Desafios e oportunidades ao tratamento da doença de Chagas – perspectivas da DNDi
Carolina Batista1, Marina Certo1, Julia Alapenha1, Andrea Marchiol1
1 DNDi – Drugs for Neglected Diseases initiative
Contatos: mcerto@dndi.org, jalapenha@dndi.org
Introdução
Em fevereiro de 1909, era diagnosticada a primeira paciente da doença de Chagas. A menina de dois anos de idade, Berenice teve seu caso identificado pelo médico Carlos Chagas, que brilhantemente descobriu tanto o ciclo de transmissão da doença, comportamento do parasita e a evolução da infecção e doença. Entretanto, apesar de mais de um século desde seu descobrimento, a doença de Chagas permaneceu distante das prioridades de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) do mercado farmacêutico. Os primeiros medicamentos com demonstrada eficácia para a doença só foram desenvolvidos e disponibilizados mais de meio século após sua descoberta, na década de 1960: o benznidazol, desenvolvido pela Roche e o nifurtimox, desenvolvido pela Bayer. Mais de quatro décadas depois de seu desenvolvimento, esses dois medicamentos seguem como as únicas opções terapêuticas para a doença, o que alerta e ressalta a necessidade de mais esforços colaborativos em prol da inovação e acesso para a doença de Chagas.
Tratamentos atuais
O benznidazol e o nifurtimox são atualmente recomendados tanto na fase crônica quanto aguda da doença, com taxas de cura menores durante a fase crônica, agindo sobre o parasita sem reverter danos cardíacos já estabelecidos. Descobertas importantes em relação à eficácia do benznidazol já foram documentadas, como o que acaba de publicada com os resultados do estudo com o composto E1224. Este estudo, realizado pelo grupo do professor e pesquisador da Universidad de San Simon, Dr. Faustino Torrico, foi uma prova de conceito para tratar pacientes adultos infectados com T. cruzi e foi realizado na Bolívia com o apoio da DNDi (iniciativa de Medicamentos para Doenças Negligenciadas, na sigla em inglês). O estudo demonstrou que 82% dos pacientes tratados com benznidazol apresentaram um efeito rápido e sustentado na depuração (clearance) do parasita, incluindo no seguimento após 12 meses. Apesar das crescentes evidências a favor do tratamento etiológico, ainda há resistência na prescrição de tratamentos pela comunidade médica. Apesar do seu potencial de salvar vidas, menos de 1% dos pacientes com doença de Chagas recebem tratamento etiológico. Uma grande preocupação é a ocorrência de efeitos colaterais, que são mais frequentes e graves à medida que a idade dos pacientes aumenta. Assim, há uma grande urgência em melhorar o perfil de tolerabilidade dos tratamentos atuais e identificar a dosagem e duração ideais do regime, bem como desenvolver alternativas mais seguras e eficazes. Isso facilitará a adoção dos medicamentos para a doença de Chagas nos sistemas de saúde pública dos países afetados.
No ano de 2011, uma significativa inovação para a população pediátrica afetada por Chagas foi alcançada. Foi desenvolvido e lançado o benznidazol na dosagem 12.5mg, incluído na Lista de Medicamentos Essenciais da OMS. Ainda que o tratamento com benznidazol fosse recomendado para crianças, os comprimidos eram apenas disponíveis na dosagem de 100mg para adultos. Nessa formulação, é necessário o fracionamento do comprimido em até 12 pedaços para o tratamento de crianças pequenas, o que muitas vezes resulta em dosagem inadequada e imprecisa. A parceria da DNDi com o Lafepe (Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco) possibilitou o desenvolvimento da primeira formulação em dosagem pediátrica, adaptado à idade e fácil de usar. Considerando a eficácia do tratamento etiológico em população pediátrica e maiores chances de cura da infecção neste grupo, considera-se de grande importância assegurar a adoção e ampliação ao acesso ao tratamento para esta população.
Cenário atual de estudos para Chagas
Enquanto observamos um declínio nos estudos clínicos para Chagas na década de 1990, o início dos anos 2000 se diferencia pelos novos projetos. Destacam-se três estudos com desenhos bem semelhantes que avaliaram triazóis em comparação com o benznidazol: CHAGAZOL, STOP-CHAGAS e a Prova de Conceito do E1224. Porém, ainda que os três compostos tivessem boa repercussão na fase pré-clínica, seus resultados de eficácia na fase clínica não foram bons o suficiente. Atualmente, o pipeline de projetos de P&D voltados para a doença segue em expansão, com iniciativas pré-clínicas de busca por novos compostos e vacinas terapêuticas, enquanto são conduzidas algumas fases clínicas de investigação, em que se destacam os estudos clínicos ATTACH, BENDITA, BERENICE, CHICAMOCHA 2 e CHICAMOCHA 3, CHICO e FEXINIDAZOL. Ainda assim, vários desafios e lacunas de conhecimento permanecem na busca por novas soluções para a doença de Chagas, sendo cruciais as alianças colaborativas e integração para a superação dos obstáculos.
Legenda do infográfico (versão em melhor resolução será enviada em anexo separado): Ainda que novos projetos e iniciativas de P&D para a doença de Chagas estejam em curso, muitas lacunas de pesquisa permanecem como desafios para a disponibilidade de novos tratamentos e diagnósticos para a doença.
O estudo BENEFIT (Benznidazole Evaluation for Interrupting Trypanosomiasis), cujos resultados foram publicados no ano de 2015, é considerado como o estudo mais relevante dos últimos anos, sendo o primeiro estudo randomizado, duplamente cego, controlado por placebo e multicêntrico a avaliar a eficácia do benznidazol na evolução clínica da doença de Chagas crônica em pacientes com avançado comprometimento cardíaco. Seu objetivo primário foi avaliar o uso do benznidazol na redução da mortalidade e progressão da cardiomiopatia chagásica neste grupo, buscando também determinar os efeitos do medicamento na detecção convencional do parasita por PCR e avaliando sua segurança e tolerabilidade. O estudo multicêntrico incluiu 2.854 pacientes em sua avaliação, sendo o maior ensaio clínico já realizado para a doença de Chagas. Entretanto, os resultados negativos da intervenção para grupos específicos de pessoas infectadas com complicações cardíacas apontaram para a urgência de tratar os pacientes de forma precoce, enquanto o alto nível de mortalidade entre os pacientes voluntários apontou a gravidade da doença para as pessoas infectadas. O estudo BENEFIT destacou complexidades sérias e relevantes na capacidade da comunidade científica de avaliar novos medicamentos e terapias para a doença de Chagas, levantando diversas questões em relação a futuros estudos clínicos e servindo de alerta para a necessidade de buscar novas ferramentas para os pacientes acometidos pela doença.
Projetos atuais da DNDi
A DNDi, como uma organização sem fins lucrativos de P&D e acesso e orientada pelas necessidades dos pacientes, busca desenvolver tratamentos seguros, eficazes e acessíveis para os pacientes negligenciados ao redor do mundo. Em relação à P&D para a doença de Chagas, a iniciativa tem o objetivo de buscar um tratamento oral, eficaz, acessível e seguro para as formas crônica e aguda da doença de Chagas, incluindo novos regimes terapêuticos e tratamentos combinados com benznidazol, além de buscar novas entidades químicas. Assim, podemos dividir sua estratégia em duas abordagens distintas: a busca por novos compostos, enquanto simultaneamente testa diferentes abordagens e esquemas terapêuticos a partir dos compostos já existentes. Enquanto a primeira abordagem requer mais tempo de pesquisa e investimento a longo-prazo, a segunda busca refinar ferramentas já existentes para um cenário mais abrangente de tratamentos eficazes e seguros.
Para a pesquisa inicial, a DNDi começou, em 2013, as atividades na América Latina do consórcio Lead Optimization Latin America (LOLA), estabelecendo uma rede de pesquisa em química medicinal, que emprega uma abordagem colaborativa e multidisciplinar para a identificação e otimização de novos compostos contra o T. cruzi e Leishmania. Por meio dessa rede de parceiros, a DNDi realiza atividades multidisciplinares associadas à identificação (triagem inicial) e otimização de compostos líderes (lead optimization), aumentando assim sua capacidade de gerar candidatos pré-clínicos com potencial para preencher o perfil do produto alvo.
No portfólio da DNDi na fase clínica, estão em desenvolvimento atualmente dois estudos para Chagas: BENDITA, conduzido na Bolívia, que tem como objetivo avaliar novos regimes terapêuticos para o benznidazol, em monoterapia e em combinação com o fosravuconazol (E1224), para o tratamento de pacientes adultos na fase crônica indeterminada de Chagas; e o estudo FEXINIDAZOL, que avalia o novo composto fexinidazol para o tratamento da doença de Chagas crônica, em andamento na Espanha.
Outra lacuna de conhecimento importante é a dificuldade em prever a evolução da doença e medir os benefícios do tratamento. A DNDi busca identificar e avaliar novos marcadores biológicos de eficácia terapêutica para a doença de Chagas crônica – biomarcadores que permitam perceber a evolução da doença e sirvam de parâmetro para avaliação da resposta ao tratamento, a fim de embasar o desenvolvimento de medicamentos. Outros grupos também buscam avanços no campo dos biomarcadores, apoiados e incentivados pela DNDi através da rede ibero-americana NHEPACHA.
Conclusão:
Os novos conhecimentos adquiridos, o aumento no número de projetos de pesquisa e iniciativas são razões para renovar o otimismo e enfatizar a necessidade de colaborações abertas, como o modelo apoiado pela Plataforma de Pesquisa Clínica em Doença de Chagas, uma rede de mais de 400 pesquisadores, acadêmicos, ativistas e funcionários da saúde pública unidos em um esforço para melhorar a vida de pacientes com doença de Chagas. Ainda que novas opções de tratamento não estejam no horizonte a curto prazo, as novas pesquisas com inovações promissoras podem mudar o cenário da doença a médio prazo. Assim, buscamos com espírito crítico e colaborativo por novas ferramentas que melhorem as vidas dos pacientes afetados pelo Chagas, ampliando horizontes e parcerias em busca de ações efetivas e da melhor ciência para os mais negligenciados.