A descoberta

Belle Époque

A Ciência e a Belle Époque na Capital Federal no início do século XX

Dominichi Miranda de Sá

Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

E-mail: dominichi@coc.fiocruz.br

 “Os tempos mudaram. (…) A alma e o cérebro do Brasil tomam as feições modernas, as idéias do mundo são absorvidas agora com uma rapidez que pasmaria os nossos avós”.

João do Rio, O Momento Literário

Nos primeiros anos do século XX, o Rio de Janeiro constituía o grande centro intelectual do Brasil. Sediava o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, a Escola de Belas Artes e a Avenida Central com seus cafés, livrarias, cinematógrafos e confeitarias. Todos esses locais eram pontos de encontro de homens de ciência, homens de letras, jornalistas, artistas, literatos, cronistas, bacharéis, poetas, publicistas, declamadores, escritores, conferencistas, acadêmicos, filólogos, romancistas, oradores, polemistas e prosadores em suma de ‘intelectuais’; letrados que, a despeito de suas ocupações oficiais como funcionários públicos, políticos, advogados, professores, militares, engenheiros ou médicos, dedicavam-se à criação cultural, à mudança social e à interpretação do momento político do país.

A cidade, nessa ocasião, passava por intensa modernização urbana caracterizada pelo aparecimento de novas construções como o Mercado Municipal, o aterro da Praça Quinze, a Praça Mauá, a Avenida do Mangue e a própria Avenida Central, posteriormente denominada Avenida Rio Branco, e pela adoção de símbolos de ‘progresso’ e ‘civilização’ como automóveis, bondes elétricos, reclames, telegrafia, telefones, máquinas de escrever e gramofones. Esses artefatos modernos competiam com a leitura como forma de lazer e aprendizado, encolhiam as distâncias e criavam uma nova percepção do tempo como ‘velocidade’, ‘pressa’ e ‘sede por novidades’.

Ainda que a cidade experimentasse remodelações constantes desde a chegada da família real portuguesa em 1808 – como calçamentos, iluminação, construção do Canal do Mangue e expansão do núcleo urbano para São Cristóvão, Catumbi, Rio Comprido, Tijuca, Laranjeiras, Catete, Botafogo e Gávea por meio de bondes, e para Engenho de Dentro, Piedade, Sampaio, Quintino, Méier, Mangueira, Encantado e Madureira por meio de ferrovias somente com a mudança do regime político em 1889 (que a transformou em capital federal) e as reformas realizadas sob o comando do prefeito Francisco Pereira Passos (1902-1906) se caracterizou o início da chamada Belle Époque no Rio de Janeiro. O embelezamento urbano, ladeado por obras de saneamento e de combate à febre amarela e à varíola, criava uma sensação geral de superioridade e triunfo em relação aos símbolos da tradição colonial portuguesa; sensação que pode ser resumida por um dos grandes lemas do período criado pelo jornalista Figueiredo Pimentel para a sua coluna O Binóculo: “o Rio civiliza-se”.

Inovações também ocorriam na imprensa, o mais importante veículo de produção cultural no período, por fornecer as melhores gratificações e posições intelectuais. Tipografias que publicavam jornais e revistas passavam por considerável aperfeiçoamento tecnológico naqueles primeiros anos do século XX, o que possibilitou o aumentou das tiragens dos periódicos e algumas inovações gráficas como o colorido das páginas e o recurso de fotografias, e a introdução de novos gêneros de escrita como a reportagem, a entrevista, os inquéritos, a publicidade e as crônicas.

Conferências literárias sobre assuntos diversos eram realizadas no Instituto Nacional de Música, no Cassino e no Teatro Municipal, assim como nos salões das grandes damas e dos casais abastados da cidade. Os salões dos Araújo Vianna, dos Azeredo, dos Sampaio Araújo, de Laurinda Santos Lobo e os saraus promovidos por Coelho Neto, Inglês de Souza, Olavo Bilac, Medeiros e Albuquerque, João do Rio, Alcindo Guanabara, Júlia Lopes e Souza Bandeira eram muito prestigiosos. Integravam a vida mundana da cidade, assim como os banquetes oficiais, a batalha das flores, as recepções, as temporadas teatrais, os pic-nics, os five-o´clock-tea, as praças, os jardins, as lojas de comércio fino, os bailes, os chás dançantes, os concertos ao ar livre, as regatas, as corridas de automóveis, os clubes noturnos, de jogo e de music-hall, os turfes, o foot-ball e os corsos.

Na Capital Federal concentravam-se ainda as mais importantes sociedades de letras, periódicos médicos, escolas médico-cirúrgicas, associações de caráter científico e instituições de ensino superior do país, como, por exemplo, o Instituto de Manguinhos (como era então chamado o Instituto Oswaldo Cruz), a Faculdade de Medicina, o Jardim Botânico, o Observatório Astronômico, a Escola Politécnica, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Academia Nacional de Medicina, a Academia Brasileira de Letras, a Sociedade de Geografia e o Museu Nacional.

Considerada o principal agente do processo de modernização e civilização do país, a ‘ciência’ era também um dos mais importantes e correntes assuntos dos jornais diários e semanários que circulavam no Rio de Janeiro do período. Temas científicos figuravam nas suas chamadas de primeira página, em artigos, editoriais, seções e números especiais. A imprensa noticiava as novas descobertas científicas, as viagens dos cientistas ao exterior, a presença de cientistas estrangeiros no país, suas biografias, perfis e obituários, e ainda costumava realizar entrevistas e reproduzir as palestras, as aulas e os discursos proferidos nas mais prestigiadas instituições da época. Naquela ocasião, acreditava-se, o desenvolvimento social só seria possível por intermédio de uma ampla difusão da ciência, com todas as suas desejáveis implicações morais, civilizatórias, físicas, econômicas e políticas.

O espírito de ‘modernização’ e ‘civilização’ que modificava a paisagem da cidade também levou seus intelectuais a criarem novas instituições como a Academia Brasileira de Ciências (1916), a Universidade do Rio de Janeiro (1920) e a Associação Brasileira de Educação (1924) entre outras. Todas elas representavam novos interesses profissionais e novos ideais educacionais.

Dentre esses novos interesses profissionais, deve-se salientar a profissionalização da pesquisa experimental no país. Os homens de ciência brasileiros como eram então chamados os que se formavam e atuavam nas faculdades de medicina, museus de história natural, sociedades científicas, institutos históricos e geográficos, periódicos médicos, escolas médicas, institutos agrícolas e científicos, nas comissões e expedições científicas discutiram sistematicamente, nos primeiros anos do século XX, a importância da realização da “ciência pura” no Brasil.

Em outras palavras, desejavam a criação de universidades para a formação de profissionais especializados que pudessem dedicar-se à realização de estudos e experiências, com liberdade e tempo disponível para pesquisar, ler, participar de congressos nacionais e internacionais. Vale lembrar que, até os anos 1920, não existiam universidades no Brasil e havia poucas instituições, à exceção das citadas acima, nas quais os homens de ciência pudessem se profissionalizar e desenvolver as suas pesquisas com dedicação exclusiva.

Todos esses debates ocorridos entre os anos 1910 e 1920 não significam que a ciência brasileira fosse incipiente ou de má qualidade; ao contrário. Os brasileiros participavam das controvérsias e congressos internacionais escrevendo importantes obras e realizando também inovadoras descobertas científicas. O que reforçam na defesa da “ciência pura” era a melhoria das condições institucionais necessárias para, como diziam, a “busca imparcial pela verdade”. E, segundo eles, esse compromisso só poderia ser honrado com a profissionalização das pesquisas e dos estudos científicos e com a especialização da sua formação intelectual. Sendo assim, foi criada, em 1916, a Sociedade Brasileira de Ciências, transformada em 1921 na Academia Brasileira de Ciências (ABC). Entre os seus membros estiveram, dentre outros, Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Alberto Betim Paes Leme, Henrique Morize, Alberto Childe, Edgard Roquette-Pinto, Alípio de Miranda Ribeiro, Everardo Backheuser, Arthur Moses, Juliano Moreira, Bruno Lobo, Euzébio de Oliveira, Licínio Cardoso e Amoroso Costa. A Associação incluía nos seus objetivos, além da promoção da dedicação à pesquisa científica, a organização de cursos e conferências de ciências, a criação de universidades no país, a publicação de um periódico e a instituição de prêmios e recompensas para trabalhos originais. E as universidades, nas quais se realizaria a “pesquisa de problemas novos e das questões nacionais ainda não resolvidas” (Revista Ciência e Educação, 1929), se associariam mais especificamente, no entender dos membros da Associação, à promoção do progresso do Brasil, já que, segundo eles próprios, aos cientistas brasileiros caberia a avaliação e a direção da vida social, política, econômica e cultural do país.

Esses ideais de especialização intelectual e de profissionalização da pesquisa experimental firmaram uma agenda de debates e de realizações institucionais que foram se consolidando com a participação, com a iniciativa ou a partir das idéias desta geração de cientistas brasileiros que criaram a Academia Brasileira de Ciências a Universidade do Rio de Janeiro em 1920, a Associação Brasileira de Educação em 1924, o Instituto Nacional de Pesos e Padrões em 1930, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova em 1932, a Universidade do Distrito Federal em 1935, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência em 1948 e o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia em 1951.

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Manguinhos

Oswaldo Cruz e o Instituto de Manguinhos

Jaime L. Benchimol

Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

E-mail: jben@coc.fiocruz.br

Nascido em 5 de agosto de 1872, em São Luís do Paraitinga, interior de São Paulo, Oswaldo Cruz doutorou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1892 com a tese sobre A veiculação microbiana pelas águas. Em 1896, viajou para a França para se aperfeiçoar no Instituto Pasteur, quando pareciam ilimitadas as possibilidades tanto das vacinas como dos soros curativos, tecnologia recém-desenvolvida para o tétano e a difteria por Emil von Bhering, Shibasaburo Kitasato e Émile Roux. No mesmo ano em que Oswaldo Cruz regressou ao Rio de Janeiro (1899), a peste bubônica chegou ao Brasil. No rastro dessa pandemia seguiam os pasteurianos, obtendo vitórias sensacionais. Em 1894, Alexander Yersin (1863-1943) conseguiu identificar o bacilo da peste em Hong Kong e antes do fim do ano desenvolveu o soro contra a doença com Albert Calmette (1863-1933) e Amédée Borrel (1867-1936). Em 1898, Paul-Louis Simond confirmou, na Índia, a hipótese de que eram as pulgas que transmitiam a doença de rato para rato e do rato ao homem. Em prisões e quartéis indianos Haffkine fazia experiências com uma vacina antipestosa. Na cidade do Porto (Portugal), em 1899, Calmette e Salimbeni aperfeiçoavam a técnica de preparação do soro, quando a peste migrou daí para o Brasil em vapores lotados de imigrantes.

A dificuldade de obter o soro e a vacina levou o governo paulista a promover a criação de um laboratório para fabricá-los na Fazenda Butantã. Entrou em operação em fins de 1900, sob a direção de Vital Brazil, logo em seguida ao laboratório soroterápico criado no Rio de Janeiro, na fazenda de Manguinhos, de cuja direção técnica Oswaldo Cruz ficou encarregado. Em 30 de outubro de 1900, a Diretoria Geral de Saúde Pública recebia os primeiros cem frascos de vacina antipestosa, assumindo Cruz a direção exclusiva do Instituto Soroterápico Federal.

Assim que foi eleito presidente da República, em 15 de novembro de 1902, Francisco de Paula Rodrigues Alves divulgou um Manifesto à Nação em que qualificava o saneamento do Rio de Janeiro, então a capital brasileira, como sua mais séria preocupação. Durante seu mandato como presidente de São Paulo (1900-1902), a saúde pública paulista daquele estado abraçou a teoria do cubano Carlos Finlay, de que a febre amarela era transmitida por mosquitos e não por objetos contaminados ou por miasmas. Para executar a reforma urbana há décadas propugnada pelos higienistas para o Rio de Janeiro, Rodrigues Alves escolheu um time de engenheiros de primeira linha. Aquele que nomeou prefeito da cidade, Francisco Pereira Passos, assistira à reforma efetuada em Paris por Georges Eugène Haussmann (1853-1870), no governo de Napoleão III. Dos escombros dos bairros populares viu emergirem os contornos da nova metrópole que iria servir de modelo para renovações urbanas similares em todo o mundo, inclusive no Rio de Janeiro.

Oswaldo Cruz assumiu a Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP) com a missão de enfrentar três doenças: febre amarela, varíola e peste bubônica. Em abril de 1903, apresentou o plano da campanha contra o transmissor da primeira doença, o Stegomyia fasciata (atual Aedes aegypti): impedir a contaminação dos mosquitos pelas vítimas da febre amarela, a infecção das pessoas receptíveis pelos mosquitos contaminados e a permanência dos casos esporádicos que garantiam a continuidade da doença nos intervalos epidêmicos. A peste bubônica seria detida pelo extermínio dos ratos e pelo uso do soro e da vacina fabricados em Manguinhos. Quanto à varíola, bastaria vacinar a população.

Quando foi submetido ao Congresso o projeto de lei reinstaurando a obrigatoriedade da vacinação e revacinação contra a varíola, recrudesceu a oposição ao “General Mata-mosquitos” (Oswaldo Cruz) e ao “Bota-abaixo” (Pereira Passos). Quando os jornais publicaram, em 9 de novembro do mesmo ano, o esboço do decreto que ia regulamentar aquele “Código de Torturas”, a cidade foi convulsionada, por mais de uma semana, pela Revolta da Vacina. A população pagou duplamente caro por ela: além de feroz repressão, teria de suportar, em 1908, a epidemia de varíola mais mortífera que o Rio de Janeiro conheceu, em que morreram quase 6.400 pessoas.

Ao assumir a direção da Saúde Pública, Oswaldo Cruz propôs ao Congresso que o Instituto Soroterápico Federal fosse transformado “num Instituto para estudo das doenças infecciosas tropicais, segundo as linhas do Instituto Pasteur de Paris”. A proposta foi derrubada, mas isso não impediu que ele proporcionasse a Manguinhos as condições técnicas e materiais para que rapidamente superasse seu desenho original.

A equipe primitiva restringia-se ao diretor, a dois chefes de serviço e dois auxiliares estudantes. O instituto era procurado por doutorandos que não encontravam na Faculdade de Medicina as condições adequadas para desenvolver trabalhos sobre microrganismos e seus hospedeiros.

Em Manguinhos não havia separação entre pesquisa, ensino e fabricação de produtos biológicos. Em 1906, por exemplo, Figueiredo de Vasconcelos junto com Ezequiel Dias cuidava da preparação do soro e da vacina contra a peste. Preparava a maleína e estudava o mormo e a transmissão da espirilose das galinhas por percevejos. Henrique da Rocha Lima investigava a anatomia patológica da febre amarela. Cardoso Fontes era responsável pela conservação das culturas microbianas e pelo preparo das tuberculinas. Henrique Aragão fazia o diagnóstico da peste, preparava soro anti-estreptocócico, estudava a piroplasmose equina e se dedicava à classificação sistemática de uma família de carrapatos, os ixodídeos. Arthur Neiva fazia sistemática de mosquitos e Carlos Chagas estudava a vida e os hábitos dos transmissores da malária, doença que fora o tema de sua tese de doutoramento. Alcides Godoy preparava os soros antidiftérico e antitetânico e fazia a dosagem do antipestoso. Com a ajuda de seus colegas, inclusive Chagas, logo desenvolveria a vacina contra o carbúnculo sintomático, ou peste da manqueira, uma epizootia que dizimava de 40 a 80% dos bezerros em vários estados brasileiros. Outros produtos veterinários seriam desenvolvidos depois.

O ambiente de trabalho naquele lugar afastado da zona urbana diferia da ambiência belicosa em que se davam as demolições e campanhas sanitárias. Os pesquisadores precisavam atender às demandas da saúde pública, mas tinham liberdade para escolher seus objetos de pesquisa. Oswaldo Cruz queria que os integrantes de seu “jardim de infância da ciência” – a expressão é dele todos com menos de 30 anos, adquirissem confiança em si mesmos para desenvolver trabalhos próprios e originais.

As fronteiras do Instituto dilatavam-se em três planos distintos. Fabricação de produtos biológicos, pesquisa e ensino — vertentes peculiares ao Instituto Pasteur de Paris — definem, ainda hoje, o perfil do grande conglomerado que é a Fundação Oswaldo Cruz. Doenças humanas, animais e, em menor escala, vegetais enfeixavam investigações que punham a instituição em contato com diferentes “clientes” e comunidades de pesquisa, reforçando suas bases sociais de sustentação. A dilatação de fronteiras tinha também conotação geopolítica, como para os institutos europeus que atuavam nas possessões coloniais africanas e asiáticas. Com frequência cada vez maior, os cientistas de Manguinhos embrenhar-se-iam pelos sertões do Brasil para estudar e combater doenças, principalmente a malária.

Em 1905, Carlos Chagas executou a primeira campanha antipalúdica, em Itatinga, interior de São Paulo, onde se construía uma hidrelétrica. Em 1906, Chagas e Arthur Neiva combateram a malária na Baixada Fluminense e, nesse mesmo ano, Chagas seguiu, com Belisário Pena, para o norte de Minas Gerais, onde a doença impedia o prolongamento dos trilhos da Estrada de Ferro Central do Brasil. Em 1908, Neiva atuaria em outras regiões.

Ao colocarem sua expertise a serviço de ferrovias, hidrelétricas, empreedimentos agro-pecuários ou extrativos, iriam se deparar com problemas diferentes daqueles vivenciados nos centros urbanos. Teriam oportunidade de estudar patologias pouco ou nada conhecidas, e de recolher materiais biológicos que dariam grande amplitude às coleções biológicas do Instituto e aos horizontes da medicina tropical no Brasil.

Apesar do prestígio de Oswaldo Cruz, Manguinhos encontrava-se numa posição bastante frágil por haver extravasado, sem respaldo legal, o arcabouço primitivo do Instituto Soroterápico. Sua transformação em Instituto de Medicina Experimental foi novamente pedida ao Congresso, em junho de 1906 (ano em que foi inaugurada a primeira filial, em Belo Horizonte, a recém-fundada capital de Minas Gerais). Em larga medida, a batalha foi vencida num teatro distante da capital brasileira. A Diretoria e o Instituto chefiados por Oswaldo Cruz foram as únicas instituições sul-americanas a participarem do XIV Congresso Internacional de Higiene e Demografia, e da Exposição de Higiene anexa a ele, em Berlim, em setembro de 1907. A medalha de ouro conquistada lá teve enorme repercussão.

Ainda em Paris, Oswaldo Cruz redigiu o regulamento do Instituto de Patologia Experimental, criado em dezembro de 1907, e rebatizado de Instituto Oswaldo Cruz em março de 1908.

Ao final deste ano, ao realizar a campanha contra a malária no norte de Minas, Chagas fez a descoberta que seria comemorada como uma das “glórias de Manguinhos”: identificou um novo vetor (o inseto hematófago conhecido como “barbeiro”), uma nova espécie de protozoário (batizada de Trypanosoma cruzi) e uma nova doença, que levaria seu nome. A descoberta consolidaria a protozoologia como uma das mais importantes áreas de pesquisa do Instituto Oswaldo Cruz e o projetaria internacionalmente.

Entre 1909 e 1910, os integrantes do Instituto fizeram estudos de aperfeiçoamento na Europa e nos Estados Unidos. Em julho de 1908, dois professores da Escola de Medicina Tropical de Hamburgo fizeram o caminho inverso. Stanislas von Prowazek, sucessor de Schaudinn, e G. Giemsa, inventor do método de coloração mais utilizado para a observação de hematozoários, foram contratados por seis meses para dar cursos e publicar os resultados de suas pesquisas, em primeira mão, na revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, recém-inaugurada. Em maio do ano seguinte, veio Max Hartmann, do Instituto de Moléstias Infecciosas de Berlim. Giemsa esteve de novo em Manguinhos em 1912, assim como Hermann Duerck, docente de anatomia patológica da Universidade de Iena.

Novos pesquisadores brasileiros ingressaram no Instituto Oswaldo Cruz nesse período. A principal aquisição foi Adolpho Lutz, que deixou o Instituto Bacteriológico de São Paulo em 1908. Daria grande impulso à zoologia, botânica e micologia médicas e publicaria trabalhos fundamentais sobre o ciclo de vida do Schistosoma mansoni.

Em novembro de 1909, Oswaldo Cruz deixou a direção da Saúde Pública numa conjuntura tumultuada pela morte do presidente Afonso Pena, a interinidade do vice-presidente Nilo Peçanha e a campanha presidencial polarizada entre o “civilista” Rui Barbosa e o marechal Hermes da Fonseca. Embora fosse um ídolo nacional, Oswaldo Cruz não conseguira realizar nenhuma das metas propostas para seu segundo mandato como diretor-geral de Saúde Pública. A campanha contra a tuberculose esvaíra-se por falta de recursos e apoio político; a regulamentação da lei da vacina obrigatória continuava a ser protelada. As oligarquias estaduais bloqueavam as ações sanitárias em seus territórios, não obstante a febre amarela grassasse no Norte e Nordeste do Brasil, pondo em risco o que fora feito no Rio de Janeiro.

À margem, então, do governo, os cientistas-sanitaristas de Manguinhos executariam suas ações mais espetaculares no interior, financiadas por contratos privados, inclusive com o próprio Estado. Em 1910, o próprio Oswaldo Cruz desincumbiu-se de duas missões. A primeira para um ousado empreendimento na selva amazônica, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, conhecida como “ferrovia do diabo” pela fama que tinha de consumir a vida de um operário para cada dormente assentado. Em outubro, desembarcou em Belém para executar lá a campanha contra a febre amarela.

Oswaldo Cruz pretendia enviar pesquisadores e “abarracamentos hospitalares móveis” a diversas regiões do país para inventariar suas patologias, especialmente a doença de Chagas. Chegou a construir em Manguinhos um hospital para estudo dos casos mais interessantes recolhidos no interior do Brasil (Figura 1). As circunstâncias favoreceram seu plano. As plantações de seringueiras organizadas pelos ingleses na Ásia estavam em vias de suplantar a indústria extrativista brasileira. Em janeiro de 1912, o Congresso, tardiamente, aprovou o Plano de Defesa da Borracha com o intuito de modernizar não apenas a extração e beneficiamento do produto como o processo de trabalho, através de medidas que reduzissem “o coeficiente de mortalidade absurdamente elevado”. De outubro de 1912 a março de 1913, Carlos Chagas, Pacheco Leão, João Pedro de Albuquerque e um fotógrafo percorreram grande parte do arcabouço fluvial da Amazônia a bordo de um pequeno vapor equipado com o necessário para os estudos que tencionavam fazer. Na mesma época, outras expedições do Instituto Oswaldo Cruz percorriam o Centro e o Nordeste do Brasil, a serviço da Inspetoria de Obras contra as Secas, órgão criado em 1909.

Figura 1: Hospital regional de Lassance.

A débâcle da borracha amazônica foi irreversível, e a velha República dos coronéis não enfrentou a secular tragédia das secas nordestinas. Nesse sentido, as comissões médico-sanitárias foram improfícuas. Mas aos laboratórios do Instituto Oswaldo Cruz proporcionaram um conjunto valiosíssimo de materiais concernentes às patologias brasileiras. Os relatórios escritos pelos cientistas, ricos em fotografias e em observações sociológicas e antropológicas, constituem o primeiro inventário moderno sobre as condições de vida das populações rurais do Brasil. Teve grande repercussão junto aos intelectuais das cidades litorâneas, municiando os debates acerca da questão nacional, que começava a ser redimensionada nos termos da visão dualista, de longa persitência no pensamento social brasileiro. A exaltação ufanista da “civilização” do Brasil, insuflada após a remodelação urbana do Rio de Janeiro, desmoronou com as corrosivas revelações sobre aquele “outro” Brasil, miserável e doente, flagelado pelas endemias, entre elas a tripanossomíase descoberta por Chagas (Figura 2).

Figura 2: Instituto Oswaldo Cruz. Cartão com dedicatória de Carlos Chagas.

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Teorias

 Teorias Médicas: “Revolução pasteuriana” e medicina tropical na passagem do século XIX ao XX

Jaime L. Benchimol

Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

E-mail: jben@coc.fiocruz.br

A criação do Instituto Soroterápico de Manguinhos (1899) e a descoberta da doença de Chagas (link para outro texto: “Descoberta”) (1909) nos remetem a duas ‘revoluções’ interligadas no âmbito dos laboratórios e em outros domínios da vida social, como a medicina clínica e hospitalar, a saúde pública e incontáveis atividades econômicas e práticas cotidianas que se modificavam por efeito dos micróbios, insetos e outros parasitas e hospedeiros, agora reconhecidos como ‘partes’ dificilmente evitáveis das relações dos homens uns com os outros e com a natureza.

De maneira esquemática, podemos relacionar a primeira revolução às descobertas que incriminavam número crescente de microrganismos como causadores de doenças infecciosas, e que levavam ao desenvolvimento de técnicas para obter vacinas capazes de imunizar pessoas e animais contra elas, e soros capazes de curar indivíduos já acometidos por essas doenças. A segunda revolução guarda estreita relação com a primeira: tem a ver com a descoberta de que insetos e outros invertebrados podiam servir de hospedeiros a microrganismos patogênicos para os homens, os bichos e as plantas, explicando, assim, os mecanismos de transmissão de doenças que por muito tempo haviam permanecido enigmáticos.

“Revolução pasteuriana” é a expressão frequentemente usada para designar a dos micróbios, vacinas e soros. Traz a primeiro plano a França e a obra fundamental de Louis Pasteur (1822-1895), seus discípulos e sucessores, mas deixa à sombra a contribuição igualmente importante de outros personagens e países, em particular Robert Koch (1843-1910) e demais investigadores da Alemanha. Um aspecto da revolução pasteurina é, justamente, a duradoura rivalidade entre franceses e alemães, exacerbada durante a guerra franco-prussiana (1870-1) e as guerras mundiais do século XX.

Os autores que escreveram sobre o assunto caracterizam de diferentes maneiras as origens dessa revolução. Uma abordagem parte da química e das controvérsias sobre os processos de fermentação e putrefação que perpassavam diversas ciências da vida, sem falar nas atividades agroindustriais relacionadas a alimentos e bebidas. Tais processos são um bom fio condutor porque se supunha na época que as doenças infecciosas fossem causadas por miasmas, isto é, gases procedentes das sujeiras e matérias orgânicas que apodreciam no solo das cidades e das planícies litorâneas ou encharcadas. Na primeira metade do século XIX, o sueco Jöns Jakob Berzelius (1779-1848) e os químicos alemães Friedrich Wöhler (1800-82) e Justus von Liebig (1803-73) eram os mais renomados representantes da corrente, então hegemônica, que atribuía esses processos à interação somente de forças químicas e físicas. Liebig, por exemplo, encarava a fermentação e a putrefação como instabilidade química provocada pela presença de uma matéria orgânica em vias de decomposição, num estado de vibração molecular interna que podia ser comunicada a outras matérias, levando-as a se desagregar também. Os franceses Cagniard de Latour (1777-1859) e Theodor Schwann (1810-82), e o alemão Friedrich Traugott Kutzing (1807-93) sobressaíam na corrente adversária que a historiografia faz desaguar em Pasteur. Em trabalhos concomitantes e independentes, veiculados na década de 1830, procuraram demonstrar que a fermentação da cerveja e do vinho eram o resultado da atividade de células ou corpúsculos vivos que classificavam como fungos ou algas.

Pasteur abordou a complexa problemática das fermentações a partir de uma descoberta que reestruturou a percepção das duas vertentes da química, a orgânica e a inorgânica. Em 1848, demonstrou que o ácido racêmico podia ser separado em dois componentes quimicamente idênticos (ácido tartárico) mas fisicamente desiguais. Tal desigualdade ou assimetria molecular era revelada pelo modo como se comportavam sob um feixe de luz polarizada: somente um dos isômeros o desviava. A relação entre esta particularidade estrutural e a vida vegetal ou animal levou Pasteur a migrar deste primeiro objeto de estudo, que unia cristalografia, química e ótica, ao controvertido território das fermentações, a começar pela do álcool amílico, que possuía aquela intrigante propriedade de desviar o plano de polarização luminosa.

Em 1857, apresentou sua primeira comunicação sobre a fermentação láctica à Sociedade das Ciências, Agricultura e Artes de Lille. Em 1861, voltou-se para a fermentação butírica e a acética, publicando cinco anos depois Estudos sobre o vinho, em que correlacionava as doenças que afligiam os industriais e viticultores à invasão de microrganismos que alteravam as propriedades da bebida. Os estudos sobre a fermentação foram interrompidos durante o período em que se debruçou sobre as doenças causadas ao bicho-da-seda (1865-1871). Em 1876, publicou Estudos sobre a cerveja, que continham visão mais madura dos processos fermentativos, com observações e conceitos fundamentais para a constituição da bacteriologia como disciplina capaz de explicar, sob nova luz, a origem e o desenvolvimento das doenças humanas. Nestes estudos, Pasteur revelou um mundo povoado por seres microscópicos capazes de sobreviver à custa da matéria mineral, com ou sem oxigênio, usando como meio nutritivo e fonte de energia as formas mais simples de compostos carbônicos, como o álcool, o ácido acético ou o açúcar, e a amônia como fonte de nitrogênio. Cada tipo de fermentação estava relacionado à vida de um microrganismo específico, que se multiplicava com incrível velocidade.

Entre 1877 e 1887, dos 55 aos 65 anos de idade, Pasteur conduziu a microbiologia para dentro da medicina ao descobrir o vibrião séptico, os estafilococos responsáveis pelos furúnculos e pela osteomielite, o estreptococo que ocasionava a infecção puerperal, o pneumococo. Nesse período, por obra de pioneiros como Joseph Lister (1827-1912), a assepsia e a anti-sepsia começaram a se tornar procedimentos obrigatórios não só na cirurgia como nos laboratórios.

Tiveram início, então, os estudos de Pasteur sobre as vacinas. Excetuando-se a técnica de imunização contra a varíola proposta por Edward Jenner, em fins do século XVIII, não se tinha outro produto biológico dessa natureza para seres humanos. Pasteur descobriu, em 1880, a vacina contra o cólera das galinhas e, no ano seguinte, fez espetacular demonstração da eficácia daquela contra o carbúnculo. Em seguida, em Congresso Médico Internacional realizado em Londres, defendeu novo conceito de vacina: a imunização por meio da inoculação de culturas microbianas com virulência atenuada artificialmente em laboratório. O trânsito para as patologias humanas, passando pela vacina contra o cólera dos porcos (1883), foi um processo complexo do ponto de vista técnico, ético e social que culminou com a aplicação da vacina anti-rábica no menino alsaciano Joseph Meister, em 6 de julho de 1885.

Em março do ano seguinte, a Academia das Ciências de Paris abriu uma subscrição internacional em prol de um estabelecimento destinado àquela vacina. D. Pedro II, o monarca brasileiro, foi um dos primeiros a contribuir, e com soma tão expressiva que lhe homenagearam com um busto no saguão do Instituto Pasteur, inaugurado na capital francesa em novembro de 1888. Com um repertório de atividades que ia muito além da profilaxia da raiva, seria a matriz ou o modelo de instituições similares no mundo inteiro.

O Instituto Pasteur do Rio de Janeiro foi inaugurado, inclusive, pouco antes do parisiense, mas se restringiu ao tratamento da hidrofobia.

Àquela época, vários médicos brasileiros já se tinham voltado para a investigação dos micróbios patogênicos, especialmente o causador da febre amarela, um dos mais graves problemas sanitários do Brasil. Grande celeuma provocou, por exemplo, o dr. Domingos José Freire (1843-1899), catedrático de química orgânica da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que relacionou a doença a uma alga microscópica que denominou Cryptococcus xanthogenicus, por analogia com a bactéria do carbúnculo, cujos esporos Koch descobrira há pouco nas sepulturas de animais vitimados pela doença. Ao longo das décadas de 1880 e 1890, milhares de pessoas no Rio de Janeiro e em outras cidades do Brasil e, mesmo, do exterior submeteram-se à vacina que Freire desenvolveu com o suposto micróbio causador da febre amarela.

Naqueles anos, crescia o interesse pelos mecanismos de transmissão das doenças com etiologia microbiana demonstrada ou suspeita. A ênfase dada por Pasteur e Lister à ubiquidade dos germes no ar retrocedeu por efeito de investigações sobre outros veículos ou portadores: de um lado, água, esgotos, alimentos, dejeções do corpo; de outro, cães, gatos, pássaros e insetos. Cogitava-se na transmissão mecânica dos “vírus” (termo ainda empregado em sua acepção latina, como sinônimo de veneno) apanhados em águas estagnadas, matérias pútridas e dejeções, como faziam as moscas com o bacilo causador da febre tifóide. Em menor medida, cogitava-se na disseminação de doenças por animais sugadores de sangue, diretamente, ao picar os humanos, ou por intermédio da água contaminada pelos insetos infectados que morriam nela, como supunha Patrick Manson (1844-1922) que ocorresse com o mosquito Culex, que verificou ser o transmissor da filária.

Em 1877-1878, o médico inglês desvendou quase todo o ciclo deste verme, concatenando as partes de um enigma que começara a ser decifrado no Brasil, em 1866, quando Otto Edward Henry Wucherer (1820-1873) atribuíra a chamada elefantíase-dos-árabes (filariose) a um nematódeo microscópico (Wuchereria bancrofti) encontrado na urina dos doentes.

O trabalho de Manson abriu as portas para outras descobertas envolvendo artrópodes como hospedeiros intermediários de microrganismos patogênicos para homens e animais. Em 1893, Theobald Smith (1859-1934) e Fred Lucius Kilborne (1858-1936) desvendaram a transmissão por carrapatos do protozoário que causava a doença do gado chamada febre do Texas. David Bruce descreveu em 1895-1896 a transmissão mecânica de tripanossomos por moscas do gênero Glossina.

Malária e febre amarela permaneciam expostas a grandes indefinições, em parte devido ao insucesso das tentativas de encontrar seus supostos agentes microbianos fora do corpo humano. O hematozoário descoberto em 1880 por Charles Louis Alphonse Laveran (1845-1922) — Oscillaria malariae, depois chamado Plasmodium malariae — era encontrado no organismo dos doentes, mas não se conseguia cultivá-lo in vitro nem produzir experimentalmente a doença.

A partir de meados dos anos 1890, multiplicaram-se na imprensa brasileira e estrangeira as informações ou especulações sobre o papel dos insetos na transmissão de doenças, sobretudo as moscas, facilitando sua incorporação ao imaginário das populações urbanas como fonte onipresente de perigo em meio ou em substituição aos impalpáveis miasmas. Os médicos supunham que disseminavam os micróbios do carbúnculo, da oftalmia do Egito, do botão de Biskara, do piã (bouba) e do mormo. Alexander Yersin (1863-1943) verificou que moscas mortas em seu laboratório continham o bacilo da peste bubônica e podiam infectar a água de beber. E Joly (1898-1899) confirmou que depositavam nos alimentos e bebidas o bacilo da tuberculose, descoberto por Koch em 1882.

Quando Ronald Ross (1857-1932) desvendou, em 1898, o ciclo do parasita da malária das aves no mosquito Culex, e Giovanni Battista Grassi (1854-1925), Amico Bignami (1862-1919) e Giuseppe Bastinelli revelaram, no ano seguinte, o ciclo do parasita da malária humana em mosquitos do gênero Anopheles, tornou-se inevitável a suposição de que cumprissem idêntico papel na febre amarela, cujo diagnóstico confundia-se com o de algumas das febres agora interpretadas como sinais clínicos das diferentes espécies de Plasmodium.

A consagração de Ross como concorrente britânico do francês Pasteur e do alemão Koch foi decisiva para a concretização do projeto que Patrick Manson defendera, em outubro de 1897, em conferências no St. George’s Hospital: investir-se na formação de médicos habilitados a lidar com o que chamou de “medicina tropical”.

A expressão é tão problemática quanto “revolução pasteuriana”, e Manson tinha consciência disso: as doenças encontradas nas regiões do globo limitadas por estes paralelos grassam também nas zonas temperadas. Muitos médicos brasileiros insurgir-se-iam contra este conceito que parecia perpetuar os estigmas de insalubridade e atraso originados nos séculos XVIII e XIX, quando as teorias médicas que atribuíam doenças infecciosas a climas quentes e seus miasmas serviram à produção de ideologias eurocêntricas destinadas a legitimar a expansão colonial dos Estados europeus. Para Manson e seus seguidores, o clima e outros fatores ambientais eram relevantes somente na medida em que influíam sobre as condições de vida e reprodução dos parasitas patogênicos e seus hospedeiros. A expressão “medicina tropical” passou a ser usada para delimitar um território de investigação que requeria dos médicos uma formação diferente daquela proporcionada pelas Faculdades de Medicina: era preciso combinar o conhecimento da anatomia, fisiologia, clínica e terapêutica com o ferramental da zoologia e microbiologia para que os médicos fossem capazes de compreender e investigar os complexos ciclos de vida de vermes e micróbios e dos animais vertebrados e invertebrados que os hospedavam.

Em junho de 1899, começou a funcionar a Liverpool School of Tropical Diseases; em outubro, foi inaugurada a London School of Tropical Medicine, de maior porte. Em junho de 1900, os drs. Walter Myers e Herbert. E. Durham, da primeira escola, rumaram para o Brasil para investigar a febre amarela. Traziam a hipótese de sua transmissão por um inseto sugador de sangue, já formulada em 1881 pelo médico cubano Carlos Juan Finlay. Ela ganhou maior consistência com as informações fornecidas a Myers e Durham pelos médicos ligados às tropas dos Estados Unidos que haviam acabado de conquistar Cuba a sua antiga metrópole, a Espanha. Se os norte-americanos não tivessem enveredado por este caminho, talvez a teoria de Finlay houvesse sido confirmada pelos ingleses, no Norte do Brasil.

As conclusões da comissão chefiada pelo dr. Walter Reed – demonstrando o papel do mosquito como vetor da febre amarela – foram apresentados ao 3o Congresso Pan-Americano, em Havana, em fevereiro de 1901, ao mesmo tempo que William Gorgas dava início, naquela cidade, à campanha contra o mosquito que logo seria classificado como Stegomya fasciata e, mais tarde, Aedes aegypti (o grande propagador da dengue, hoje, nas cidades brasileiras).

Iniciava-se, então, a idade de ouro da entomologia médica. Se na conjuntura anterior, de decolagem da revolução pasteuriana, o carbúnculo e, em seguida, o cólera e a febre tifóide serviram de modelos aos caçadores de micróbios, agora médicos dedicados à clínica e bacteriologia, zoólogos que haviam estudado outros grupos de animais, veterinários, botânicos e até mesmo leigos fascinados pelo estudo da natureza reconfiguravam a rede de atores que iria colaborar ou competir na busca de transmissores alados de doenças assemelhadas à malária e à febre amarela.

Um dos grandes problemas que enfrentavam era a falta de conhecimentos sobre mosquitos e outros dípteros. Durante todo o século XIX, haviam sido descritas apenas 42 espécies no âmbito da família dos Culicidae estabelecida por Johann C. Fabricius em sua Entomologica systematica (1794). Somente na primeira década do século XX foram mais de duzentas espécies novas, a maioria pelo inglês Frederick Vincent Theobald (1868-1930), o norte-americano Daniel William Coquillett (1856-1911) e o brasileiro Adolpho Lutz (1855-1940), desde 1893 diretor do Instituto Bacteriológico de São Paulo.

As primeiras observações sistemáticas de Lutz diziam respeito ao mosquito como agente da propagação da febre amarela (1901). Não obstante se afirmasse, então, que o Stegomyia fasciata era o único transmissor da doença, sustentou Lutz que mosquitos silvestres também poderiam transmitir o germe ainda desconhecido da doença, hipótese que Fred L. Soper (1893-1977) e sua equipe, da Fundação Rockefeller, confirmariam, no Brasil, em 1932.

Em 1903, Lutz publicou estudo fundamental sobre a malária que grassava nas florestas, transmitida por mosquitos que se reproduziam em plantas armazenadoras de água, como as bromélias. Ele havia se tornado o pólo de aglutinação, no país, dos médicos que se voltavam para aquele campo emergente de pesquisa, intimamente relacionado a outro, igualmente recente: a busca em humanos e outros animais de protozoários, grupo de microrganismos unicelulares, com grande variedade de formas, no âmbito dos quais tinham sido descritos os do gênero Plasmodium, agentes da malária, e que logo abrangeria os tripanossomos responsáveis pela doença do Sono, a doença de Chagas, entre outras.

Celestino Bourroul defendeu em 1904, na Faculdade de Medicina da Bahia, a primeira tese da entomologia médica brasileira (tornar-se-ia depois catedrático de parasitologia na Faculdade de Medicina de São Paulo); outro interlocutor de Lutz nos estudos sobre mosquitos e protozoários foi Francisco Fajardo, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde orientou a tese de Carlos Chagas sobre malária, defendida em 1903.

Em 1901 veio a lume Contribuição para o estudo dos culicídeos do Rio de Janeiro, do jovem Oswaldo Gonçalves Cruz, então diretor técnico do Instituto Soroterápico Federal do Rio de Janeiro (Instituto de Manguinhos). Ele havia estudado os mosquitos de alguns focos de malária nos arredores da capital – o Jardim Botânico, ‘arrabalde’ ainda distante, que as linhas de bonde acabavam de conectar à zona urbana; e Sarapuí, freguesia da baixada fluminense, às margens da Estrada de Ferro Central do Brasil. As excursões aos referidos focos de malária foram feitas com os técnicos de Manguinhos. Henrique da Rocha Lima, que iria se incorporar ao instituto em 1903; Figueiredo de Vasconcellos, Antônio Cardoso Fontes, Ezequiel Dias e até mesmo o arquiteto Luiz de Morais, contratado para edificar os prédios monumentais que agasalhariam o Instituto Oswaldo Cruz.

Uma das áreas em que mais se investiu nessa fase inaugural do Instituto foi a entomologia, a cargo do próprio Oswaldo Cruz, de Arthur Neiva e de Carlos Chagas, dedicando-se os dois últimos, intensamente, ao estudo da vida e dos hábitos dos transmissores da malária.

 

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Tripanossomos

 A descoberta do Trypanosoma cruzi e os estudos sobre tripanossomas no início do século XX

Magali Romero Sá

Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

E-mail: magali@coc.fiocruz.br

Os tripanossomos parasitas de animais eram conhecidos desde 1841 através do trabalho de Gustav Valentin, professor da Universidade de Berna, que os encontrou em trutas. Em 1843, David Gruby descreveu pela primeira vez um tripanossomo descoberto em sangue de rã: o Trypanosoma sanguinis. Porém, foi somente no final do século XIX que esse grupo de protozoários foi associado a doenças de animais domésticos e posteriormente ao homem. Em 1880, Griffith Evans descobriu o Trypanosoma evansi, agente da doença fatal que acometia cavalos e camelos conhecida como “surra”. Alguns anos mais tarde, entre 1895 e 1896, David Bruce  verificou que os tripanossomos (Trypanosoma brucei) eram agentes da doença conhecida como “nagana”, uma doença que afeta equídeos e outros animias. No início do século XX, é descoberto o Trypanosoma gambiense, causador da tripanossomíase africana ou doença do sono, que acomete a população africana.

As primeiras observações sobre tripanossomos realizadas no Brasil foram de Adolpho Lutz na década de 1890, quando em seus estudos sobre hematozoários observou a ocorrência desses protozoários em ratos e rãs. Anos mais tarde, em 1907, Vital Brasil e A. Lutz irão registrar a ocorrência de uma tripanossomíase epizoótica nos estados de São Paulo e Pará. A doença, conhecida como quebra-bundas ou mal-de-cadeiras, acometia principalmente equídeos e tinha como causa um tripanossomo descoberto em 1901 pelo então diretor do Instituto Bacteriológico de Assunção, Paraguai, Miguel Elmassian. Neste mesmo ano, esta espécie é denominada Trypanosoma equinum por O. Voges. Os trabalhos de Lutz e Vital Brazil contribuíram para estender a área conhecida de distribuição geográfica da doença – registrada até então para a Argentina, Uruguai, Paraguai e região pantaneira – para o sudeste do Brasil e região amazônica. Lutz contribuiu ainda para reforçar a hipótese da capivara (Hydrochaeris hydrochaeris), o maior roedor sul-americano, constituir o reservatório natural do tripanossomo e um inseto díptero (mosca) seu possível vetor, à semelhança das tripanossomíases africanas.

Menos de um ano após as contribuições de Lutz e Vital Brasil, três novas formas de tripanossomos do Brasil são descobertas: duas em macacos e uma terceira, a causadora da tripanossomíase americana ou doença de Chagas, que irá impulsionar estudos subsequentes em protozoologia na América Latina e adicionar uma nova doença humana causada por protozoário aos compêndios médicos e científicos.

Durante o trabalho que vinha desenvolvendo no combate à malária na área de Lassance, Minas Gerais, Carlos Chagas encontra uma nova forma de tripanossomo ao analisar o sangue do sagui Callithrix penicilata, descrevendo-o como Trypanosoma minasense em 1908 (o trabalho foi publicado no Brazil-Medico em 1908 e em 1909 no Archiv fur Schiffs- and Tropenhygiene, na Alemanha). Meses antes da descoberta de Chagas, outro tripanossomo de macaco sul-americano tinha sido descoberto por Herbert von Berenberg-Gossler enquanto procurava parasitos da malária no macaco amazônico Brachyurus calvus, vulgarmente conhecida como cacajao, A esta nova espécie, Berenberg-Gossler denominou Trypanosoma prowazeki em homenagem ao protozoologista tcheco Stanilas von Prowazek.

Ainda em Lassance, logo após a descoberta do tripanossomo em exemplares de saguis, Carlos Chagas teve sua atenção voltada para um inseto hemíptero que se escondia durante o dia nas fendas das paredes de barro batido das habitações locais e só saia à noite para se alimentar. Por picar os habitantes na face enquanto dormiam, esse hemíptero era conhecido vulgarmente pelo nome de “barbeiro”. Ao examinar o inseto, Chagas encontrou “numerosos flagelados com características morfológicas de critidia”, tendo inferido tratar-se de formas intermediárias dos tripanossomos descobertos anteriormente por ele nos saguis. Para confirmar sua hipótese, enviou os insetos parasitados para Manguinhos no sentido de que fossem utilizados em experiências em macacos da mesma espécie, mas livres de parasitas. O experimento, conduzido por Oswaldo Cruz, resultou após 20 a 30 dias num grande número de tripanossomos no sangue periférico dos macacos, mas com morfologia completamente diferente do tripanossomo encontrado anteriormente por Chagas no sagui. Chagas constatou mesmo que se tratava de forma distinta de qualquer espécie de tripanossomo até então conhecida, o que o levou a descrevê-la como uma espécie nova, a qual denominou Trypanosoma cruzi em homenagem a Oswaldo Cruz.

A nova descoberta de Chagas desencadeou radical mudança de rumo na história da medicina tropical no Brasil. Logo após a descrição do novo tripanossomo, a espécie vai ser identificada como patógena de uma nova tripanossomíase humana desconhecida da ciência até aquele momento. Além de identificar esse novo agente patogênico e uma nova doença, Chagas vai também descobrir um novo grupo de insetos vetores, os hemípteros. Grupo composto majoritariamente de espécies fitófagas, os hemípteros possuem somente uma subfamília de espécies hematófagas (Triatominae), subgrupo de suma importância para as pesquisas médicas. A grande maioria dos Triatominae é nativa das regiões Neotropical e Neártica. A distribuição geográfica dos Triatominae estende-se de Salt Lake City, nos Estados Unidos (41º N), ao norte, à Patagônia, no sul da América do Sul.  A descoberta de Chagas demonstrou definitivamente a importância dos tritomíneos em estudos de insetos vetores, em especial nas Américas.

À época, as novas descobertas no campo da protozoologia feitas por Carlos Chagas estavam sendo acompanhadas em Manguinhos pelos pesquisadores do Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais de Hamburgo, o protozoologista Stanilas von Prowazeck Edler von Lanow (1875-1915) e o químico e farmacêutico alemão Gustav Giemsa (1867-1948). Os dois pesquisadores haviam chegado ao Brasil em 3 de julho de 1908, convidados por Oswaldo Cruz para ministrar cursos de protozoologia e química respectivamente, além de colaborar com os pesquisadores da instituição.   Prowazek, discípulo de Fritz Schaudinn e seu substituto no Instituto de Hamburgo, chegava a Manguinhos já com larga experiência no estudo dos Protistas, em especial dos tripanossomos.  Em sua bagagem, trazia animais infectados com diferentes espécies de tripanossomos como o  T. equiperdum, causador da doença de cavalos conhecida como “durina”,  T. gambiense, causador da doença do sono e o T. congolense que afetava principalmente o gado,  para serem estudados pelos pesquisadores de Manguinhos.

Prowazek acompanhou de perto o trabalho de Chagas, enviando informações para Hamburgo sobre os novos tripanossomos descobertos e incentivando Chagas a enviar suas descobertas para publicação no periódico alemão. Em 17 de dezembro de 1908, logo após a publicação no Brazil-Medico, as novas espécies de tripanossomos descritas por Chagas foram enviadas para o Archiv fur Schiffs- and Tropenhygiene, tendo sido publicadas no primeiro número de 1909.

As observações de Chagas sobre o desenvolvimento do T. cruzi no hospedeiro intermediário deixaram profunda impressão em Prowazek, levando-o, logo que voltou a Hamburgo em fevereiro de 1909, a publicar trabalho intitulado “Observações criticas sobre o problema dos tripanossomos”. Nele, Prowazek faz as seguintes observações sobre o trabalho de Chagas: “Em relação ao desenvolvimento dos tripanossomos em hospedeiros intermediários, pode-se por fim citar as observações de C. Chagas sobre o Trypanosoma cruzi n. sp. (Archiv fur Schiffs- Tropenhygiene, volume XIII, n. 4), que é transmitido através de um percevejo (Conorrhinus)”. Quanto as alterações morfológicas do parasita, remetemo-nos a comunicação propriamente dita. Particularmente importante parece-me a (seguinte) observação: ‘No celoma do Conorrhinus encontrei formas adultas de parasitas que se diferenciavam das do canal intestinal por apresentarem características do tripanossomo adulto’. “Estes são os fatos que, obtidos em parte em base experimental (Manteufel, Kleine, Baldrey e Chagas), falam a favor de um desenvolvimento do tripanossomo em hospedeiro intermediário”. Prowazek termina seu trabalho com o seguinte comentário:

“Para os tripanossomos patogênicos, o desenvolvimento num hospedeiro intermediário ainda não está provado definitivamente; ainda assim, nos últimos tempos, acumulam-se provas neste sentido e é de se esperar que os próximos anos nos tragam a solução definitiva deste problema”.

A evidência a que Prowazek estava se referindo foi publicada pelo pesquisador alemão Friedrich Kleine, que vinha estudando a tripanossomíase africana (doença do sono) desde a sua viagem à África como membro da Primeira Comissão da África Alemã Oriental para a Doença do Sono em 1906-7. Em 1909, Kleine publicou o desenvolvimento do Trypanosoma gambiense, o agente da tripanossomíase humana africana na mosca. Para tal, realizou experimentos de transmissão de pacientes humanos para grandes e pequenos símios, provando que o parasita tinha estado presente nas moscas glossinas por um período mínimo antes de causar infecção. Kleine mostrou ainda que somente as formas metacíclicas nas glândulas salivares do inseto eram infecciosas.

Logo após o trabalho de Kleine, Chagas vai identificar no mesmo local (Lassance) onde encontrou os percevejos infectados, uma jovem infectada por Trypanossoma cruzi e assim comprovar a patogenicidade do protozoário por ele descoberto no percevejo. Vai então finalmente descrever o desenvolvimento completo do protozoário patogênico no hospedeiro intermediário – o barbeiro – e no hospedeiro definitivo – o homem. Como previra Prowazek, a comprovação da ocorrência de tripanossomos patogênicos em hospedeiros intermediários não demorou a acontecer.

A história da descoberta da doença de Chagas difere completamente da sua correspondente africana – a doença do sono. O estudo das tripanossomíases africanas foi desenvolvido através de investigações veterinárias e humanas simultâneas e em estreita sintonia com a expansão colonial dos países europeus em territórios africanos e asiáticos. As doenças que afligiam os animais e pessoas foram sendo gradualmente identificadas e envolveu diferentes atores em tempos diversos. Durante o processo, ingleses, franceses, belgas e alemães varreram seus territórios em busca de parasitas e vetores, com pesquisas de campo e em laboratórios locais ou nos das metrópoles. Tanto as novas descobertas como a intensa circulação de idéias entre os cientistas foram fatores fundamentais para o avanço progressivo do conhecimento dos tripanossomos e tripanossomíases que ocorriam no continente africano.

Já o inverso ocorreu em relação ao Novo Mundo. A busca por parasitas em animais selvagens levou eventualmente à descoberta de um novo tripanossomo (T. minasense) em uma espécie endêmica de símio sul-americano. Subsequentemente, um inseto “inusitado” (barbeiro) foi identificado hospedando uma forma intermediária de um tripanossomo (critidia). Este, julgado inicialmente co-específico com o tripanossomídeo recém descoberto no sagui, acabou por revelar-se uma espécie nova distinta do T. minasense e patogênica para o homem. Todas essas grandes descobertas foram realizadas por um único cientista – Carlos Chagas –  que através de sua busca por novos parasitas descobriu um novo protozoário patogênico (Trypanosoma cruzi), um novo grupo de organismos vetores (hemípteros da subfamília Triatominae) e uma nova tripanossomíase humana (doença de Chagas).

 

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Descoberta

Carlos Chagas e a descoberta de uma nova tripanossomíase humana

Simone Petraglia Kropf

Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

E-mail: simonek@coc.fiocruz.br

Em junho de 1907, Carlos Chagas foi designado por Oswaldo Cruz, diretor da saúde pública federal, para combater uma epidemia de malária que paralisava as obras de prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil em Minas Gerais, na região do rio das Velhas, entre Corinto e Pirapora (Figura 1 e 2). No município de Lassance (Figura 3), onde se construía uma estação da ferrovia (Figura 4), ele instalou um pequeno laboratório num vagão de trem, que também usava como dormitório. Enquanto coordenava a campanha de profilaxia, coletava espécies da fauna brasileira, motivado por seu crescente interesse pela entomologia e pela protozoologia. Num contexto de difusão internacional das teorias da medicina tropical,  estas eram áreas que assumiam grande importância no projeto de Oswaldo Cruz em transformar o Instituto de Manguinhos  num renomado centro de medicina experimental. Em 1908, ao examinar o sangue de um sagui, Chagas identificou um protozoário do gênero Trypanosoma, que batizou de Trypanosoma minasense. A nova espécie era um parasito habitual, não patogênico, do macaco.

Figura 1: Chagas e Belisário Penna com equipe da Estrada de Ferro Central do Brasil, na região do rio das Velhas.
Figura 2: Carlos Chagas e Belisário Penna no prédio da EFCB.
Figura 3: Vista geral de Lassance.
Figura 4:  Estação da Estrada de Ferro Central do Brasil em Lassance.

Naquele período, o estudo dos tripanossomas atraía a atenção dos pesquisadores no campo da medicina tropical, sobretudo desde que se comprovara que, além de doenças animais, tais protozoários causavam enfermidades humanas, como a tripanossomíase africana. Tradicionalmente conhecida como doença do sono, esta enfermidade causava grande preocupação entre os países europeus que tinham colônias naquele continente.

Além da busca de novos parasitos, Chagas estava atento a artrópodes que pudessem servir-lhes de vetores. Numa viagem a Pirapora, ele e Belisário Penna (seu companheiro na missão de combate à malária) pernoitaram, junto com os engenheiros da ferrovia, num rancho às margens do riacho Buriti Pequeno. O chefe da comissão de engenheiros, Cornélio Homem Cantarino Mota, mostrou-lhes então um percevejo hematófago muito comum na região, conhecido vulgarmente como barbeiro (Figura 5), pelo hábito de picar o rosto de suas vítimas enquanto dormiam. Era abundante nas choupanas de pau-a-pique da região (Figura 6), escondendo-se nas frestas e buracos das paredes de barro durante o dia e atacando seus moradores à noite.

Figura 5: Barbeiro.
Figura 6: Cafua em Lassance.

Sabendo da importância dos insetos sugadores de sangue como transmissores de doenças parasitárias aos homens e aos animais, Chagas examinou alguns barbeiros e encontrou, em seu intestino, formas flageladas de um protozoário, com certas características que o fizeram pensar que poderia tratar-se de um parasito natural do inseto ou então de uma fase evolutiva do tripanossomo de vertebrado. No caso desta segunda hipótese, poderia ser o próprio T. minasense, sendo o barbeiro o vetor que o transmitiria aos saguis.

Por não dispor em Lassance de condições experimentais para elucidar a questão, uma vez que os macacos da região estavam contaminados pelo minasense, Chagas enviou a Manguinhos alguns daqueles insetos. Oswaldo Cruz os fez se alimentarem em saguis criados em laboratórios (e portanto livres de qualquer infecção) e, cerca de um mês depois, comunicou Chagas que encontrara formas de tripanossoma no sangue de um dos animais, que havia adoecido. Voltando ao Instituto, Chagas constatou que o protozoário não era o T. minasense, mas uma nova espécie de tripanossoma, que batizou então de Trypanosoma cruzi, em homenagem ao mestre. A nota anunciando esta descoberta foi redigida em Manguinhos em 17 de dezembro de 1908 e publicada na revista do Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo.

Em Manguinhos, Chagas iniciou estudos sistemáticos sobre o ciclo evolutivo do novo parasito (Figura 7 e 8), que, em cumprimento a dois dos postulados de Koch, mostrou-se capaz de infectar experimentalmente cães, cobaias e coelhos e de ser cultivado em agar-sangue. O barbeiro, por sua vez, passou a ser minuciosamente investigado por Arthur Neiva, também pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz. Em busca de outros hospedeiros vertebrados do T. cruzi e suspeitando que o homem pudesse ser um deles – hipótese reforçada por seus conhecimentos sobre a malária, também transmitida por um inseto hematófago domiciliário e causada por um hematozoário –, Chagas retornou a Lassance.

Figura 7:  Chagas em seu laboratório no IOC.

Leváramos, como idéia diretriz, a noção de constituírem os domicílios humanos o habitat predileto, senão exclusivo, do hematófago, assim como fato, amplamente verificado, de ser o sangue humano a alimentação por excelência dele. Seria razoável pensar, daí, numa condição infectuosa intra-domiciliária e que o vertebrado hospedeiro do parasito fosse algum animal doméstico ou o próprio homem”. – Carlos Chagas.

Esta hipótese também explicaria certos fenômenos mórbidos que havia observado na região e que não se encaixavam no quadro nosológico conhecido.

Em Lassance, Chagas empreendeu exames sistemáticos de sangue nos moradores, além de procurar “a existência de elementos mórbidos característicos de tripanossomíases” (Figura 9). Ao examinar animais domésticos, verificou a presença do T. cruzi no sangue de um gato. No dia 14 de abril de 1909, encontrou finalmente o parasito no sangue de uma criança febril. Em nota prévia enviada ao Brasil Médico, uma das principais revistas médicas do país, anunciou a descoberta:

“Num doente febricitante, profundamente anemiado e com edemas, com plêiades ganglionares engurgitadas, encontramos tripanossomas, cuja morfologia é idêntica à do Trypanosoma cruzi. Na ausência de qualquer outra etiologia para os sintomas mórbidos observados e ainda de acordo com a experimentação anterior em animais, julgamos tratar-se de uma tripanossomíase humana, moléstia ocasionada pelo Trypanosoma cruzi, cujo transmissor é o conorrhinus sanguissuga”.

Figura 9:  Chagas atendendo Berenice.

Berenice, uma menina de dois anos, era o primeiro caso do que seria considerada a partir de então uma nova doença humana. O fato foi divulgado também mediante publicações nos Archiff fur Schiffs-und Tropen-Hygiene e no Bulletin de la Société de Pathologie Éxotique.

Aos 22 de abril, ao mesmo tempo em que o Brasil Médico trazia em suas páginas a descoberta feita no norte de Minas, o feito foi comunicado, em sessão da Academia Nacional de Medicina, por Oswaldo Cruz, que leu um trabalho escrito por Chagas. A imprensa também deu destaque ao episódio, reverenciado como uma das “glórias de Manguinhos”.

A descoberta e os primeiros estudos da nova entidade mórbida tiveram um impacto decisivo na carreira científica de Chagas, que alcançou grande proeminência no mundo científico, com efeitos diretos em sua inserção na vida institucional de Manguinhos. Em março de 1910, Oswaldo Cruz abriu concurso para preencher a vaga de “chefe de serviço” aberta com a saída de Henrique da Rocha Lima. Este foi um evento de grande importância para a instituição, pois o ocupante do cargo era visto como o mais provável candidato à sucessão de Oswaldo Cruz. Chagas obteve a primeira colocação e os trabalhos que havia publicado sobre a nova doença tiveram grande peso para tanto.

Em 26 de outubro de 1910, Chagas foi admitido solenemente como membro titular da Academia Nacional de Medicina, onde proferiu uma conferência apresentando seus estudos clínicos e apresentando farto material sobre a doença, inclusive imagens cinematográficas feitas em Lassance. No ano seguinte, um evento marcou a divulgação da descoberta e da nova doença no cenário científico internacional. No pavilhão brasileiro da Exposição Internacional de Higiene e Demografia, realizada em Dresden, Alemanha, a doença de Chagas foi apresentada com destaque, despertando grande interesse do público. Tal projeção expressava a importância que o tema assumia como carro-chefe e vitrine das pesquisas no Instituto Oswaldo Cruz. Outro marco importante da repercussão internacional da descoberta foi a conquista, por Chagas, em 1912, do Prêmio Schaudinn (Figura 10), concedido de quatro em quatro anos, pelo Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo, ao melhor trabalho em protozoologia.

Figura 10: Diploma do prêmio schaudinn.

Graças à repercussão da descoberta e dos estudos de Chagas, Oswaldo Cruz obteve, junto ao governo federal, verbas especiais para equipar um pequeno hospital em Lassance (Figura 11), a fim de sediar os estudos clínicos sobre a nova doença, e para dar início, em Manguinhos, à construção de um hospital destinado às pesquisas e acompanhamento dos casos clínicos identificados no norte de Minas Gerais e em outras regiões do país. Sob a liderança de Chagas e com a colaboração de vários pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz, a nova tripanossomíase passou a ser estudada em seus vários aspectos, como as características biológicas do vetor, do parasito e de seu ciclo evolutivo, o quadro clínico e a patogenia, as características epidemiológicas, os mecanismos de transmissão e as técnicas de diagnóstico.

Figura 11:  Hospital em Lassance.

Assumindo centralidade na agenda institucional do Instituto Oswaldo Cruz e no próprio processo de institucionalização da atividade científica no país, a descoberta da doença de Chagas passou a ser tratada, pelos contemporâneos e pela memorialística médica, até o presente, como um mito glorificador da ciência brasileira. Uma das considerações que se tornariam mais recorrentes quanto à importância da descoberta como “feito único” da ciência nacional foi o caráter incomum da sequência sob a qual ela ocorreu, já que se partiu da identificação do vetor e do agente causal para em seguida determinar a doença a eles associada. Outro aspecto singular foi o fato de o mesmo pesquisador haver descoberto, num curto intervalo de tempo, um novo vetor, um novo parasito e uma nova entidade mórbida.

A historiografia sobre a descoberta da doença de Chagas ressalta sua inscrição no contexto de afirmação e institucionalização da medicina tropical européia, tanto em função dos referenciais teóricos que a viabilizaram, quanto pela contribuição que a própria descoberta teve no sentido de consolidar a nova especialidade criada por Patrick Manson nos últimos anos do século XIX.

Outro aspecto salientado pelos historiadores é a importância da descoberta como fonte de legitimação, visibilidade e recursos – materiais e simbólicos –, para o projeto institucional de Oswaldo Cruz. Benchimol e Teixeira enfatizam que o principal efeito da descoberta foi a consolidação da protozoologia como área de concentração das pesquisas do Instituto, bem como o impulso ao reconhecimento de Manguinhos na comunidade científica internacional como centro de investigação sobre doenças tropicais. Kropf chama a atenção para que se, por um lado, a descoberta contribuiu para dar sentido e reforçar o projeto institucional de Manguinhos, ela própria ganhou sentidos particulares como “grande feito da ciência nacional” em função dos significados associados a este projeto, que se apresentava publicamente como destinado a associar excelência acadêmica e compromisso social em identificar e solucionar os problemas sanitários do país.       

 

Carlos Chagas e a caracterização clínica da tripanossomíase americana (1909-1934)

Simone Petraglia Kropf

Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

Email: simonek@coc.fiocruz.br

A primeira caracterização do quadro clínico da tripanossomíase americana, descoberta em 1909, foi apresentada por Carlos Chagas em outubro de 1910, em conferência na Academia Nacional de Medicina. Além dos dados da observação clínica realizada em Lassance, os dados histopatológicos produzidos por Gaspar Vianna, também pesquisador de Manguinhos, foram fundamentais para a sua composição.

Chagas dividiu a infecção em duas modalidades: aguda e crônica. A fase aguda foi classificada em duas formas: 1) casos com graves distúrbios cerebrais, como meningo-encefalite, derivados da ação do T. cruzi sobre o sistema nervoso central, e constituídos geralmente por crianças menores de um ano, que quase nunca sobreviviam; 2) casos sem tais manifestações, com prognóstico mais benigno, que, entre 10 e 30 dias, evoluíam para o estado crônico, com a regressão dos sintomas do período inicial. Pela abundância dos tripanossomas na circulação sanguínea durante o período agudo, o diagnóstico parasitológico era feito mediante observação direta do sangue.

Do conjunto sintomatológico do período agudo – febre contínua e intensa, gânglios na região cervical, axilas e região inguinal, esplenomegalia, hepatomegalia, alterações do sistema nervoso (fenômenos de meningismo), alterações cardíacas e afecções oculares –, Chagas destacou alguns sinais que, pela sua constância, deveriam ser privilegiados como elementos de especificidade da doença e, consequentemente, base para o diagnóstico clínico. Expressando o que, segundo ele, era um distúrbio tireoidiano derivado da ação patogênica do T. cruzi sobre esta glândula, o principal destes sinais seria a intumescência no rosto (mixedema), de grande frequência em crianças desde os primeiros dias da infecção e que conferia aos doentes um facies característico.

A fase crônica compreendia a maioria dos doentes e era constituída de elementos endócrinos, cardíacos e neurológicos. Para Chagas, a característica clínica mais constante e saliente da nova tripanossomíase eram as perturbações funcionais da tireóide, expressas, principalmente, pela hipertrofia da glândula (bócio ou “papo”) (Figura 1 e 2). Em maio de 1910,  ele havia publicado nota-prévia formulando a hipótese da etiologia parasitária do bócio endêmico.

Figura 1: Bócio.

Figura 2: Papudos fotografados durante expedição Neiva e Penna.

Esta afecção tireoidiana, à qual eram associados distúrbios físicos e mentais constitutivos do cretinismo endêmico, era conhecida desde a Antiguidade e descrita, sobretudo, nas regiões montanhosas dos Alpes europeus. Ao final do século XIX, sua etiologia ainda não havia sido totalmente elucidada. Alguns a creditavam à carência química de iodo na água, enquanto outros cogitavam da ação de microorganismos. O bócio endêmico tinha grande prevalência em Minas Gerais e, desde o século XVIII, despertava a atenção de naturalistas, viajantes e médicos. Pela desfiguração física que provocava, sobretudo quando atingia grandes volumes, e pela associação com o cretinismo, era considerado um dos principais motivos do atraso dos camponeses mineiros.

Segundo Chagas, em Minas Gerais e em outras regiões onde houvesse a transmissão do T. cruzi, o bócio endêmico não era a mesma entidade nosológica que havia na Europa, mas uma decorrência da ação deste parasito sobre a tireóide. Sua convicção fundamentava-se em três ordens de evidências. Em primeiro lugar, observava sinais clínicos de hipotireoidismo em indivíduos com outros sinais da tripanossomíase, tanto na fase aguda quanto crônica (inclusive em bebês em aleitamento exclusivo, o que, segundo ele, afastava a hipótese relacionada à deficiência química da água). Além disso, as autópsias revelavam lesões na tireóide que, segundo ele e Vianna, seriam provocadas pelo parasito. Finalmente, os dados de natureza epidemiológica: “até agora, de observações pessoais e de informações colhidas, nas regiões de Minas, onde existe o bócio existe também o inseto transmissor da esquizotripanose”. Com base em tais argumentos, concluía:

“Seja o bócio endêmico europeu de origem hídrica ou infecciosa, o nosso, aquele que temos estudado em nosso Estado natal, constitui sem dúvida uma síndrome da tireoidite parasitária, nome com muita felicidade criado pelo ilustrado professor Miguel Pereira”.

Considerando-se os efeitos que o comprometimento da tireóide provoca no desenvolvimento orgânico dos indivíduos, este se tornou um dos principais caminhos pelos quais Chagas afirmaria a importância médico-social da doença, como “condição mórbida crônica que inutiliza o indivíduo para a atividade vital” e como “um fator importante de degeneração humana”.

Os distúrbios endócrinos da fase crônica, segundo Chagas, variavam de intensidade e por isso ele os classificou em duas formas clínicas: pseudo-mixedematosa e mixedematosa. A primeira seria a de maior relevo, compreendendo a grande maioria dos portadores da infecção. Tratava-se de crianças ou jovens que, tendo sobrevivido à fase aguda, sofriam os efeitos ainda leves do hipotireoidismo. O “papo” ainda era incipiente, não se caracterizando pelo grande volume que, depois de uma evolução progressiva, viria a ter em alguns adultos. A forma mixedematosa abrangeria os casos menos comuns de maior gravidade do comprometimento da tireóide. Ao invés da hipertrofia da glândula, observava-se a sua atrofia, ou seja, a total destruição da função, com efeitos extremamente debilitantes.

A terceira forma da infecção crônica seria a forma nervosa, cujos sinais, presentes sobretudo em crianças, seriam perturbações motoras (como diplegia), da linguagem (como afasia ou disartria) e da inteligência, como idiotia (retardo mental grave) e demência. Juntamente com o “papo”, tais distúrbios, atribuídos à ação do parasito sobre o sistema nervoso central, assumiriam grande relevo nas declarações de Chagas sobre a gravidade dos efeitos físicos e sociais da doença. Assim como na forma aguda meningo-encefálica, também neste aspecto se tornaria frequente a alusão a “criaturas condenadas à existência de monstros”.

Outra síndrome clínica da fase crônica era a forma cardíaca. Os sinais mais característicos derivados da localização parasitária no “elemento nobre do miocárdio” seriam certas alterações do ritmo cardíaco, como as extrassístoles (distúrbio da excitabilidade) e, em menor grau, perturbações na condução do estímulo, como o bloqueio cardíaco. Diferentemente das outras formas, que atingiam preferencialmente crianças, Chagas observou a presença destes fenômenos em indivíduos a partir de cerca de 16 anos. O prognóstico era, em geral, grave, levando à insuficiência cardíaca e, em alguns casos, à morte repentina, por assistolia. Este era mais um aspecto do impacto médico-social da doença, acentuava, por comprometer a vitalidade de indivíduos em plena idade produtiva.

Quanto ao diagnóstico, na modalidade crônica, diferentemente do que ocorria na fase aguda, os parasitos não se encontravam na circulação sanguínea, o que impedia a demonstração parasitológica por observação direta do sangue. O procedimento utilizado, nestes casos, era a inoculação do sangue “suspeito” em cobaias. Uma vez ocorrida a morte do animal, a identificação de formas esquizogônicas em seu pulmão (que Chagas considerou estágios evolutivos do T. cruzi) determinaria a positividade do diagnóstico. Este método seria abandonado em 1913.

Apesar do estágio incipiente das pesquisas, já em 1910 Chagas salientou que a presença do barbeiro vinha sendo atestada em “quase todo o norte de Minas, em vastas regiões do Oeste do mesmo Estado e ainda nos Estados de Mato-Grosso e Goiás”, o que lhe permitia especular que “vastíssima será a extensão do país onde grassará a esquizotripanose”. Tais dados advinham, sobretudo, dos estudos de Arthur Neiva, que se dedicava aos estudos entomológicos em Manguinhos.

Deste primeiro desenho clínico da doença, destacam-se os seguintes traços fundamentais: tratava-se de uma infecção essencialmente crônica, de evolução progressiva, contraída nas primeiras idades, por praticamente todos aqueles que residiam em habitações infestadas por barbeiros e que, por atingir os indivíduos em plena fase de formação física e mental, produzia impactos permanentes sobre sua vitalidade e desenvolvimento orgânico. Suas principais manifestações clínicas eram distúrbios endócrinos (principalmente tireoidianos), nervosos e cardíacos.

Apesar de atribuir importância a estes três eixos do quadro clínico, Chagas conferia uma nítida ênfase ao primeiro deles. Um dos principais indícios desta primazia foi a denominação, proposta por Miguel Pereira e utilizada amplamente por Chagas, para referir-se à doença: tireoidite parasitária. Na expressão de outro renomado médico da época, Miguel Couto, a hipertrofia da tireóide constituía o selo da doença e passou a constituir o traço de maior destaque na visualização da nova entidade médica. O “papo” era, assim, visto como o sinal primordial para o diagnóstico clínico da infecção.

Chagas defendia publicamente, desde 1910, a noção de que a nova tripanossomíase era uma doença de grande importância médico-social. Usando um termo bastante recorrente no debate intelectual da época, ela conduziria à “degeneração” física e mental das populações rurais, comprometendo a produtividade e o progresso do país. Deste modo, deveria ser firmemente combatida pelo poder público. Em sua conferência na Academia Nacional de Medicina, ele alertou:

“É bem dolorosa a impressão trazida pelos fatos mórbidos observados naquelas zonas; dolorosa para o médico, que nos recursos atuais da ciência não encontra ainda meio eficaz de combate ao terrível inimigo; dolorosa para o estadista que demoradamente raciocinar sobre o obstáculo fatalmente oposto por aquela condição mórbida a quaisquer tentativas de progresso coletivo; dolorosa, finalmente, para o altruísta, que ali terá desenhada a miséria humana em sua expressão a mais completa, qual seja a fatalidade de uma moléstia crônica, capaz de inutilizar a mentalidade, a inteligência, a atividade vital, a vida, enfim, na sua condição de normalidade necessária à felicidade humana.”

Suas declarações tiveram grande impacto. Elas desvendavam, diante da elite médica e política da capital federal, o retrato da doença e da miséria do interior do Brasil. Enunciava-se então o preceito fundamental que, ao longo da década de 1910 e especialmente a partir da eclosão da I Guerra Mundial, seria amplificado no chamado movimento sanitarista: a idéia de que a superação dos males do Brasil dependia de uma intervenção do Estado em prol do saneamento de seus sertões. Até o final de sua vida, Chagas enfatizaria a necessidade de prevenir e combater esta e outras endemias do interior, como caminho para a “redenção sanitária” e o progresso econômico das populações rurais do país.

Em 1911, Chagas aprofundou sua classificação clínica, reiterando a primazia conferida aos elementos endócrinos e sua convicção quanto à etiologia parasitária do bócio endêmico. Além das perturbações tireoidianas, apontou a presença de deficiências ovarianas e supra-renais, chegando a propor, para este último aspecto, a criação de uma forma clínica específica.

A partir de 1913, o processo de definição e reconhecimento da nova tripanossomíase como entidade nosológica específica assumiria um novo rumo. Estudos iniciados por Henrique Aragão comprovaram que as formas esquizogônicas encontradas no pulmão de cobaias infectadas experimentalmente (que Chagas julgava serem estágios evolutivos do T. cruzi) correspondiam a outro parasito, o Pneumocystis carinii. Além de levar a uma revisão do ciclo daquele parasito, tais estudos invalidavam o principal método de diagnóstico parasitológico utilizado por Chagas para as formas crônicas da tripanossomíase. A partir de então, apesar da proposição de novos métodos de diagnóstico – como o teste sorológico baseado na fixação de complemento, desenvolvido por César Guerreiro e Astrogildo Machado em 1913, e o xenodiagnóstico, proposto por Émille Brumpt em 1914 – as incertezas quanto à comprovação parasitológica dos casos crônicos geraria questionamentos à definição clínica desta modalidade da infecção.

Em 1915/1916, estudos feitos na Argentina sob a liderança do microbiologista Rudolf Kraus, da Universidade de Viena, confrontaram alguns enunciados de Chagas para as formas crônicas da tripanossomíase, em especial a hipótese da etiologia parasitária do bócio endêmico. Apesar da comprovada distribuição de vinchucas infectadas no território argentino, os pesquisadores inquietavam-se com o fato de não ter sido diagnosticado nenhum caso humano da doença. Eles relatavam que, em províncias onde havia vetores, muitas vezes não se identificavam portadores de bócio; ou então, quando estes eram encontrados, não se conseguia comprovar a infecção por aquele parasito. Kraus e seus colaboradores argumentaram então que as manifestações tireoidianas e nervosas atribuídas à tripanossomíase americana correspondiam, na realidade, ao bócio e o cretinismo endêmicos já descritos na Europa, atribuídos por muitos à deficiência de iodo.

Em resposta a estes questionamentos, Chagas publicou, em 1916, três importantes trabalhos, em que reiterou suas convicções sobre o comprometimento endócrino e neurológico na tripanossomíase. Contudo, mesmo reafirmando seus enunciados, Chagas passou a conferir-lhes novas ênfases e significados, minimizando a primazia atribuída aos sinais tireoidianos e reforçando a importância dos elementos cardíacos. Em extenso trabalho publicado em 1916, estabeleceu nova terminologia para a classificação das formas crônicas, substituindo as formas “pseudo-mixedematosa” e “mixedematosa”, respectivamente, por “forma indeterminada” e “forma hipo-tireoidiana”. No primeiro caso, estariam reunidos os casos crônicos relativamente recentes, que ainda não manifestavam “as alterações anatômicas profundas, determinantes de síndromes clínicas definitivas”. Constituiriam, segundo ele, “formas de passagem”, pela indeterminação em sua fisionomia clínica.

Afirmando que, “na tripanossomíase a insuficiência tireoidiana é somente um dos elementos da moléstia e não constitui, por si só, a entidade nosológica”, Chagas empenhava-se em garantir que, mesmo que tal aspecto viesse a ser descartado, isso não descartaria a existência da doença como “moléstia autônoma (…) caracterizada por sintomatologia bem determinada e bem fundamentada em lesões histo-patológicas”.

Em operações discursivas bastante significativas do movimento pelo qual a tripanossomíase americana deixava de ser caracterizada como afecção fundamentalmente endócrina, o bócio endêmico – até então visto como “selo da doença” – passou a ser qualificado como “um problema discutível, anexo à história clínica da tripanossomíase”. A partir de então, Chagas deixou de utilizar o termo tireoidite parasitária para referir-se à doença.

A diretriz assumida neste “novo enquadramento do quadro clínico da doença”, iniciado em 1916, foi a progressiva valorização dos aspectos cardíacos. Em 1922, em parceria com Eurico Villela, Chagas publicou um extenso trabalho sobre a forma cardíaca, que, segundo os autores, deveria ser vista como “a característica clínica por excelência da tripanossomíase americana”.

Ironicamente, neste mesmo ano de 1922, teve início na Academia Nacional de Medicina uma intensa polêmica em que um grupo de médicos contestou diversos aspectos dos trabalhos de Chagas, recolocando as dúvidas lançadas na Argentina, especialmente a correlação com o bócio e a idéia, derivada desta associação, de que a doença era uma vasta endemia de grande impacto médico-social. Apesar de Chagas já vir, desde 1916, afirmando que a hipótese sobre o bócio poderia ser revista, a grande visibilidade política conferida à tripanossomíase americana, entre 1916 e 1919, no âmbito do movimento sanitarista havia reforçado, pela dramaticidade social que impunham ao desenho clínico daquela endemia, justamente os aspectos que mais eram objeto de contestação no terreno da discussão científica: o “papo” e os distúrbios nervosos.

Na conferência que proferiu no encerramento desta polêmica, Chagas prosseguiu afirmando que, mesmo que se refutassem os enunciados relativos ao bócio e a outras de suas formulações, não se podia duvidar dos “sinais iniludíveis” que fundamentavam a tripanossomíase americana como entidade clínica real e específica. Mais uma vez, apontou a forma cardíaca como “o aspecto mais interessante e característico da tripanossomíase americana”.

Ainda que com menor intensidade do que a forma cardíaca, a forma nervosa, apesar de contestada, seguiria motivando as pesquisas de Chagas e seus colaboradores. A partir de 1923, experiências de Eurico Villela e outros pesquisadores, que reproduziram paralisias e outros distúrbios neurológicos em cães inoculados com o T. cruzi, foram vistas como reforço à tese da especial “predileção” desse protozoário, pelo menos de algumas cepas dele, pelo sistema nervoso. Estudos com animais demonstravam também a transmissão congênita, intra-útero, do T. cruzi. Num momento em que as doutrinas em neurologia postulavam que as infecções congênitas eram as mais propícias ao comprometimento do sistema nervoso, fortalecia-se a idéia de que a ação patogênica daquele parasito sobre tal sistema orgânico se dava desde a vida embrionária.

Em 1932, em sua última apresentação científica sobre a doença, Chagas apresentou uma sistematização do “estado atual da tripanossomíase americana”, cujo objetivo era salientar justamente os avanços na compreensão da forma nervosa. Depois de manifestar seu entusiasmo com o impulso conferido a esta vertente, o trabalho abordou a forma cardíaca, reafirmando sua importância central:

“As alterações variadas do ritmo cardíaco constituem a característica sintomática de maior valia para o diagnostico clínico dessa infecção; (…) o índice endêmico da tripanossomíase americana deverá ser apreciado, principalmente, pela percentagem, sempre muito elevada, de indivíduos com alterações do ritmo cardíaco”.

As outras modalidades clínicas da doença, entre as quais as síndromes endócrinas e o bócio, constituíam, segundo ele, “aspectos menos esclarecidos”. Dizia ele:

“Embora persistente na convicção anterior, devemos confessar que o assunto oferece margem a divergências, sendo passível de contestação à doutrina formulada. (…) É uma questão aberta, a merecer estudo e perspicácia”.

Após a morte de Chagas (1934), confirmou-se que a tripanossomíase americana e o bócio endêmico eram endemias sobrepostas e totalmente distintas. Assim como seus enunciados sobre as formas endócrinas, a forma nervosa crônica também seria abandonada.

Entretanto, suas formulações sobre a forma cardíaca seriam amplamente confirmadas e ampliadas, especialmente a partir das pesquisas de seus seguidores em Manguinhos, como Evandro Chagas e Emmanuel Dias. Este último, diretor do Centro de Pesquisas e Profilaxia da Moléstia de Chagas – posto do IOC criado em 1943 em Bambuí, Minas Gerais –, produziu, juntamente com o cardiologista Francisco Laranja, trabalhos que consolidariam, ao longo da década de 1940, a caracterização da cardiopatia chagásica crônica como a principal expressão clínica da doença de Chagas.

Na década de 1950, a partir de trabalhos de Joffre M. de Rezende e Fritz Koeberle, comprovou-se outro enunciado que Chagas propusera em 1916 (ainda que aprofundar posteriormente): o de que o “mal de engasgo” ou megaesôfago é decorrente da ação patogênica do T. cruzi. A forma digestiva (megaesôfago e megacólon) passou então a compor, juntamente com a forma cardíaca e a forma indeterminada, o quadro clínico da infecção crônica.

 

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Berenice

O centenário da paciente Berenice (1907-1981)

João Amílcar Salgado

Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais

E-mail: joamisal@medicina.ufmg.br

Em 2007 comemoramos dois centenários que devem ser considerados simbólicos na história da doença de Chagas. Se vivos, completariam cem anos a paciente Berenice, por meio de quem Carlos Chagas descobriu a doença que traz seu nome, e também o professor Amílcar Viana Martins, o notável parasitologista que, em 1961, nos encaminhou a mesma paciente para completa reavaliação clínica.

No início de 1961, numa roda de pesquisadores da doença de Chagas, o professor Amílcar Viana Martins lamentava que no cinquentenário da doença, comemorado dois anos antes, ainda não se dispusesse do levantamento real de casos agudos.  Lastimava, por isso mesmo, a ausência de clínicos dispostos ao trabalho de campo, que seriam os investigadores ideais para esse levantamento. Perguntou-me se estava disposto a isso. Aceitei com entusiasmo e logo apresentei um projeto pormenorizado.

As condições eram propícias, pois Martins havia comandado tanto o Departamento Nacional de Endemias Rurais como o Instituto Oswaldo Cruz, enquanto Celso Afonso de Oliveira e eu, recém-formado, estávamos encarregados de fazer a integração entre a Universidade de Minas Gerais (hoje Universidade Federal de Minas Gerais) e o Centro de Pesquisa do antigo Instituto Nacional de Endemias Rurais (hoje Centro de Pesquisa René Rachou da Fundação Oswaldo Cruz).  Infelizmente, a renúncia do presidente Jânio Quadros trouxe grave crise política que inviabilizou aquela iniciativa.

Logo o desalento foi substituído por novo entusiasmo. O Dr. Paulo Nogueira Garcez, médico do Instituto, procedente da cidade de Pirapora, procurou o professor Amílcar Martins para dizer que  lhe estava encaminhando uma senhora e que  tinha quase certeza  ser ela a mesma menina Berenice, no sangue de quem Carlos Chagas descobrira a doença de seu nome, em 1909. Martins pediu-me que a internasse diretamente no hospital universitário e que a protegesse de qualquer sensacionalismo.

Quando o Dr. Garcez a encontrou, ela própria lhe disse ser a paciente examinada pelo Dr. Carlos Chagas.  Os demais pormenores que forneceu, o levaram à quase certeza. Logo iniciamos providências no sentido de identificá-la completamente, o que levou mais tempo que o esperado.  Finalmente os dados coligidos permitiram transformar a quase certeza em certeza. Esta investigação, paralela às investigações clínica e parasitológica, acabou me transformando em especialista em história da medicina.

A internação da paciente Berenice não poderia ser feita em lugar melhor, pois a cátedra de Clínica Propedêutica Médica da atual Universidade Federal de Minas Gerais, chefiada pelo professor João Galizzi, desfrutava de grande respeitabilidade ética e científica.  Além desse célebre semiologista, que formou gerações de excelentes clínicos, contei com o pesquisador e docente Celso Afonso de Oliveira, já citado, com o doutorando Adaílton de Campos Belo e com toda a prestimosa equipe do Hospital da Cruz Vermelha, na época um anexo do Hospital das Clínicas.

Logo ao primeiro xenodiagnóstico, foi possível isolar o tripanossomo que denominamos amostra ou cepa Berenice. Este fato raro em xenodiagnóstico causou, além de surpresa, grande emoção, em virtude de  estarmos a observar, provavelmente, o mesmo parasita observado por Carlos Chagas no momento da descoberta.  O xenodiagnóstico e o isolamento foram feitos com a participação essencial do parasitologista Hélio Espínola e com a supervisão do Dr. Aprígio de Abreu Salgado, perito nacional em xenodiagnóstico. Os nomes destes dois investigadores e do professor Amílcar Martins figurariam na segunda publicação a ser feita, com os dados exclusivos da amostra Berenice. Esta infelizmente deixou de ser efetivada, mas a amostra ficou mais bem caracterizada por meio de estudos comparativos com outras amostras.  Assim, a publicação inicial ficou restrita ao relato clínico intitulado Revisão Clínica Atual Do Primeiro Caso Humano Descrito Da Doença De Chagas, dado a público na Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, de setembro-outubro de 1962, tendo por autores João Amílcar Salgado, Paulo Nogueira Garcez, Celso Afonso de Oliveira e João Galizzi.  No centenário de Carlos Chagas, em 1979, participei da comemoração com o artigo O Centenário de Carlos Chagas e a Menina Berenice, publicado nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz.

A paciente Berenice foi acompanhada clinicamente ao longo de vinte anos, até seu falecimento, em 1981, sem evidência de que sua morte pudesse ser atribuída à doença de Chagas.  Os dados completos de sua observação médica serão incluídos no livro previsto para comemorar os cem anos da descoberta. Nele haverá ênfase sobre a identificação da paciente, sobre os aspectos clínicos e parasitológicos, bem como sobre os cuidados éticos aplicáveis a esse tipo específico de relação médico-paciente e ao caráter especial do relato. Serão discutidos também dados epidemiológicos e circunstâncias históricas da descoberta. E ainda a evolução dos conhecimentos sobre a doença desde o impacto inicial do anúncio feito por Carlos Chagas e, comparativamente, desde o impacto da notícia da sobrevida da paciente.

Exemplo desta última consequência foi nossa própria tentativa de sistematizar as alternativas evolutivas da doença, de modo a melhor acompanhar a paciente. De fato, em 1963, um ano depois de nossa publicação inicial, e em colaboração com Cid Veloso e Arnaldo Antônio Elian, apresentamos em Salvador, no XIX Congresso Brasileiro de Cardiologia, o estudo intitulado Revisão crítica dos dados que fundamentam o prognóstico e a terapêutica da forma crônica da doença de Chagas, e o divulgamos no periódico Arquivos Brasileiros de Cardiologia (junho de 1964).  Era o esforço para interpretar, de acordo com os últimos avanços da ciência, a escassez de manifestações e a longa sobrevida da paciente, ambas observadas justamente neste exemplo, em que a infecção era a de maior duração comprovada.

Por sorte, nesta época, os primeiros resultados cardiológicos da corrida espacial estavam surgindo. Procuramos aplicar à doença de Chagas tais dados emergentes, encontrados no livro Cardiovascular Dynamics, de Rupert F. Rushmer. Baseamo-nos em 105 observações de portadores da doença de Chagas, em sua maioria, procedentes de Minas Gerais, divididos em dois grupos: 80 foram estudados na enfermaria e no ambulatório, sendo alguns submetidos a testes farmacológicos, e 25 eram operários válidos, examinados em área endêmica do oeste do Estado (Calciolândia). Acompanhou esta investigação, fazendo sua iniciação científica, o doutorando Antônio Dílson Fernandes, depois extraordinário cirurgião cardiovascular. A apresentação dos dados nos rendeu elogios de Luís Venere Decourt, o notável cardiologista brasileiro, que ficou empolgado com a linha de estudo e nos cobrou urgência no desdobramento das pesquisas.

Além desta continuidade, decidi que minha primeira tese, a qual veio a ser de mestrado, seria sobre pesquisa experimental que incluísse a cepa Berenice, enquanto a tese de doutorado abrangeria a respectiva investigação laboratorial, clínica, epidemiológica e histórica. A primeira foi intitulada Estudo, pelo método da perfusão intestinal, da absorção jejunal de glicose em ratos cronicamente infectados pelo Trypanosoma cruzi, defendida em 1976 e que incluiu as cepas Berenice, Y, PNM, CL e FL. Este trabalho contou com o apoio fundamental de Zigman Brener, João Paulo Mendes de Oliveira, Tarcísio de Campos Ribeiro, Washington Tafuri e Luiz de Paula Castro. O tema da tese de doutorado foi substituído, em razão de prioridade acadêmica, por estudo na área do ensino médico, ficando o estudo completo do caso Berenice para a tese de professor titular.

No concurso para titular, em 1981, logo após o falecimento de Berenice, a defesa de tese, de acordo com as novas normas, foi transformada em seminário, no qual apresentei oralmente o estudo integral que vinha elaborando desde 1961 e que, como foi dito, será publicado no centenário da descoberta. Muito me honrou o entusiástico elogio aos dados inéditos e aos diagramas interpretativos expresso por Fúlvio Pillegi, digno e íntegro homem de ciência, membro da banca examinadora. Julgo oportuno dizer que incluí, nesse seminário, minha investigação circunstanciada e crítica da hipótese de que Charles Darwin tenha sido vítima da doença de Chagas. Venho estudando tal hipótese desde 1961, em atendimento a pedido pessoal que me fez Saul Adler, o qual era, nessa época, pesquisador visitante de leishmaniose, em nosso já referido Centro de Pesquisa.

Para finalizar, vamos voltar a fato de logo após a publicação do caso Berenice, em 1962: trata-se de episódio descrito em meu livro de memórias, intitulado O Riso Dourado da Vila.  Coincidiu que, naqueles dias, houve um congresso de patologistas em Belo Horizonte, no próprio recinto da Faculdade de Medicina. Procuraram-me para ficar a postos, pois era provável que fosse chamado, fora da programação, para depor sobre o tema.  Acompanhei duas sessões até que, na terceira, conhecido pesquisador da doença de Chagas, aproveitou um ensejo qualquer e começou a dizer que, como brasileiro, reconhecia que o Brasil tinha muito a evoluir em ciência. Isto porque, continuou ele, um indivíduo totalmente desconhecido da comunidade científica havia publicado algo sobre a descoberta de Carlos Chagas, a que os estudiosos da área não poderiam dar crédito. Lamentava que um periódico sério tivesse acolhido o texto, pois todos aqueles, como ele, que conheciam a história da doença, sabiam que a primeira paciente não sobrevivera à fase aguda.  Fiquei tão chocado com tal atitude que não me manifestei e desisti de acompanhar aquela convenção. Justo no pátio da Faculdade, topo com o professor Amílcar Viana Martins e lhe descrevo o ocorrido. Esperava dele reagir com indignação, como era de seu feitio.  Em vez disso, ele começou a rir e disse sua frase sempre citada, às vezes atribuída a outrem: você é muito jovem, agora já sabe que no Brasil há mais gente vivendo do que morrendo da doença de Chagas.

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