Políticas de Controle e Notificação da Doença de Chagas: enfrentando o silêncio epidemiológico com a notificação dos casos crônicos
Vitória P. Ramos, Juan Carlos Cubides e Matheus Oliveira1
1 MSF – Médicos Sem Fronteiras
Contatos: vitoria.ramos@rio.msf.org, juan.cubides@rio.msf.org, matheus.oliveira@rio.msf.org
O Brasil apresentou nas últimas décadas grandes avanços no que diz respeito ao controle vetorial da Doença de Chagas (DC), diminuindo de forma substancial a transmissão e ocorrência de casos agudos. Graças aos esforços empreendidos a nível nacional para controlar o vetor, especialmente a partir do fim dos anos 1970, em 2006 o Brasil recebeu a Certificação Internacional de Eliminação da Transmissão da Doença de Chagas pelo seu principal vetor [1]. Por mais importante que seja alcançar esse patamar, que merece ser valorizado e reconhecido, esse grande feito teve como consequência indesejada uma invisibilização das pessoas afetadas pela Doença de Chagas, especialmente que já convivem com a fase crônica da doença. Essas pessoas ainda hoje sofrem com a falta de políticas públicas adequadas para enfrentar este quadro, que ainda é um grande problema de saúde pública, mas negligenciado politicamente.
Dentro deste cenário, a vigilância epidemiológica dos casos crônicos de Chagas representa ainda um importante desafio médico e social nos países afetados. Comumente se trabalha somente com estimativas e a extensão real da problemática e suas consequências é pouco conhecida, o que dificulta o planejamento de respostas adequadas dos sistemas de saúde [2].
De acordo com o II Consenso Brasileiro em Doença de Chagas [3], as estimativas mais recentes do número de pessoas afetadas pela DC no Brasil variam de 1,9 milhão e 4,6 milhões de pessoas. Essa expressiva variação entre diferentes estudos é só uma prova do silêncio epidemiológico que hoje enfrentamos em relação a essa doença. Mais grave ainda são as estimativas de que mais de 80% dessas pessoas nunca tiveram acesso ao diagnóstico [3], ou seja, desconhecem sua condição e têm negado seu direito ao tratamento antiparasitário e possivelmente só entrarão no sistema de saúde ao sofrer problemas em decorrência da manifestação da doença que poderiam ter sido evitados com o diagnóstico e tratamento oportuno.
O impacto econômico da doença durante o estágio crônico é alto pois acomete indivíduos em plena fase produtiva, a partir dos 30 anos de idade [4]. Se considerarmos que entre 30 e 40% das pessoas infectadas desenvolverão lesões cardíacas e digestivas severas em um período de 5 a 20 anos após a infecção e irão requerer o uso de terapias complexas de suporte, os custos estimados chegam a aproximadamente US $ 750 milhões por ano. Ademais, a expectativa de vida para esses casos crônicos é reduzida entre 5 e 10 anos, uma vez que eles alcançam o diagnóstico clínico [5].
Uma das principais e primeiras formas no âmbito das políticas públicas para começar a enfrentar esse grande desafio é encontrar as pessoas que estão nesse estágio da doença e ter conhecimento concreto da realidade epidemiológica no país. Hoje no Brasil somente os casos agudos da DC são de notificação compulsória, que se dá através do preenchimento da Ficha de Investigação de Doença de Chagas Aguda, padronizada em todo o território nacional. Entre 2000 e 2013 houve um total de 1570 casos de Doença de Chagas Aguda (DCA) registrados, com quase 70% dos casos tendo origem na forma de transmissão oral, que aumentou expressivamente após o surto de transmissão oral pela cana de açúcar em Santa Catarina em 2005.
Fonte: Boletim Epidemiológico. Vol. 46 – nº 21 – 2015 – Doença de Chagas aguda no Brasil: série histórica de 2000 a 2013.
Os próprios boletins epidemiológicos fornecidos pelo Ministério da Saúde apontam que predominam os casos crônicos no país, mas o último inquérito feito para apurar os casos crônicos se deu em 2008 e não contou com um amplo rastreamento diagnóstico que tornasse possível conhecer realmente a quantidade dos casos crônicos no país.
A notificação de casos crónicos é uma ação de grande relevância em saúde pública, pois os dados de morbidade e mortalidade são usualmente imprecisos. O número de portadores de doença cardíaca chagásica crônica, por exemplo, é estimado em bases irrealistas (número de infectados), com base em uma porcentagem de suposição (extremamente variável) de casos que se espera que desenvolvam esse tipo de manifestação clínica, sem considerar as diferenças marcadas regionalmente. A população infectada é desconhecida, principalmente porque a demanda espontânea de serviços médicos corresponde quase exclusivamente a casos crônicos graves. A notificação possibilitaria então conhecer a distribuição, a magnitude e a tendência da doença e a identificação dos fatores de risco, condicionantes sociais, econômicos e ambientais, com o objetivo de subsidiar o planejamento, a execução e a avaliação das atividades de prevenção e controle [6].
Já existe no Brasil uma experiência estadual de notificação compulsória dos casos crônicos: em 2013, no estado de Goiânia, a Resolução Nº 004/2013 – GAB/SES-GO instituiu a obrigatoriedade da notificação dos casos crônicos de DC, dentre outros agravos a serem incluídos para além da lista nacional de notificação compulsória. De acordo com a atual coordenadora do programa de Doença de Chagas do estado, Dra. Liliane Siriano, neste período foi realizada uma visita de campo pelo interior do estado que constatou a grande falta de cobertura e assistência às pessoas afetadas pela DC na fase crônica. O Estado não chegava a essas pessoas, que representavam quase a totalidade dos casos em Goiás. Foi decidido então que a notificação dos crônicos seria uma forma de encontra-las e salvaguarda-las de forma mais estrutural. Essa pequena mudança que vem melhorando a qualidade das informações epidemiológicas no estado. Segundo dados da SES-GO, desde que passou a ser de notificação compulsória foram registrados 1540 casos crônicos de DC no estado até março de 2016. A SES acredita que o acompanhamento dos casos crônicos pode reduzir a alta média anual de óbitos da doença (750 mortes/ano) e melhorar a qualidade de vida dessas pessoas. Ainda há desafios para a efetiva implementação da prática que poderiam ser facilitados se houvesse a obrigatoriedade a nível nacional [7].
Além da notificação dos casos crônicos, Goiás também é o estado pioneiro em incluir o diagnóstico para DC no kit pré-natal. Em parceria com a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) Goiânia, a Secretaria Estadual de Saúde de Goiás (SES-GO) criou o Programa de Proteção à Gestante de Goiás em 2002, mais conhecido como “Teste da Mamãe”, que realiza a triagem neonatal utilizando a coleta de sangue periférico em papel filtro para prevenir a transmissão vertical de doenças genéticas e infecciosas. Em estudo que analisou amostras de 348.037 gestantes de 245 municípios do estado de Goiás de 2003 a 2009 [8], foram incluídos testes para triagem de doenças infecciosas virais (hepatite B, hepatite C, HIV, rubéola, HTLV e CMV), bacterianas (sífilis) e protozoários (toxoplasmose e infecção pelo Trypanosoma cruzi).
A grande surpresa levantada nesse estudo se deu justamente nos dados de prevalência da Doença de Chagas, que foi o terceiro agravo mais prevalente dentre as doenças infecciosas analisadas, apresentando 0,51% de prevalência (1.768 casos). Os dois primeiros agravos foram sífilis, com 1,16%, e toxoplasmose, com 0,67%. Para efeitos comparativos, HIV veio em sexto lugar, com 0.13% de prevalência. O artigo em questão coloca que os dados de DC surpreenderam os pesquisadores pois havia um senso comum de que não haveria mais tantas mulheres em idade fértil afetadas pela doença, outra prova de que a baixa quantidade de casos relatados da doença no país se trata mais de um silêncio epidemiológico e que uma busca ativa acompanhada de rastreamento diagnóstico eficiente poderia surpreender ainda mais e evitar maiores agravos para essas pessoas e para o sistema de saúde.
Outro dado interessante do estudo das amostras do Teste da Mamãe é de que dentre os casos detectados de DC, 794 mulheres compareceram a consultas posteriores ao diagnóstico para dar seguimento e delas 56,3% eram nascidas na Bahia e 32,9% de Goiás, as demais sendo provenientes de diversos outros estados. Isso evidencia a necessidade de multiplicar essa experiência em outros estados.
As pesquisas em DC durante a última década no país têm se caracterizado por discussões acerca de uma vigilância epidemiológica ampliada, sustentada nas estratégias da soro-epidemiologia (enfatizando a importância da identificação de pacientes crônicos e encaminhamento a serviços de saúde) e mais recentemente, pelo tratamento de casos crônicos em pacientes mais jovens[9].
Considerando a característica da DC em ser uma doença silenciosa, muitas vezes sem sintomas, é ainda mais difícil transformar tantos trabalhos acadêmicos de qualidade e, principalmente, a voz das pessoas afetadas em pauta concreta de política pública e enfrentar de forma altiva esse problema de saúde pública que é quase esquecido. Melhorar a qualidade dos dados epidemiológicos da DC no Brasil é um desafio que deve ser enfrentado e uma grande dívida do país com Carlos Chagas e com as gerações de famílias inteiras afetadas durante séculos por esta que é “a mais brasileira das doenças”. Após grandes esforços em controlar a transmissão, encontrar as pessoas afetadas e ampliar o diagnóstico e tratamento a elas na atenção básica de saúde é o passo que falta ser tomado. A notificação compulsória nacional dos casos crônicos é uma peça chave para terminar esse quebra-cabeça.