uma fácies felina.
Diagnóstico
História dos métodos de diagnóstico para a doença de Chagas
Alejandro Luquetti Ostermayer
Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública, Universidade Federal de Goiás
E-mail: luquetti@hc.ufg.br
O diagnóstico da infecção pelo Trypanosoma cruzi, agente causal da doença de Chagas, como em outras enfermidades infecciosas, tem como base três parâmetros distintos: as manifestações clínicas que, se presentes, permitem ao médico suspeitar da infecção; os antecedentes epidemiológicos, que também induzem o clínico à suspeita; e os métodos de diagnóstico, em geral laboratoriais, que permitem confirmar ou excluir a suspeita diagnóstica na maioria das situações. Caberá ao clínico, de posse das informações acima, decidir se o indivíduo é infectado ou não. Cabe assinalar que infecção por certo agente não é sinônimo de doença; haja vista que muitas infecções transcorrem sem doença clinicamente ostensiva. Na infecção pelo T. cruzi, lembramos que mais da metade dos infectados não apresenta cardiopatia, nem megaesôfago nem megacólon, as principais manifestações da doença de Chagas. Nestes casos em particular, o diagnóstico é sugerido pelos antecedentes epidemiológicos e confirmado ou excluído pelos resultados dos exames laboratoriais.
Pelo exposto, os métodos de diagnóstico adquirem particular importância na doença de Chagas. Acresce que esta infecção apresenta-se apenas em duas fases distintas quanto à cronologia da infecção, às manifestações clínicas e aos métodos de diagnóstico. A fase aguda, inicial, com febre e sintomas inespecíficos (às vezes com sinal de Romaña ou chagoma de inoculação) se diagnostica por métodos parasitológicos em decorrência da elevada parasitemia que define esta fase. A fase crônica tem o seu início após a fase aguda e que, como assinalado, é assintomática em mais da metade dos casos, o diagnóstico laboratorial baseia-se na pesquisa indireta de sinais da infecção, ou seja, a presença de anticorpos anti-T. cruzi.
A história dos métodos de diagnóstico pode ser dividida em três períodos, de diferente duração. O primeiro período, desde a descoberta até 1960, é comentado a seguir:
Os primeiros métodos desenvolvidos foram os parasitológicos. Carlos Chagas baseou-se no achado do T. cruzi na criança Berenice, para afirmar que este agente era o responsável do quadro clínico. Tratava-se de fase aguda da doença, e o diagnóstico, hoje em dia, 97 anos após, continua sendo realizado da mesma forma, com a pesquisa direta do T. cruzi no sangue periférico.
Na fase crônica da tripanossomíase, nos primeiros anos após a sua descoberta, o diagnóstico de laboratório era feito por inoculação do sangue dos pacientes em cobaias. Chagas descreveu a presença de formas parasitárias esquizogônicas no pulmão das cobaias infectadas, que julgou fossem do T. cruzi. Este achado passou a constituir um método diagnóstico na infecção experimental da cobaia até 1913, quando se demonstrou que se tratava, na verdade, de outro parasito, o Pneumocystis carini, e o método foi abandonado.
Em 1914, Brumpt descreveu outra modalidade de diagnóstico parasitológico, o xenodiagnóstico, que inicialmente foi pouco utilizado. As primeiras referências ao seu emprego no diagnóstico da doença de Chagas são de Torrealba, na Venezuela em 1934; de Emmanuel Dias, no Brasil e Bacigalupo, na Argentina. O método só passou a ser utilizado rotineiramente após sua padronização por Cerisola e colaboradores em 1974.
A primeira descrição de pesquisa de anticorpos data de 1913 e deve-se a Guerreiro e Machado. Tratava-se da reação de fixação de complemento, logo conhecida como a reação de Guerreiro e Machado, que foi o único teste sorológico disponível durante mais de 50 anos, e que foi realizado de rotina para o diagnóstico até recentemente. Este teste sofreu múltiplas modificações e padronizações, destacando-se a contribuição de Almeida e Fife em 1976. A complexidade técnica, a utilização de vários reagentes que demandam padronização diária e o tempo de reação levaram ao seu abandono a partir de 1995, principalmente pela existência de testes mais simples. Nessa época, um parecer técnico do Ministério da Saúde recomendou a sua substituição por outros testes. Neste primeiro período na evolução do conhecimento do diagnóstico, até 1960, contava-se apenas com dois testes por mais de 50 anos.
O segundo período, de 1960 a 1975, foi de grande desenvolvimento, como será relatado a seguir:
O hemocultivo, introduzido como método diagnóstico parasitológico desde a década de 1940, apresentava resultados bem inferiores ao xenodiagnóstico, não sendo por isso utilizado. Após os trabalhos de Chiari e Brener em 1966 com sucessivos aperfeiçoamentos voltou a ser empregado até os dias de hoje com resultados comparáveis aos do xenodiagnóstico e a vantagem de permitir o isolamento do parasito.
A inoculação em animais experimentais também foi utilizada desde longa data, porém deixou de ser empregada como método de diagnóstico devido às dificuldades operacionais, assim como a sua baixa sensibilidade na fase crônica.
Outros testes foram utilizados, tais como a detecção de antígeno circulante, antigenúria, testes de hipersensibilidade tardia, porém não foram incorporados à rotina e não são utilizados.
Inúmeras tentativas de utilização de testes sorológicos empregando outros métodos: testes de precipitação, de aglutinação de látex, de floculação, não frutificaram, ora pela baixa eficiência ora pelos custos elevados.
Em 1962, Cerisola e colaboradores descrevem a utilização do teste de hemaglutinação indireta (HAI) para o diagnóstico sorológico da infecção. Este teste, de fácil execução e bom desempenho é utilizado até hoje, embora apresente sensibilidade menor que os testes de imunofluorescência e de ELISA. Por esta razão, não é recomendado para exclusão de doadores de sangue.
Pouco tempo depois (1966) Camargo otimiza a utilização do teste de imunofluorescência indireta, já descrito por Fife e Muschel. Este teste, de elevada sensibilidade, foi utilizado no inquérito nacional sorológico, com mais de um milhão de amostras em todo o Brasil, que determinou, com bastante precisão, a prevalência da doença. Dada a sua elevada sensibilidade, é ideal para estudos epidemiológicos, assim como para diagnóstico, embora apresente reações cruzadas, em particular com leishmanioses. O mesmo continua a ser usado até o presente, simultaneamente com a HAI e a ELISA, constituindo os três os chamados de testes convencionais, com os quais há grande experiência em todos os países da América Latina.
O teste de aglutinação direta, aperfeiçoado por Vattuone e Yanovsy com a inclusão sistemática do agente redutor 2 mercapto-etanol, foi utilizado principalmente na Argentina com bons resultados, porém a sua comercialização foi interrompida.
Em 1975, Voller e colaboradores descrevem o teste imunoenzimático de ELISA em amostras de papel-filtro, método que foi aperfeiçoado e é atualmente utilizado na rotina diagnóstica dos serviços de hemoterapia e de diagnóstico, existindo no Brasil doze marcas aprovadas pela Anvisa, com bom desempenho.
No terceiro período, de 1976 até o presente, a biologia molecular aprimorou os métodos existentes e desenvolveu outros. Em sucessivos estudos, procurou-se melhorar a qualidade dos antígenos até então utilizados, extratos totais (antígeno bruto) do parasito por antígenos purificados por diversos procedimentos – na tentativa de evitar reações cruzadas, observadas com os testes convencionais de diagnóstico. Assim, na década de 1980, foram publicados trabalhos empregando glicoproteínas de 25 kDa (26), 90 kDa (27) e de 72 kDa entre outras, com painéis de soros de pacientes com as diferentes formas clínicas da doença. Esses reagentes ainda não se encontram comercializados.
Com o avanço no conhecimento da biologia molecular, a partir de 1980 foram isoladas proteínas recombinantes por diversos grupos no Brasil, Argentina e Estados Unidos, obtendo-se bons resultados de acordo com cada grupo. Também foram publicados estudos com peptídeos sintéticos, como revisto por Silveira e colaboradores. Para elucidar quais teriam maior aplicabilidade, o programa TDR (Tropical Diseases Research) da Organização Mundial da Saúde promoveu um estudo multicêntrico que incluiu também alguns dos antígenos purificados. Esse estudo definiu alguns deles como apropriados. Outro estudo confirmou alguns desses resultados assim como um terceiro, com maior número de soros.
Após esses estudos foram desenvolvidos vários testes rápidos, alguns deles com a intenção de verificar o diagnóstico no campo, com apenas uma gota de sangue. Um desses testes foi validado em estudo multicêntrico.
Em outra fase do diagnóstico laboratorial, na década de 1990, os estudos dirigiram-se para a amplificação de ácidos nucléicos do próprio parasito, visando ao diagnóstico parasitológico, pela amplificação por PCR. Hoje em dia, é possível verificar a presença de um parasito em 20 mL de sangue. Ocorre que, por ser um método de verificação da presença do parasito, que pode não estar presente no infectado crônico, um resultado negativo não tem valor diagnóstico. A sensibilidade é superior a do hemocultivo e do xenodiagnóstico, embora exista preocupação quanto à especificidade quando realizado em serviços de rotina. Acresce que não se encontra ainda comercializado.
Embora contando com vários testes sorológicos de bom desempenho, é necessário que os mesmos sejam verificados, lote a lote, e que os laboratórios mantenham pessoal com instruções técnicas apropriadas. O Ministério da Saúde do Brasil tem demonstrado sensibilidade a este respeito, promovendo estudos dos reagentes comercializados. De parceria com a Gerência de AIDS, elaborou um manual e vídeo (Telelab) sobre o diagnóstico da doença. Ainda em parceria com Biomanguinhos, a Anvisa desenvolve programa de qualidade externo, desde 2001, que se encontra na 13ª avaliação, para os serviços de hemoterapia do Brasil.