Abordagem Complementar à Terapia na Doença de Chagas
Andréa Silvestre de Sousa
Fernanda de Souza Nogueira Sardinha Mendes
Mauro Felippe Felix Mediano
Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ – Brasil
Introdução:
As medidas de controle de transmissão vetorial instituídas no Brasil nos últimos trinta anos foram responsáveis por um decréscimo expressivo no número de casos novos da doença de Chagas. Ainda hoje, entre 2 a 5 milhões de brasileiros encontram-se acometidos pela doença, a maior parte apresentando sua forma crônica, tendo sido infectados em média há 20 ou 30 anos.
A inviabilidade de se erradicar a doença de Chagas advém de sua caracterização como uma antropozoonose, perpetuando-se em seu ciclo silvestre através de inúmeras relações entre as mais de 100 espécies de vetores e mamíferos reservatórios. Desta forma, justificam-se ações constantes de vigilância, sobretudo diante dos múltiplos cenários geográficos e da dificuldade de controle efetivo em um país de extensão continental. Muitas áreas ainda se encontram vulneráveis à possibilidade de casos novos a partir de vetores secundários, além da perspectiva de transmissão oral, com surtos cada vez mais frequentes na Amazônia, região atualmente responsável por mais de 90% dos casos notificados de doença de Chagas aguda no País.
Como uma doença que reflete as condições de vulnerabilidade social, sua epidemiologia também é afetada pelos deslocamentos populacionais de motivação econômica e/ou política. Migrações internas recentes da América Latina motivadas pelas desigualdades sociais entre as diversas regiões do continente e busca de melhores condições de vida, fazem do Brasil um país de influxo de populações endêmicas da doença de Chagas, destacando-se a imigração recente de bolivianos, população de maior soroprevalência mundial desta doença. Estes indivíduos ingressam muitas vezes sem documentação oficial, atuam em condições precárias nos setores de serviços e fabricação têxtil nos grandes centros urbanos brasileiros, sobretudo São Paulo, impulsionando a necessidade de revisão das estratégias de controle de doenças e de assistência à saúde. Este movimento provocou uma mudança no perfil epidemiológico da doença de Chagas em nosso meio, ampliando o número de casos entre jovens e mulheres em idade fértil, com taxas superiores de transmissão materno-fetal em relação à expectativa da população brasileira. Sendo assim, torna-se imprescindível a preparação de nossos sistemas de saúde para essas contínuas mudanças epidemiológicas, de forma que se encontrem aptos a diagnosticar e oportunamente cuidar de todos os acometidos.
Em termos históricos, assistimos no Brasil ao deslocamento de grande contingente de acometidos pela doença de Chagas nas décadas de 60 e 70, provenientes de áreas rurais hiperendêmicas, indo em busca de melhores condições de emprego e moradia – movimento denominado êxodo rural. Desconhecendo sua condição de portadores da doença e a associação entre seu diagnóstico e as péssimas condições de moradia de seu passado rural, esses indivíduos inseriram-se nos grandes centros urbanos, sobretudo na região sudeste do País, atuando principalmente como mão-de-obra não especializada. Por desconhecerem seu diagnóstico e encontrarem-se inicialmente na forma crônica assintomática da doença, não foram identificados pelos serviços de saúde nessas grandes cidades, perdendo a oportunidade de receber o tratamento específico nas fases iniciais da enfermidade, quando este é mais efetivo. Hoje, são esses os milhões de brasileiros acometidos pela doença de Chagas que perfazem nossas estatísticas, vivendo em sua maioria em centros urbanos, ainda em condições de vulnerabilidade social, com acesso restrito aos serviços de saúde, estando em sua maioria entre a quinta e sexta décadas de vida, apresentando principalmente a forma crônica da doença, com ou sem sintomas cardíacos e/ou digestivos, sujeitos às comorbidades e agravos gerais da população nesta mesma faixa etária.
A população atendida no Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), na cidade do Rio de Janeiro, compreende indivíduos em sua maioria encaminhados de bancos de sangue, oriundos de áreas endêmicas do Brasil, tendo migrado na década de 70, principalmente do interior de Minas Gerais (25%) e Bahia (25%) ou outras áreas rurais do nordeste brasileiro. No início do seu acompanhamento encontravam-se principalmente na forma crônica indeterminada da doença de Chagas, e hoje, com idade média em torno de 57 anos, apresentam-se principalmente na forma crônica cardíaca, além de apresentarem inúmeras comorbidades, como hipertensão arterial sistêmica (HAS), diabetes mellitus (DM), dislipidemia e síndrome metabólica.
Organizar a atenção e orientar o tratamento da doença de Chagas de forma eficaz depende de um conhecimento adequado do contexto epidemiológico da população na região em questão. Em um país de cenários tão diversos como o Brasil, podemos estar diante de um panorama com casos em sua maioria na fase aguda, acometendo indivíduos de todas as faixas etárias e em surtos, em áreas rurais e/ou urbanas, com elevada letalidade (Amazônia brasileira); ou no extremo oposto, com casos em sua maioria entre idosos, em fase crônica da doença, vivendo atualmente em áreas urbanas (Rio de Janeiro), podendo ou não ter sofrido o influxo de novos casos de jovens, em idade fértil, com altas taxas de transmissão materno-fetal (grande São Paulo). Quando gestores e profissionais de saúde não estão atentos a esses movimentos populacionais contínuos, amplia-se a invisibilidade desta população, e a consequência deste descaso é o panorama que conhecemos atualmente, com número crescente de casos crônicos em fase avançada de evolução da doença, com elevada morbimortalidade. Infelizmente, contudo, muitos profissionais de saúde ainda desconhecem o problema que se instala sob seus olhos nos grandes centros urbanos e erroneamente acreditam que a doença de Chagas é restrita ao meio rural, ou mesmo está prestes a deixar de existir.
Cuidado Integral:
A assistência à saúde, em seus vários níveis de complexidade e especialidades, e organização do amplo acesso ao diagnóstico e ao tratamento são pontos decisivos na organização do Sistema Único de Saúde (SUS). Busca-se hoje abandonar a visão fragmentada e reducionista do modelo de atenção biológico, ampliando-o para as linhas de cuidado, considerando os seres humanos estruturas complexas, inter-relacionadas com o meio social em que foram criados e vivem hoje, bem como as consequências psicológicas dessa interação, ou seja, o ser humano avaliado como figura central do modelo biopsicossocial.
A doença de Chagas é um exemplo rico de agravo em que os condicionantes sociais e psíquicos impactam diretamente na qualidade do cuidado e no sucesso do tratamento. Não estamos mais aqui falando do olhar reducionista focado apenas no tratamento específico desta doença, utilizando drogas triapanocidas disponíveis (benznidazol em nosso País), mas ao cuidado relacionado a todas as condições de saúde dos indivíduos acometidos.
Torna-se clara, assim, a importância do conhecimento do cenário epidemiológico e social onde os indivíduos com a doença se inserem. Seguindo a linha de discussão prévia, o foco central em casos da doença de Chagas na fase aguda, acometendo uma população geralmente mais jovem, deve ser, de fato, promover o tratamento específico, além de orientar a população geral e profissionais de saúde na prevenção de novos casos ou da progressão da doença. Já em centros onde os indivíduos acometidos apresentam-se principalmente com as formas crônicas sintomáticas da doença, além das inúmeras comorbidades e agravos relacionados ao processo do envelhecimento populacional, nosso maior compromisso deverá ser realizar o tratamento sintomático e a reabilitação, visando não apenas a redução da morbimortalidade, mas também a melhoria da qualidade de vida.
A acolhida do indivíduo com doença de Chagas e seus familiares, seu diagnóstico e cuidado inicial pode e deve ser realizado nas unidades de atenção básica de saúde. O olhar multiprofissional permite maior sucesso na identificação de suas principais demandas, além de proporcionar adesão ao cuidado, pois encontram-se reunidos em um mesmo processo de trabalho tanto médicos, como enfermagem, nutricionistas, educadores físicos, psicólogos, serviço social e quando necessário, atenção farmacêutica, atuando através de diretrizes, com atitude responsável sobre o cuidado do usuário. Ao mesmo tempo em que é importante que o paciente tenha acesso a estes serviços, minimizar deslocamentos e proporcionar o atendimento próximo ao local de habitação aumentam de forma expressiva essa adesão.
Além de anamnese e exame físico completos, com olhar especial às manifestações da doença de Chagas crônica (evidências de cardiopatia, estado nutricional, disfagia e constipação intestinal), é fundamental que todos tenham acesso, ainda na atenção básica, à realização de um eletrocardiograma, exame simples, de baixo custo e amplamente disponível, com capacidade de identificar os indivíduos com cardiopatia chagásica crônica, diferenciando-os daqueles sem acometimento cardíaco, que em geral podem continuar sua avaliação neste nível de atenção. Dado o caráter potencialmente evolutivo da doença de Chagas, anamnese, exame físico e eletrocardiograma devem ser repetidos anualmente, mesmo nos assintomáticos, avaliando necessidades futuras de encaminhamentos para outros níveis atenção da saúde.
Estima-se que aproximadamente 80% dos casos de doença de Chagas possam permanecer em acompanhamento nas unidades básicas de saúde, sendo avaliados em suas comorbidades mais prevalentes (como HAS e DM), além de outros agravos associados ao envelhecimento (doenças neurológicas e osteoarticulares, entre outros). Contribui para maior resolutividade na rede básica, o exercício ampliado de múltiplos profissionais, em relação entre si e com o usuário e sua família, em contraposição ao modelo hegemônico de uma clínica centrada no ato prescritivo e na produção de procedimentos, sobrecarregando o sistema de referência e contra-referência, com encaminhamentos gerados mecanicamente para os serviços de especialidades, sem que se tenha esgotado as possibilidades diagnósticas na rede básica, em uma atitude que demonstra falta de solidariedade com o serviço e responsabilização no cuidado ao usuário.
Neste modelo de atenção integral, o usuário e suas famílias com seus medos e anseios devem ser acolhidos e orientados quanto a eventuais limitações e sintomas, estando ou não diretamente relacionados à doença de Chagas. Ainda na unidade de atenção básica, devem ser orientados sobre mudanças gerais do estilo de vida, cuidados com alimentação saudável e anticonstipante, estímulo à atividade física regular, cessação do tabagismo, alcoolismo e uso de outras drogas, orientações gerais médico-trabalhistas e de relações pessoais. Devem ser explicitadas as informações de que indivíduos na forma crônica indeterminada da doença não apresentam risco superior de morte em relação à população geral; que não devem ser expostos a situações discriminatórias ou estigmatizantes no trabalho ou nas relações sociais, desfazendo-se mitos de contágio ou de progressão inexorável para doença cardíaca e morte. Mesmo aqueles diagnosticados com cardiopatia chagásica crônica devem ser orientados de que há prognósticos variados dentro desta mesma forma clínica, e que exceto em casos pontuais de insuficiência cardíaca avançada, o prognóstico pode ser longamente otimizado com o tratamento sintomático farmacológico e reabilitação cardiovascular.
Em torno de 15% dos usuários necessitarão cuidados em unidades intermediárias, com realização de exames específicos cardiológicos ou digestivos, e apenas um percentual de 5% dos mesmos de fato deve ser acompanhado em unidades especializadas, com disponibilidade de tecnologia mais avançada, com implantes de dispositivos cardíacos, transplantes e cirurgias para correção de megacólon e/ou megaesôfago. O modelo de atenção integral também deve ser aplicado nesses níveis avançados de cuidado, com assistência multiprofissional, criação de grupos de trabalho onde se promova o auto-cuidado, com orientações nutricionais apropriadas e atenção farmacêutica, ajustando-se prescrições ao nível de escolaridade do usuário e suas famílias, minimizando os riscos de interações medicamentosas indesejáveis e o uso incorreto de fármacos.
Conclusão:
Atenção integral não deve ser avaliada como uma meta utópica, mas um processo possível de organização de linhas de cuidado que torna mais efetivo o funcionamento do SUS, priorizando a atenção da maior parte dos usuários de forma satisfatória em nível de atenção básica de saúde. A doença de Chagas, como modelo de agravo intimamente relacionado às vulnerabilidades sociais, persiste como desafio à saúde, exigindo mais do que nunca um olhar multiprofissional, capaz de ampliar o sucesso na assistência e qualidade de vida dos indivíduos acometidos. Ainda que cheguem a nós tardiamente, décadas após seu contágio, podemos permitir, se não a cura, o cuidado global, promovendo a esta população melhores condições de vida e de saúde.