Formação
Carlos Chagas: infância, primeiros estudos e formação médica
Simone Petraglia Kropf
Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Email: simonek@coc.fiocruz.br
Carlos Ribeiro Justiniano Chagas, primeiro dos quatro filhos de José Justiniano Chagas e Mariana Cândida Ribeiro de Castro Chagas (Figura 1), nasceu aos 9 de julho de 1879, na Fazenda Bom Retiro (Figura 2), próximo à pequena cidade de Oliveira, Minas Gerais. Seus antepassados, de origem portuguesa, tinham se estabelecido na região havia quase um século e meio. Órfão de pai aos quatro anos (Figura 3), Chagas passou a infância nessa e em outra fazenda da família, onde sua mãe administrava o cultivo do café. Embora distante dos centros ilustrados do país, a convivência com os tios maternos (dois advogados e um médico) fez com que o menino manifestasse, desde cedo, vontade de avançar nos estudos, com particular interesse pela medicina.
Figura 1: José Justiniano Chagas e Mariana Candida Ribeiro de Castro Chagas, pais de Carlos Chagas.
Figura 2: Fazenda Bom Retiro.
Figura 3: Carlos Chagas aos 4 anos.
Aos oito anos, alfabetizado, foi matriculado no Colégio de São Luís, internato dirigido por jesuítas em Itu, interior de São Paulo. Mas não ficaria ali por muito tempo. Em maio de 1888, ao ter notícias de que os escravos recém-libertados estariam depredando fazendas, fugiu do colégio para ir ao encontro de sua mãe. A indisciplina foi punida com a expulsão e o menino transferiu-se para o Colégio São Francisco, em São João del Rey, Minas Gerais. Concluído os estudos, sua mãe decidiu que ele deveria formar-se em engenharia. Em 1895, ingressou então no curso preparatório da Escola de Minas de Ouro Preto, tradicional centro de ensino superior. Contudo, os excessos da vida boêmia custaram-lhe a reprovação nos exames e o retorno a Oliveira. Com a ajuda do tio médico, venceu a resistência da mãe e mudou-se para a capital federal, para estudar medicina.
No Rio de Janeiro, foi morar com outros estudantes mineiros numa pensão no bairro da Tijuca. Em abril de 1897, matriculou-se na Faculdade de Medicina, na rua de Santa Luzia, centro da cidade. Chagas impressionou-se vivamente com a agitação política da capital. O governo de Prudente de Morais (1894-1898), primeiro presidente civil da República, buscava superar as turbulências e conflitos que vinham sacudindo o novo regime, como a revolta de Canudos, no interior da Bahia. O governo de Campos Sales (1898-1902) selaria a estabilização política e econômica e estabeleceria as bases da tão propalada modernização republicana.
Do ponto de vista cultural, a cidade também vivia um momento de grande efervescência. O jovem estudante, que assistira logo ao chegar a criação da Academia Brasileira de Letras, ficou entusiasmado com os novos escritores e estilos que se projetavam na cena literária. Nos diversos espaços intelectuais, disseminava-se a crença de que se vivia um novo tempo, simbolicamente expresso no novo século que se aproximava, em que o Brasil ingressaria no rol das nações “civilizadas”. Sob os valores do positivismo e outras teorias cientificistas, a ciência e a técnica eram exaltadas, pela chamada geração de 1870, como elementos norteadores de um saber objetivo e eficaz, capaz de prover o bem-estar moral e material da sociedade.
Foi sob esta perspectiva que médicos e engenheiros engajaram-se em pensar soluções para as precárias condições sanitárias da capital federal, agravadas naquele final de século em função do próprio ritmo da modernização urbana. As frequentes epidemias, sobretudo de febre amarela, que assolavam a zona portuária e o centro da cidade, traziam fortes prejuízos às atividades econômicas que consistiam na exportação de café e de outros produtos agrícolas e na importação de imigrantes, manufaturas e capitais. O saneamento urbano era visto como crucial para o progresso do país e, com esse objetivo, preparava-se a reforma da cidade que seria realizada nos primeiros anos do século XX.
Foi nesse contexto que se deu a difusão, no país, da microbiologia, num processo marcado por controvérsias, debates e acomodações entre os que aderiam às concepções de Louis Pasteur e Robert Koch e os que defendiam as teorias climatológicas da tradição higienista. A institucionalização da medicina tropical na Europa, no contexto de expansão dos interesses imperialistas, gerava novos conhecimentos sobre o modo de transmissão de doenças infecciosas como a malária e a febre amarela, especialmente sobre o papel dos insetos como vetores.
Em consonância com esta renovação das ciências biomédicas, vários professores da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro defendiam, já desde a década de 1880, a importância de incorporar ao ensino os preceitos e práticas da chamada medicina experimental, ou seja, da pesquisa científica realizada no laboratório em busca de novos conhecimentos. Este foi o ambiente em que Chagas realizou seu curso médico, entre 1897 e 1903.
Dois professores marcaram de maneira decisiva sua formação. Um deles foi Miguel Couto, com quem Chagas aprendeu a utilizar os métodos e princípios da medicina experimental para o diagnóstico e o estudo clínico das doenças que compunham a nosologia brasileira. Couto, de quem Chagas se tornaria amigo pessoal, incutiu no jovem estudante a concepção de que a clínica médica deveria ser renovada e subsidiada pelos novos conhecimentos e técnicas propiciados pelas pesquisas científicas. Por sua sugestão, Chagas conheceu as obras de Claude Bernard e de Louis Pasteur.
Outra influência decisiva foi a de Francisco Fajardo, um dos pioneiros da microbiologia no Brasil, que apresentou a Chagas os temas específicos da medicina tropical. Profundamente sintonizado com os estudos e problemáticas desta especialidade, especialmente no que dizia respeito à malária, Fajardo colecionava insetos sugadores de sangue e realizava estudos experimentais sobre o ciclo evolutivo do hematozoário descoberto por Laveran, com quem mantinha contatos pessoais. No laboratório de Fajardo, no Hospital da Santa Casa de Misericórdia, Chagas auxiliava na realização de exames hematológicos e na identificação das diferentes espécies do parasito da malária, base para o diagnóstico diferencial das várias formas clínicas da doença. Com o tempo, acumulou material para suas próprias experiências.
Com o objetivo de elaborar sua tese de doutoramento, pré-requisito à qualificação para o exercício da medicina, dirigiu-se em 1902 ao Instituto Soroterápico Federal, em Manguinhos. Levou uma carta de apresentação de Fajardo a Oswaldo Cruz, diretor técnico do Instituto, criado dois anos antes para fabricar soro e vacina contra a peste bubônica. Dava-se assim o primeiro contato com aquele que seria seu grande mestre e com a instituição na qual realizaria sua vida profissional.
O Instituto de Manguinhos – que a partir de 1908, sob a denominação de Instituto Oswaldo Cruz, se consolidaria como respeitado centro de produção de imunobiológicos e de pesquisa e ensino no âmbito da medicina experimental atraía os estudantes interessados, como Chagas, no estudo científico das doenças tropicais. Aceito por Oswaldo Cruz, que passou a ser seu orientador, Chagas passou então a frequentar o Instituto diariamente. Em 1903, defendeu sua tese de doutoramento intitulada Estudos hematológicos no impaludismo, analisando a importância do conhecimento do ciclo evolutivo do plasmódio para o diagnóstico e o tratamento das várias formas clínicas da malária.
Apesar do convite feito por Oswaldo Cruz para integrar a equipe de pesquisadores de Manguinhos, Chagas preferiu dedicar-se à clínica. Em 1904, foi nomeado médico da Diretoria Geral de Saúde Pública (Figura 4), passando a trabalhar no hospital de isolamento de Jurujuba, Niterói, destinado a atender, sobretudo, doentes de peste. Ao mesmo tempo, instalou seu consultório particular no centro do Rio. Em julho daquele ano, casou-se com Íris Lobo, filha do senador mineiro Fernando Lobo Leite Pereira. Dessa união nasceriam Evandro Chagas, em 1905, e Carlos Chagas Filho, em 1910 (Figura 5). No ano seguinte, um convite feito por Cruz para chefiar uma campanha de profilaxia da malária seria o primeiro passo de uma reorientação em sua carreira, que o levaria de volta aos laboratórios de Manguinhos e à descoberta da doença que leva seu nome.
Figura 4: Posse na diretoria geral de saúde pública.
Figura 5: Íris Lobo Chagas, esposa de Chagas e filhos.
Malária
Carlos Chagas e as campanhas contra a malária
Simone Petraglia Kropf
Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Email: simonek@coc.fiocruz.br
Nos primeiros anos do século XX, no contexto de difusão da teoria do parasito-vetor constitutiva da medicina tropical mansoniana, o mundo científico foi marcado por uma intensa busca por transmissores alados para as doenças, especialmente insetos sugadores de sangue, como os mosquitos. Para subsidiar as investigações médicas com conhecimentos especializados sobre as características biológicas destes insetos, o Museu Britânico deu início, por exemplo, a um ambicioso levantamento dos mosquitos existentes em todo o mundo. A Royal Society formou uma comissão para estudar o controle da malária nas colônias e o Museu Britânico de História Natural encarregou-se de constituir uma ampla coleção de insetos que desse suporte zoológico a esta empreitada. Como mostram Benchimol e Sá, o debate sobre os artrópodes vetores de doenças fez da entomologia médica uma área de conhecimento cada vez mais em evidência. Adolpho Lutz, então diretor do Instituto Bacteriológico de São Paulo, era a principal autoridade científica nesta área no Brasil. Em permanente intercâmbio com os pesquisadores e instituições internacionais, exerceria grande influência sobre outros cientistas que enveredariam por este caminho.
Oswaldo Cruz realizava trabalhos de coleta e classificação de insetos do Brasil, tendo identificado, em 1901, uma nova espécie de anofelino às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, batizando-a em homenagem a Lutz. Em 1906, a incorporação de Arthur Neiva veio reforçar a área no Instituto de Manguinhos, do qual Lutz se tornaria pesquisador em 1908. Tendo como referência os trabalhos de Lutz, Cruz e Neiva, Chagas publicou, em 1907, trabalhos sobre os culicídios brasileiros, com a descrição de novas espécies.
O desenvolvimento da entomologia médica em Manguinhos – e a inserção de Chagas neste processo – estiveram diretamente relacionados a uma importante frente de ampliação da instituição, acionada por Oswaldo Cruz especialmente em função da experiência adquirida nas campanhas sanitárias que comandava na capital federal, entre 1903 e 1909. Reproduzindo uma prática comum entre os médicos e microbiologistas europeus que se deslocavam para a África e a Ásia a fim de combater epidemias e estudar as doenças tropicais, os pesquisadores de Manguinhos engajavam-se em expedições científicas a diversos pontos do território nacional. Tais missões serviam tanto para estudar as condições sanitárias das distintas regiões, como para debelar crises epidêmicas que prejudicavam as obras de companhias públicas ou privadas associadas à modernização do país. Em função da expansão demográfica e econômica, a realização destas obras, sobretudo das que adentravam matas e regiões inóspitas, era frequentemente acompanhada de surtos epidêmicos, especialmente de malária. Isso se dava especialmente por ocasião da construção das ferrovias, cujas linhas e ramais se multiplicavam pelo território nacional visando a um escoamento mais eficaz da produção agrícola para exportação.
Requisitadas pelas autoridades sanitárias, estas viagens reforçavam a identidade social do Instituto de Manguinhos como instituição comprometida com a solução de questões de saúde pública de interesse nacional. Por outro lado, elas funcionavam também como ocasiões impulsionadoras da própria pesquisa em torno das novas questões da medicina tropical que surgiam no ambiente médico-científico. Nestes canteiros de obras, os pesquisadores realizavam a coleta de materiais, experiências e estudos sobre temas variados da patologia tropical brasileira, relacionados tanto aos aspectos médico-sanitários, quanto às questões biológicas concernentes aos parasitos e vetores. Foi justamente por meio de viagens como estas que Chagas refez seu vínculo com Manguinhos e com o tema da malária (estudado por ele em sua tese de doutoramento), desenvolvendo habilidades e conhecimentos específicos que o levariam à descoberta de uma nova doença tropical.
Em 1905, a Companhia Docas de Santos solicitou a Oswaldo Cruz, que chefiava a Diretoria Geral de Saúde Pública, providências para combater uma epidemia de malária entre os trabalhadores que construíam uma hidrelétrica em Itatinga, destinada a abastecer o porto de Santos. Em função de seus conhecimentos sobre a doença, Chagas foi incumbido de coordenar as ações de profilaxia.
Esta foi a primeira campanha anti-palúdica realizada no Brasil. Em fevereiro de 1907, missão semelhante foi iniciada por ele, em parceria com Arthur Neiva, em Xerém, na Baixada Fluminense, onde a doença prejudicava os trabalhos de captação de água para a capital federal, realizados pela Inspetoria Geral de Obras Públicas.
Em junho daquele ano, igualmente por solicitação de Cruz, Chagas partiu para o norte de Minas Gerais, em nova empreitada contra a malária, juntamente com Belisário Penna, que, como ele, também era médico da Diretoria Geral de Saúde Pública. Na região do rio das Velhas, entre Corinto e Pirapora, uma epidemia da doença paralisava as obras de prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil, cujo objetivo era integrar o sul ao norte do país mediante a ligação do Rio a Belém do Pará. No município de Lassance, onde se construía uma estação da ferrovia, Chagas instalou um pequeno laboratório num vagão de trem, que também usava como dormitório. Foi no decorrer das atividades desta campanha que se realizou a descoberta da doença que o consagraria internacionalmente.
Desde que pesquisadores ingleses e italianos desvendaram, em 1898/99, o modo de transmissão da malária pelos mosquitos, estudiosos dedicaram-se, em diversos países, a estabelecer medidas para a prevenção e o combate à doença, voltadas para seus dois elementos essenciais: os vetores e o indivíduo portador do parasito. Em trabalho de 1906, Chagas analisou de maneira pormenorizada as diferentes estratégias contra a malária. “Poder-se-á sintetizar num duplo intuito a profilaxia do impaludismo: impedir que o homem doente contamine o culicídio transmissor, evitar que o culicídio parasitado infecte o homem são. (…) A profilaxia será, por isso mesmo, anti-culicídica, quando aplicada ao mosquito, e germicida, quando à destruição do hematozoário na fase endógena da evolução dele”.
As ações contra os vetores contemplavam métodos de natureza ofensiva e defensiva. O primeiro era o combate direto aos anofelinos, por meio de campanhas, de feição militar, visando a sua eliminação. As “brigadas contra os mosquitos”, termo cunhado pelo inglês Ronald Ross, deveriam atacá-los em seu estágio larval aquático, tanto por meio de aplicação de substâncias tóxicas (como o petróleo) nas coleções de água, quanto pela drenagem dos terrenos alagadiços que pudessem servir-lhes de habitat. As medidas defensivas consistiam na proteção individual e coletiva contra os mosquitos, por meio de cortinados nas camas e telas nas portas e janelas das casas. As ações dirigidas ao parasito davam-se mediante a administração de quinina (medicamento extraído da casca da árvore quina) aos doentes, visando eliminar o hematozoário.
Nas campanhas que comandou, Chagas procurou colocar tais diretrizes em prática, implementado a quininização preventiva e a proteção dos indivíduos contra os mosquitos. Expressando a articulação entre as novas teorias da microbiologia e da medicina tropical e os interesses da saúde pública, ele enfatizava que os estudos sobre as distintas fases do ciclo evolutivo do hematozoário e sobre os hábitos dos vetores típicos em cada região eram fundamentais para subsidiar as medidas de combate à malária. Os conhecimentos clínicos e epidemiológicos também eram de grande relevância, acentuava, sobretudo porque os doentes constituíam o reservatório do parasito e, consequentemente, fontes de contaminação do mosquito e de propagação da doença.
Desde sua primeira experiência em Itatinga, Chagas formulou o princípio de que o ataque direto aos anofelinos não deveria restringir-se às ações antilarvárias, tanto pela dificuldade em realizá-las nos locais onde obras de saneamento eram impraticáveis, como, principalmente, porque, em sua concepção, os insetos deveriam ser combatidos principalmente em sua forma adulta, alada, dentro das habitações. Observando os hábitos dos anofelinos, Chagas afirmou a malária era uma infecção essencialmente domiciliária, ou seja, era nos domicílios que, na maior parte das vezes, ocorriam a contaminação do mosquito pelo doente parasitado e a infecção do indivíduo são. Assim, a destruição dos mosquitos deveria ser feita mediante a fumigação, nestes ambientes, de substâncias inseticidas, como o enxofre e o piretro. Expurgos domiciliários com tais substâncias vinham sendo feitos para o combate à febre amarela na capital federal desde 1903.
Tal método, que décadas mais tarde seria utilizado em larga escala com o advento dos inseticidas sintéticos de ação residual, como o DDT, foi aplicado em Itatinga, com resultado muito favorável, na apreciação de Chagas, ainda que este assinalasse a necessidade de conjugá-lo a outras medidas preventivas, em especial a aplicação de quinina. Segundo Carlos Chagas Filho, esta contribuição pioneira de seu pai para os estudos e a profilaxia da malária só seria reconhecida plenamente no I Congresso Internacional de Malariologia, realizado em Roma, em 1925.
Descoberta
Carlos Chagas e a descoberta de uma nova tripanossomíase humana
Simone Petraglia Kropf
Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Email: simonek@coc.fiocruz.br
Em junho de 1907, Carlos Chagas foi designado por Oswaldo Cruz, diretor da saúde pública federal, para combater uma epidemia de malária que paralisava as obras de prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil em Minas Gerais, na região do rio das Velhas, entre Corinto e Pirapora. No município de Lassance, onde se construía uma estação da ferrovia, ele instalou um pequeno laboratório num vagão de trem, que também usava como dormitório. Enquanto coordenava a campanha de profilaxia, coletava espécies da fauna brasileira, motivado por seu crescente interesse pela entomologia e pela protozoologia. Num contexto de difusão internacional das teorias da medicina tropical, estas eram áreas que assumiam grande importância no projeto de Oswaldo Cruz em transformar o Instituto de Manguinhos num renomado centro de medicina experimental. Em 1908, ao examinar o sangue de um sagui, Chagas identificou um protozoário do gênero Trypanosoma, que batizou de Trypanosoma minasense. A nova espécie era um parasito habitual, não patogênico, do macaco.
Naquele período, o estudo dos tripanossomos atraía a atenção dos pesquisadores no campo da medicina tropical, sobretudo desde que se comprovara que, além de doenças animais, tais protozoários causavam enfermidades humanas como a tripanossomíase africana. Tradicionalmente conhecida como doença do sono, esta enfermidade causava grande preocupação entre os países europeus que tinham colônias naquele continente.
Além da busca de novos parasitos, Chagas estava atento a artrópodes que pudessem servir-lhes de vetores. Numa viagem a Pirapora, ele e Belisário Penna (seu companheiro na missão de combate à malária) pernoitaram, junto com os engenheiros da ferrovia, num rancho às margens do riacho Buriti Pequeno. O chefe da comissão de engenheiros, Cornélio Homem Cantarino Mota, mostrou-lhes então um percevejo hematófago muito comum na região, conhecido vulgarmente como barbeiro, pelo hábito de picar o rosto de suas vítimas enquanto dormiam. Era abundante nas choupanas de pau-a-pique da região, escondendo-se nas frestas e buracos das paredes de barro durante o dia e atacando seus moradores à noite.
Sabendo da importância dos insetos sugadores de sangue como transmissores de doenças parasitárias aos homens e aos animais, Chagas examinou alguns barbeiros e encontrou em seu intestino formas flageladas de um protozoário, com certas características que o fizeram pensar que poderia tratar-se de um parasito natural do inseto ou então de uma fase evolutiva de um tripanossomo de vertebrado. No caso desta segunda hipótese, poderia ser o próprio T. minasense, sendo o barbeiro o vetor que o transmitiria aos saguis.
Por não dispor em Lassance de condições experimentais para elucidar a questão, uma vez que os macacos da região estavam contaminados pelo minasense, Chagas enviou a Manguinhos alguns daqueles insetos. Oswaldo Cruz os fez se alimentarem em saguis criados em laboratórios (e portanto livres de qualquer infecção) e, cerca de um mês depois, comunicou a Chagas que encontrara formas de tripanossoma no sangue de um dos animais, que havia adoecido. Voltando ao Instituto, Chagas constatou que o protozoário não era o T. minasense, mas uma nova espécie de tripanossomo, que batizou então de Trypanosoma cruzi, em homenagem ao mestre. A nota anunciando esta descoberta foi redigida em Manguinhos em 17 de dezembro de 1908 e publicada na revista do Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo.
Em Manguinhos, Chagas iniciou estudos sistemáticos sobre o ciclo evolutivo do novo parasito que, em cumprimento a dois dos postulados de Koch, mostrou-se capaz de infectar experimentalmente cães, cobaias e coelhos e de ser cultivado em agar-sangue. O barbeiro, por sua vez, passou a ser minuciosamente investigado por Arthur Neiva, também pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz. Em busca de outros hospedeiros vertebrados do T. cruzi e suspeitando que o homem pudesse ser um deles – hipótese reforçada por seus conhecimentos sobre a malária, também transmitida por um inseto hematófago domiciliário e causada por um hematozoário –, Chagas retornou a Lassance. Sobre o raciocínio que empreendeu naquele momento, disse, em um de seus relatos sobre o epísódio:
“Leváramos, como idéia diretriz, a noção de constituírem os domicílios humanos o habitat predileto, senão exclusivo, do hematófago, assim como fato, amplamente verificado, de ser o sangue humano a alimentação por excelência dele. Seria razoável pensar, daí, numa condição infectuosa intra-domiciliária e que o vertebrado hospedeiro do parasito fosse algum animal doméstico ou o próprio homem”.
Esta hipótese também explicaria certos fenômenos mórbidos que ele havia observado na região e que não se encaixavam no quadro nosológico conhecido.
Em Lassance, Chagas empreendeu exames sistemáticos de sangue nos moradores, além de procurar “a existência de elementos mórbidos característicos de tripanossomíases”. Ao examinar animais domésticos, verificou a presença do T. cruzi no sangue de um gato. No dia 14 de abril de 1909, encontrou finalmente o parasito no sangue de uma criança febril. Em nota prévia enviada ao Brasil Médico, uma das principais revistas médicas do país, anunciou a descoberta:
“Num doente febricitante, profundamente anemiado e com edemas, com plêiades ganglionares engurgitadas, encontramos tripanossomas, cuja morfologia é idêntica à do Trypanosoma cruzi. Na ausência de qualquer outra etiologia para os sintomas mórbidos observados e ainda de acordo com a experimentação anterior em animais, julgamos tratar-se de uma tripanossomíase humana, moléstia ocasionada pelo Trypanosoma cruzi, cujo transmissor é o Conorrhinus sanguissuga”.
Berenice, uma menina de dois anos, era o primeiro caso daquela que seria considerada a partir de então uma nova doença humana. O fato foi divulgado também mediante publicações nos Archiff fur Schiffs-und Tropen-Hygiene e no Bulletin de la Société de Pathologie Éxotique.
Aos 22 de abril, ao mesmo tempo em que o Brasil Médico trazia em suas páginas a descoberta feita no norte de Minas, o feito foi comunicado, em sessão da Academia Nacional de Medicina, por Oswaldo Cruz que leu um trabalho escrito por Chagas. A imprensa também deu destaque ao episódio, reverenciado como uma das “glórias de Manguinhos”.
A descoberta e os primeiros estudos da nova entidade mórbida tiveram um impacto decisivo na carreira científica de Chagas, que alcançou grande proeminência no mundo científico, com efeitos diretos em sua inserção na vida institucional de Manguinhos. Em março de 1910, Oswaldo Cruz lançou concurso para preencher a vaga de “chefe de serviço” aberta com a saída de Henrique da Rocha Lima. Este foi um evento de grande importância para a instituição, pois o ocupante do cargo era visto como o mais provável candidato à sucessão de Oswaldo Cruz. Chagas obteve a primeira colocação e os trabalhos que havia publicado sobre a nova doença tiveram grande peso para tanto.
Em 26 de outubro de 1910, Chagas foi admitido solenemente como membro titular da Academia Nacional de Medicina onde proferiu uma conferência apresentando seus estudos clínicos e farto material sobre a doença, inclusive imagens cinematográficas feitas em Lassance. No ano seguinte, um evento marcou a divulgação da descoberta e da nova doença no cenário científico internacional. No pavilhão brasileiro da Exposição Internacional de Higiene e Demografia, realizada em Dresden, Alemanha, a doença de Chagas foi apresentada com destaque, despertando grande interesse do público. Tal projeção expressava a importância que o tema assumia como carro-chefe e vitrine das pesquisas no Instituto Oswaldo Cruz. Outro marco importante da repercussão internacional da descoberta foi a conquista, por Chagas, em 1912, do Prêmio Schaudinn, concedido de quatro em quatro anos, pelo Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo, ao melhor trabalho em protozoologia (Figura 1).
Figura 1: Prêmio Schaudinn.
Graças à repercussão da descoberta e dos estudos de Chagas, Oswaldo Cruz obteve junto ao governo federal verbas especiais para equipar um pequeno hospital em Lassance para sediar os estudos clínicos sobre a nova doença e dar início, em Manguinhos, à construção de um hospital destinado às pesquisas e acompanhamento dos casos clínicos identificados no norte de Minas Gerais e em outras regiões do país. Sob a liderança de Chagas e com a colaboração de vários pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz, a nova tripanossomíase passou a ser estudada em seus vários aspectos, como as características biológicas do vetor, do parasito e de seu ciclo evolutivo, o quadro clínico e a patogenia, as características epidemiológicas, os mecanismos de transmissão e as técnicas de diagnóstico.
Assumindo centralidade na agenda institucional do Instituto Oswaldo Cruz e no próprio processo de institucionalização da atividade científica no país, a descoberta da doença de Chagas passou a ser tratada pelos contemporâneos e pela memorialística médica, até o presente, como um mito glorificador da ciência brasileira. Uma das considerações que se tornariam mais recorrentes quanto à importância da descoberta como “feito único” da ciência nacional foi o caráter incomum da sequência sob a qual ela ocorreu, já que se partiu da identificação do vetor e do agente causal para em seguida determinar a doença a eles associada. Outro aspecto singular foi o fato de o mesmo pesquisador haver descoberto, num curto intervalo de tempo, um novo vetor, um novo parasito e uma nova entidade mórbida.
A historiografia sobre a descoberta da doença de Chagas ressalta sua inscrição no contexto de afirmação e institucionalização da medicina tropical européia, tanto em função dos referenciais teóricos que a viabilizaram, quanto pela contribuição que a própria descoberta teve no sentido de consolidar a nova especialidade criada por Patrick Manson nos últimos anos do século XIX.
Outro aspecto salientado pelos historiadores é a importância da descoberta como fonte de legitimação, visibilidade e recursos – materiais e simbólicos – para o projeto institucional de Oswaldo Cruz. Benchimol e Teixeira enfatizam que o principal efeito da descoberta foi a consolidação da protozoologia como área de concentração das pesquisas do Instituto, bem como o impulso ao reconhecimento de Manguinhos na comunidade científica internacional como centro de investigação sobre doenças tropicais. Kropf chama a atenção para que se, por um lado, a descoberta contribuiu para dar sentido e reforçar o projeto institucional de Manguinhos, ela própria ganhou sentidos particulares como “grande feito da ciência nacional” em função dos significados associados a este projeto, que se apresentava publicamente como destinado a associar excelência acadêmica e compromisso social em identificar e solucionar os problemas sanitários do país.
Gestão
Carlos Chagas na direção do Instituto Oswaldo Cruz e do Departamento Nacional de Saúde Pública
Simone Petraglia Kropf
Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Email: simonek@coc.fiocruz.br
Em 14 de fevereiro de 1917, três dias após a morte de Oswaldo Cruz, Carlos Chagas foi nomeado pelo Presidente da República, Venceslau Brás, para a direção do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), cargo que ocuparia até seu falecimento, aos 8 de novembro de 1934. Em consonância com o modelo institucional estabelecido por Cruz, as atividades de pesquisa, ensino e produção mantiveram-se em estreita vinculação com as demandas da saúde pública, como expressão do compromisso social da ciência de Manguinhos. Esta associação personificava-se na própria figura de Chagas, que, desde a descoberta da doença que leva seu nome, clamava pela ampliação das ações sanitárias do Estado, em especial no interior do país. No início de sua gestão no IOC, ele participou diretamente das discussões promovidas pelo chamado movimento sanitarista, liderado por Belisário Penna, em torno de uma reforma dos serviços sanitários federais, tendo em vista, sobretudo, a implantação de serviços de saneamento rural.
Durante sua administração, Chagas empenhou-se em ampliar a estrutura laboratorial e o quadro de pesquisadores de Manguinhos, enviando vários deles ao exterior para cursos de aperfeiçoamento. Visando conferir maior formalidade às áreas de trabalho, estabeleceu, mediante reforma regimental em 1926, seis seções científicas: Bacteriologia e Imunidade, Zoologia Médica, Micologia e Fito-Patologia, Anatomia Patológica, Hospitais, Química Aplicada (criada em 1919).
De modo a acompanhar os avanços que então se processavam nas ciências biológicas, particular atenção foi conferida à bioquímica e à fisiologia, mediante a incorporação de José Carneiro Felipe e Miguel Osório de Almeida. Nas áreas de bacteriologia e imunologia, importante ampliação foi proporcionada com os trabalhos de José da Costa Cruz, Júlio Muniz, Genésio Pacheco, além de José Guilherme Lacorte e José de Castro Teixeira. O mesmo se deu nos campos da zoologia médica, sob a liderança de Lauro Travassos; da micologia, com as pesquisas de Olympio da Fonseca Filho e Arêa-Leão; da entomologia, projetada internacionalmente nas figuras de Adolpho Lutz e Ângelo da Costa Lima e com a colaboração de Cezar Pinto e Arthur Neiva; e da protozoologia, sob a condução de Aristides Marques da Cunha. As coleções científicas, formadas desde a época de Oswaldo Cruz, foram ampliadas. Também era motivo de particular interesse o tema da hanseníase, cujas pesquisas se desenvolviam sob o comando de Heráclides César de Souza-Araújo.
Uma das primeiras realizações da administração de Chagas foi a inauguração do Hospital de Manguinhos (posteriormente denominado Hospital Evandro Chagas, depois Instituto de Pesquisas Evandro Chagas e atual Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, projetado em 1912 visando à internação de casos de doenças infecto-contagiosas, especialmente da tripanossomíase americana, sobre as quais pesquisadores do Instituto estivessem realizando estudos (Figura 1). Sua chefia coube a Eurico Villlela, que deu grande desenvolvimento às pesquisas no campo da patologia e foi um dos principais colaboradores de Chagas no estudo da tripanossomíase americana. Amplo e bem equipado, o hospital destacava-se, entre outros aspectos, pelo pioneiro recurso às técnicas da eletrocardiografia, sob a supervisão de Evandro Chagas, filho mais velho de Carlos Chagas. A busca de novos medicamentos para as doenças tropicais, subsidiada pelos crescentes avanços na área da química, foi um campo de particular destaque das investigações realizadas no âmbito do hospital e em demais seções do IOC.
Figura 1: Carlos Chagas e pacientes no Hospital do Instituto Oswaldo Cruz.
No que se refere ao ensino, Chagas ampliou o programa dos chamados Cursos de Aplicação de Manguinhos, oferecidos desde 1908 para a formação de pesquisadores em microbiologia e zoologia médica. A criação, em 1925, da cadeira de Medicina Tropical na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (da qual Chagas foi o primeiro titular) abriu uma importante interface entre o programa de pesquisas do IOC e a formação profissional na área médica. (Figura 2, 3 e 4)
Figura 2: Diploma de formatura na Faculdade de Medicina.
Figura 3: Chagas no dia de sua posse como catedrático Medicina Tropical.
Figura 4: Conselho Técnico da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
Quanto à área de produção, Chagas diversificou a pauta de medicamentos e produtos biológicos fabricados em Manguinhos. Lutou para manter a renda própria advinda do patenteamento e venda das vacinas contra o carbúnculo sintomático (ou peste da manqueira) e o carbúnculo hemático, de modo a garantir a flexibilidade financeira que, desde os primeiros anos do IOC, era fundamental para o desenvolvimento da instituição. Em 1918, organizou o Serviço de Medicamentos Oficiais, no prédio que passou a ser conhecido como “pavilhão da Quinina”, destinado a fabricar e fornecer este produto (utilizado na prevenção e tratamento da malária), o tártaro emético e outros medicamentos, gratuitamente ou a preços subsidiados, aos postos de profilaxia rural, governos estaduais, Forças Armadas e empresas públicas e privadas. Esta medida expressava a participação ativa de Chagas, como diretor de Manguinhos, na viabilização de medidas preconizadas pelo movimento sanitarista. O Instituto assumiu também a responsabilidade pelo controle da qualidade dos imunobiológicos fabricados ou importados pelos laboratórios nacionais, e incorporou o Instituto Vacinogênico Municipal, responsável pela fabricação da vacina antivariólica.
Além da administração do IOC, outro campo em que Chagas conquistou grande projeção e visibilidade foi o da saúde pública. Em fins de 1918, ele foi aclamado herói pela imprensa por sua dedicação ao combate à epidemia de gripe espanhola, cujos efeitos devastadores na capital federal contribuíram para amplificar ainda mais as denúncias que vinham sendo feitas quanto à fragilidade dos poderes públicos no campo da saúde. Convocado pelo presidente da República para comandar a assistência à população, Chagas instalou hospitais e postos de atendimento emergenciais em diferentes pontos da cidade e convocou a classe médica a colaborar no socorro aos doentes. Neste contexto, salientou a necessidade de hospitais regionais nas zonas do interior do país atingidas pelas endemias, desguarnecidas, em geral, de quaisquer serviços de assistência médico-hospitalar. Em conformidade com as posições do movimento sanitarista, Chagas enfatizava que esta deveria ser uma atribuição da administração federal.
A repercussão de sua atuação no combate à gripe espanhola pesou decisivamente na escolha de seu nome para dirigir a nova agência sanitária federal, o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), criada, depois de um intenso debate parlamentar, em dezembro de 1919. À semelhança do que Oswaldo Cruz havia feito em relação à Diretoria Geral de Saúde Pública, Chagas acumulou o cargo com a direção de Manguinhos.
Como aponta Hochman, o novo órgão, concretizando a intenção do presidente Epitácio Pessoa de fazer da reforma sanitária uma prioridade de seu governo, atendia em boa medida as reivindicações do movimento sanitarista, ampliando a intervenção e a regulação do governo central na saúde pública e contrapondo-se ao modelo descentralizado baseado na autonomia dos Estados, vigente até então.
Da administração de Chagas no DNSP, que se estenderia até 1926, destaca-se a criação de um complexo e extenso Código Sanitário, que organizou e modernizou a legislação sanitária brasileira. Outra inovação foi a extensão das ações de saúde pública, até então concentradas nas áreas urbanas, ao interior do país, visando de promover, em especial, o combate as endemias rurais. Belisário Penna, que havia sido o fundador da Liga Pró-Saneamento do Brasil em 1918, assumiu a então criada Diretoria de Saneamento e Profilaxia Rural. Chagas contou, para tais serviços, com a decisiva atuação da International Health Board da Fundação Rockefeller. Tendo enviado uma primeira comissão ao país em 1915, esta instituição criou, a partir de então, postos de profilaxia da ancilostomose e da febre amarela em vários Estados brasileiros e, em 1923, firmaria um acordo de cooperação com o DNSP para ampliar o combate a esta última doença. Os cuidados com a maternidade e a infância, a assistência hospitalar e o combate à tuberculose, sífilis e lepra foram também contemplados com a criação de órgãos e instituições especializadas.
Outro aspecto importante da administração de Chagas foi o investimento na formação de profissionais especializados em saúde pública, para o qual também contou com a Fundação Rockefeller. Em 1923, foi fundada, na capital federal, a primeira escola de Enfermagem do país e estabelecido um sistema profissionalizado de enfermagem hospitalar no então criado Hospital São Francisco de Assis (Figura 5). Em 1926, Chagas organizou o Curso Especial de Higiene e Saúde Pública, como especialização no âmbito da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Ministrado por pesquisadores de Manguinhos, o programa e o regimento do curso eram de responsabilidade do IOC e, aos aprovados, estaria garantido o acesso direto aos cargos da administração federal da saúde pública. Como mostra Fonseca, este curso, o primeiro do gênero no país, foi um marco importante na institucionalização e profissionalização da carreira de sanitarista no Brasil.
Figura 5: Grupo fotografado durante expedição Neiva e Pena Asilo São Francisco de Assis.
As idéias e projetos de Chagas no campo da saúde pública tiveram repercussão internacional mediante sua atuação, a partir de 1922, como membro do Comitê de Saúde da Liga das Nações. Merece destaque, nesse sentido, a criação, no âmbito desta instituição, do Centro Internacional de Leprologia, inaugurado em 1934 e que funcionou no IOC até 1939, do qual Chagas foi idealizador e primeiro diretor.
A nomeação de Chagas para estes importantes cargos da ciência e da saúde pública federal, ao mesmo tempo em que traduzia reconhecimento e legitimidade, impunha uma maior susceptibilidade e exposição a críticas, controvérsias e tensões. Assim, apesar do prestígio que conquistou como herdeiro de Oswaldo Cruz em Manguinhos e na saúde pública federal, Chagas enfrentou contestações, em ambas as esferas de sua atuação pública.
Ao longo da década de 1920, o estrangulamento financeiro provocado pela concorrência com outros laboratórios produtores de imunobiológicos, a crescente insuficiência das dotações orçamentárias e a inflação levaram ao progressivo desgaste da infra-estrutura física e tecnológica do IOC, bem como ao declínio dos salários de seus funcionários, com a consequente evasão de pesquisadores e a generalização do duplo emprego. Tudo isso provocou prejuízos ao rendimento e à qualidade das pesquisas, o que se agravou nos primeiros anos do governo de Getúlio Vargas. Assim, entre 1930 e 1934, Chagas administrou uma instituição que sofria os efeitos das transformações pelas quais passava o próprio Estado brasileiro, expressas, por exemplo, na criação do Ministério da Educação e Saúde, em 1930. Durante este período, o IOC se viu diante da necessidade de redefinir seus vínculos e atribuições face às novas demandas e estruturas administrativas do campo sanitário.
Os conflitos que enfrentou no âmbito de sua administração no DNSP, especialmente durante a presidência de Arthur Bernardes (1922-1926), contribuíram para o desgaste político de Chagas. Um dos motivos de críticas foi, por exemplo, a associação com a Fundação Rockefeller em campanhas sanitárias, condenada por médicos que, no contexto nacionalista dos anos 20, incomodavam-se com o protagonismo de estrangeiros num domínio que Oswaldo Cruz havia tornado a grande vitrine da competência nacional na saúde pública: o combate à febre amarela. Em 1926, ano em que Chagas deixou o DNSP, ele foi duramente atacado na imprensa por conta um surto de varíola na cidade e do risco de uma epidemia de febre amarela. As frequentes viagens que fazia ao exterior também foram alvo de intensa oposição.
Estas tensões, além de rivalidades de natureza política e pessoal comuns a trajetórias de projeção na cena pública, expressavam as próprias tensões vividas pela sociedade brasileira na conturbada década de 1920, num processo que levaria à chamada Revolução de 1930. Elas seriam uma importante dimensão das contestações de que foi alvo a própria doença descoberta por Chagas, objeto de acirrada polêmica na Academia Nacional de Medicina entre 1922 e 1923.
Apesar destes conflitos, a atuação profissional de Chagas na vida pública expressou sua consagração como cientista que, desde a descoberta da tripanossomíase americana em Lassance, tinha a vida profissional direcionada, com o apoio explícito e sistemático do próprio Oswaldo Cruz, a trilhar o caminho que o tornaria herdeiro não apenas da direção de Manguinhos, mas do que esta instituição representava: um projeto de ciência articulado a um projeto nacional, firmado pelo compromisso com as questões de saúde da população brasileira.
Ensino
Carlos Chagas e o ensino médico: a cadeira de Medicina Tropical da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
Simone Petraglia Kropf
Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Email: simonek@coc.fiocruz.br
A atuação de Carlos Chagas como professor teve início no próprio Instituto de Manguinhos, em cujo Curso de Aplicação, desde o início da década de 1910, ele dava aulas de protozoologia. Em 1917, cogitou-se sua nomeação para substituir Miguel Pereira, então falecido, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (FMRJ). Contudo, o ingresso de Chagas como docente nesta escola se daria somente em 1925, quando se tornou catedrático de medicina tropical, atividade que desenvolveria até sua morte em novembro de 1934 (Figura 1).
Figura 1: Chagas no dia de sua posse como catedrático Medicina Tropical.
A idéia de estabelecer, na FMRJ, uma cátedra destinada ao estudo das chamadas doenças tropicais era uma antiga aspiração dos que preconizavam a incorporação, ao ensino médico, das novas teorias e práticas da medicina experimental. Em 1900, logo após a fundação das escolas inglesas de medicina tropical conforme modelo estabelecido por Patrick Manson, a disciplina de “patologia e clínica tropicais” foi proposta no Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia, não tendo sido aprovada. Além das reservas ao próprio conceito de medicina tropical como especialidade, alguns professores da faculdade manifestavam resistência aos pesquisadores de Manguinhos, vistos como críticos da carência de pesquisa científica no ensino médico oficial. Este seria um dos focos das tensões vividas pelo próprio Chagas, enquanto diretor de Manguinhos, com o estabelecimento da Faculdade.
Em 1925, a cadeira de medicina tropical foi criada no âmbito da reforma do ensino promovida pelo Ministério da Justiça e Negócios Interiores e conduzida, na FMRJ, por seu diretor Juvenil da Rocha Vaz. As decisões sobre a nomeação de professores, as questões regimentais e os conteúdos da disciplina, que se tornaria obrigatória para a conclusão do curso médico, caberiam à direção do IOC. Para ministrá-la, Chagas foi nomeado catedrático, em maio de 1925, mediante decreto presidencial que, conforme o critério de notório saber, dispensou-o da realização de concurso. Em setembro de 1926, foi proferida a aula inaugural. Para abrigar a cátedra, construiu-se, nos fundos do Hospital São Francisco de Assis (criado pelo próprio Chagas, como diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública, em 1923), o Pavilhão de Doenças Tropicais, mais tarde rebatizado como Pavilhão Carlos Chagas (Figura 2).
Figura 2: Examinando paciente da malária, Pavilhão de Doenças Tropicais.
Como relata Carlos Chagas Filho, as aulas de Chagas conjugavam sempre a explanação teórica e a observação clínica de doentes, e eram subsidiadas por farto material expositivo, trazido de Manguinhos e composto por peças anatômicas, projeções e filmes. Ao seu término, os alunos percorriam as enfermarias do pavilhão, em companhia do professor, para aprofundar o aprendizado das doenças tratadas no curso.
A cadeira de medicina tropical – alguns anos depois denominada de Clínica de Doenças Tropicais e Infectuosas – constituiu um espaço importante onde Chagas defendeu sua convicção de que as doenças tropicais eram temas que deveriam atrair o interesse dos médicos brasileiros, tanto sob o ponto de vista estrito do saber científico, quanto pela legitimidade que emprestava à ciência médica em seus compromissos públicos com a nação. Se, no âmbito do movimento sanitarista da década de 1910 e à frente do Departamento Nacional de Saúde Pública, a dimensão política da atuação de Chagas havia sido explícita, o ensino médico tornava-se um espaço de grande importância pela possibilidade de mobilizar as futuras gerações para as bandeiras que vinha desfraldando, desde a descoberta da tripanossomíase americana, em prol do saneamento rural do país.
Em sua aula inaugural, Chagas defendeu a criação daquela disciplina na FMRJ não apenas como especialidade do saber médico, mas pela importância que adquiria no contexto nacional, em função da natureza dos temas que lhe eram atinentes. As doenças tropicais deveriam ser estudadas, acentuava, porque representavam “o mais relevante de nossos problemas médico-sociais”. Se a medicina tropical havia sido criada na Europa no âmbito dos interesses colonialistas, no Brasil, salientava, “deveres do mais exaltado e previdente nacionalismo nos obrigam ao estudo e à pesquisa da nosologia brasileira, afim de promover o aperfeiçoamento de nossa raça, de raros predicados nativos, e de realizar, pelo método profilático, a redenção sanitária de nosso vasto território”.
Segundo Chagas, apesar de não haver doenças exclusivas dos trópicos, a demarcação da medicina tropical como especialidade era justificada. Ainda que o clima não constituísse “fator etiopatogênico direto de qualquer entidade mórbida bem definida”, argumentava, “por ele a doença se transforma e modifica, e dele se originam as variantes nosológicas apreciáveis nas diversas regiões da terra”. Em síntese, o clima criaria variantes regionais na patologia ao produzir condições específicas para a ocorrência dos patógenos e vetores, bem como para a susceptibilidade do organismo humano a tais agentes microbianos.
Ao defender o conceito de medicina tropical como caminho para o estudo da nosologia brasileira, Chagas empreendia um recorte que associava os traços específicos desta nosologia à identidade nacional: as doenças tropicais do país eram, fundamentalmente, as endemias rurais, que assumiam, assim, para além de sua expressão epidemiológica, significado simbólico e político como os males do Brasil. Sob tal recorte, os trópicos assumiam concretude e eram ressignificados no ambiente físico e social dos sertões, em referência ao projeto político-social do movimento sanitarista da década de 1910, da qual Chagas foi protagonista. Sob os argumentos teóricos da especialidade, Chagas explicitava então um sentido específico vinculado a sua própria trajetória como cientista. A tripanossomíase americana (descoberta por ele em 1909, no interior de Minas) era, acima de qualquer outra, “uma entidade mórbida essencialmente brasileira”, não porque fosse exclusiva do país, mas porque representava o Brasil, numa justaposição de sentidos: havia sido descoberta e estudada aqui, era um emblema das condições de saúde do interior país e um símbolo da competência médica e científica nacional. “Será ela, por isso mesmo, o assunto inicial deste curso”, disse ele.
O preceito fundamental que regia a concepção de ensino expressa nas aulas de Chagas era o de que este não deveria ater-se à simples formação profissional para a assistência médica, mas abranger um sentido mais amplo: a estreita associação entre ensino, clínica e pesquisa científica. O terreno específico da medicina tropical, afirmava, era um exemplo claro desta associação: “Se do microscópio não podem (…) prescindir os que estudam e praticam a medicina nos países quentes, porque é de seu manejo que resultam indicações essenciais à finalidade do nosso mister”, como as informações sobre os parasitos patogênicos, por exemplo. Por outro lado, ao laboratório não cabia substituir a clínica. “O laboratório apenas prolonga a enfermaria”, acentuava Chagas, “e vem prosseguir ou completar a indagação etio-patogênica, sempre orientada pelo conceito clínico inicial, que a todas as pesquisas antecede.” Em suma, era esta articulação que deveria presidir o aprendizado e o estudo das “espécies nosológicas peculiares ao nosso país”.
Esse argumento seria novamente enfatizado na conferência que pronunciou em 1928, na abertura dos cursos da FMRJ:
“É do passado essa dualidade de tendências, na orientação do ensino, ou para o leito do hospital ou para os laboratórios de pesquisas, assim definindo, uma escola clínica, que mais demorava na indagação dos sintomas, e uma escola científica que mais insistia na pesquisa experimental. (…) A enfermaria, o laboratório e o instituto anátomo-patológico hoje se penetram e se completam, e constituem uma só unidade técnica, na qual se aplicam inteligência, perspicácia e discernimento para esclarecer a doença”.
O Pavilhão de Doenças Tropicais vinha concretizar esta estreita associação entre ensino, pesquisa e assistência médica, na medida em que era dotado de laboratórios de pesquisa e análises, enfermarias e um anfiteatro para as aulas expositivas, e que se beneficiava do serviço de necrópsias que, por iniciativa de Chagas, o IOC estabelecera no Hospital São Francisco de Assis.
Além da cadeira de medicina tropical, Chagas teve atuação destacada no ensino médico como membro eleito do Conselho Técnico-Científico da Faculdade, juntamente com Miguel Couto, Eduardo Rabello e Francisco Lafayette. Em 1931, quando o então Ministro da Educação e Saúde Francisco Campos deu início à reforma universitária que levaria, em 1935, à criação da Universidade do Brasil, Chagas formulou um projeto destinado a remodelar o ensino médico, tendo em vista os preceitos do sistema universitário.
Com sua morte, em 1934, realizou-se concurso para substituí-lo na cátedra. Seu filho Evandro, que já o auxiliava nas aulas e que havia redigido, em co-autoria com o pai, um Manual de Doenças Tropicais e Infectuosas, concorreu à vaga, mas esta foi preenchida por Joaquim Moreira da Fonseca.
Títulos
Carlos Chagas: prêmios e títulos
Danielle C. Barreto
Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
E-mail: dbarreto@coc.fiocruz.br
Com a descoberta da tripanossomíase americana no interior de Minas Gerais (1909), Carlos Chagas projetou-se nacional e internacionalmente como grande cientista, tornando-se membro de importantes sociedades e recebendo inúmeros títulos honoríficos e algumas premiações. Já no ano seguinte à descoberta, em 26 de outubro de 1910, tornou-se titular da Academia Nacional de Medicina, que pela primeira vez recebia um novo membro sem que houvesse vaga disponível. A excepcionalidade do trabalho de Chagas foi também rapidamente reconhecida pela comunidade científica internacional. Em 22 de junho de 1912, Chagas recebeu do Instituto de Moléstias Tropicais de Hamburgo o Prêmio Schaudinn, que a cada quatro anos contemplava a mais importante descoberta na área da protozoologia. Anos mais tarde, em 1923, chefiando a delegação brasileira na conferência comemorativa do centenário de nascimento de Louis Pasteur, em Estrasburgo, receberia o prêmio hors-concours pelos trabalhos sobre saúde pública e doenças tropicais apresentados na exposição que acompanhou o congresso. Em 1925, foi a Universidade de Hamburgo a conferir-lhe o Prêmio Kummel (medalha de ouro). No Brasil, merece destaque a premiação conferida a Chagas em virtude do trabalho realizado durante a epidemia de gripe espanhola na cidade do Rio de Janeiro, em 1918, onde foi responsável pela organização dos hospitais de emergência. Chagas entregou o prêmio ao Instituto Oswaldo Cruz. Em 1911 (para nomeação em 1913) e 1920 (para nomeação em 1921), foi indicado ao Prêmio Nobel de Medicina.
Em 1921, Chagas realizou sua primeira viagem aos Estados Unidos da América, a convite da Fundação Rockefeller, onde foi homenageado com o título de Artium Magistrum, Honoris Causa pela Universidade de Harvard, sendo o primeiro brasileiro a receber tal distinção. A essa somaram-se outras, como o título de Cavaleiro da Ordem da Coroa da Itália (1920); Comendador da Coroa da Bélgica (1923); Cavaleiro da Ordem Nacional da Legião de Honra da França (1923); Grau de Oficial da Ordem de São Thiago (1924); Comendador da Ordem de Afonso XIII (1925) e da Ordem de Isabel, a Católica (1926); Doutor Honoris Causa pela Universidade de Paris (1926); Cavaleiro da Ordem da Coroa da Romênia (1929); Doutor e Honoris Causa pela Universidade de Lima (1929) e pela Faculdade de Medicina da Universidade Livre de Bruxelas (1934). Carlos Chagas Filho afirma que, de todas as homenagens e honrarias recebidas, seu pai guardaria com viva satisfação as que lhe foram prestadas pelos reis da Bélgica, Alberto e Elisabeth, que, inclusive, visitaram o Instituto Oswaldo Cruz em 1921 (Figura 1).
Figura 1: Diploma doutor honoris causa Universidade de Harvard.
Carlos Chagas ingressou em inúmeras associações científicas. Além da Academia Nacional de Medicina (1910), foi membro da Société de Pathologie Exotique (1919); Membro Honorário da Physicians Club of Chicago (1921); da Associação Médica Panamericana (1922); da Societas ad Artes Medicas in Indian Orientali Neerlandica (1924); da Academia de Medicina de New York (1926); da Kaiserlich Deutsch Akademie der Naturforscher zur Halle (1926); da Real Sociedade de Medicina Tropical e Higiene de Londres (1928); da Academia de Medicina de Paris (1930); Membro Honorário da Sociedade de Biologia de Buenos Aires (1930). Recebeu ainda os Diplomas da Academia de Medicina da Universidade Nacional de Buenos Aires (1917), da Faculdade de Medicina da Universidade de Hamburgo (1925) e da Cruz Vermelha Alemã (1932).
Nobel
Carlos Chagas e a indicação ao prêmio Nobel
João Carlos Pinto Dias
Centro de Pesquisas René Rachou, Belo Horizonte
E-mail: jcpdias@cpqrr.fiocruz.br
José Rodrigues Coura
Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz
E-mail: coura@ioc.fiocruz.br
Marília Coutinho
Universidade de São Paulo
E-mail: marilia@ufl.edu
Evento inusitado e de praticamente nenhuma divulgação no Brasil, até 1999, a indicação de Carlos Chagas para o mais laureado prêmio de Medicina poderia ter-se constituído em um fato político e histórico de grande importância, especialmente por dois motivos: iria ampliar o reconhecimento da obra genial e única de Chagas, e daria por consequência uma maior visibilidade da tripanossomíase americana, de enorme impacto médico e social no Continente. Na realidade, foram quatro as indicações, sendo duas (1913 e 1921) as mais formais e de cunho oficial, ambas registradas na Academia Karolynska. Coube a primeira indicação ao cientista brasileiro Pirajá da Silva, que recebera a tarefa de sugerir um nome à Comissão do Nobel, em 1911. Pirajá fizera cursos na Europa e mantinha relacionamento com Patrick Manson, cientista de fama internacional, com quem discutira suas observações inéditas sobre o Schistosoma mansoni desde 1908, merecendo do inglês e de seus colegas europeus um profundo respeito. Pirajá conhecia o trabalho de Chagas, por ser eminente e atualizado parasitologista. Aliás, fora também pioneiro dos estudos sobre a esquizotripanose na Bahia, já em 1910, ao detectar e estudar a ocorrência do Trypanosoma cruzi e do vetor Conorrhynus megistus nas proximidades de Salvador. Seu arrazoado foi firme e bem embasado, contemplando a genialidade da descoberta de Chagas, que descrevera o parasito num lampejo histórico, a partir do hemíptero vetor, logo preenchendo os quatro postulados de Koch em brilhante sequência experimental, para chegar – ainda ele – ao primeiro caso humano, poucos meses depois. À parte o feito científico, corretamente explorado por Pirajá da Silva, talvez a indicação carecesse, à época, do necessário impacto no terreno médico social da nova entidade. Na verdade, Chagas o intuíra também brilhantemente, já em publicações de 1910 e 1911, a partir de dois fatos fundamentais, de profunda lógica e consistência, que somente a posteridade confirmou: a) mediante esforços induzidos por ele e por Oswaldo Cruz, o eminente entomologista Arthur Neiva, também de Manguinhos, começara mui precocemente a mapear triatomíneos em todo o Continente, consignando a espécie, o local de captura e suas taxas de infecção natural por flagelados semelhantes ao T. cruzi. Como a maioria dos exemplares tinha procedência intra-domiciliar de vários países, com provável contato humano, Chagas pôde divisar (e proclamar) a enorme dispersão da sua tripanossomíase, que se mostrava restrita às Américas; b) muito cedo, também, Carlos Chagas percebeu que o grande problema da esquizotripanose humana residia numa cardiopatia crônica, muito comum na região de Lassance e diferente, clinica e evolutivamente, de outras cardiopatias bem conhecidas à época, principalmente as de origem sifilítica e reumática. As poucas necrópsias feitas por ele, por Vianna e por Crowell mostravam os quadros característicos de perda celular e fibrose disseminada, especialmente no miocárdio, em pacientes que em vida apresentavam cardiomegalia, arritmias complexas e quadros lipotimo-sincopais, neles faltando as conhecidas lesões verrucosas valvulares e as gomas sifilíticas. E em alguns casos eram detectados microscopicamente flagelados amastigotas, proximamente a células lesionadas e a reações inflamatórias crônicas. Faltaria, no entanto, o parasito sanguícola nesses pacientes, tão abundantes na fase aguda. As ferramentas de detecção do parasito ou de sua presença na etapa crônica somente viriam à luz a partir de 1913, com o desenvolvimento do xenodiagnóstico por Brumpt e da sorologia por fixação de complemento, por Guerreiro e Machado. Até 1912, somente 14 trabalhos haviam sido publicados sobre a entidade, sendo 12 do próprio Chagas. Era pouca, a informação. O nexo etiológico só viria a estabelecer-se anos depois, na década de 40, mediante estudos sistematizados de Laranja e colaboradores . Além do mais, arrefecendo-se aos poucos a febre dos “caçadores de micróbios”, o interesse médico voltava-se mais para as novas vertentes da Imunologia e da Terapêutica. Com tudo isso, Carlos Chagas não recebeu a láurea em 1913, sendo contemplado, naquele ano, o Dr. C.R. Richet, por suas originais contribuições no estudo da anafilaxia.
A segunda indicação oficial foi em 1920, para a nomeação de 1921, feita por eminente otorrinolaringologista do Rio de Janeiro e membro da Academia Nacional de Medicina, o Dr. Manoel Augusto Hilário de Govêa, num documento em francês ao Comitê do Prêmio Nobel de Medicina e publicado nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz em 1999. Entre estas duas indicações, Carlos Chagas produzira importantes trabalhos e a doença fora diagnosticada na América Central, na Venezuela, na Bolívia e na Argentina. As publicações de Chagas seriam quase sempre bilíngues, uma orientação precípua de Oswaldo com vistas à melhor difusão internacional dos trabalhos do Instituto. Além disso, Chagas realizara inúmeras conferências sobre a tripanossomíase no Brasil e no Exterior, destacando-se a sua participação no Congresso Panamericano de Medicina em Buenos Aires, 1916, onde debateu veementemente com R. Kraus, consagrado bacteriologista da Universidade de Viena, convencendo-o plenamente de suas idéias. Com Eurico Villela, Chagas retomara o tema da cardiopatia crônica, estimulando que esta importante linha de trabalho fosse implantada nos hospitais e áreas endêmicas de Minas Gerais. Por outro lado, Neiva e seus seguidores (especialmente Cezar Pinto) davam continuidade ao mapeamento triatomínico e a uma sequência brilhante de estudos de novas espécies, contemplando todo o Continente. Par e passo, surgiam outros sucessos e capítulos novos na história da doença, como a descrição de reservatórios naturais, as primeiras observações e evidências experimentais sobre a transmissão congênita do parasito, a primeira suposição de Chagas sobre a etiologia chagásica do megaesôfago, revisões minuciosas do ciclo do parasito, aprofundamento sobre os processos patogênicos na doença humana etc. Neste ínterim, Carlos Chagas também se enveredara pelos aspectos sociais, políticos e profiláticos da endemia, em conferências e publicações magistrais onde situava o rancho miserável do rurícula como causa principal da expansão da doença, chegando a induzir, em 1918, que Souza Araújo (também de Manguinhos) estudasse no Paraná tais aspectos e ali esboçasse um projeto de lei sobre a construção de vivendas salubres em propriedades rurais. Chagas também ganhara invejável notoriedade no período, não somente por receber uma série de prêmios e distinções (especialmente o prêmio Schaudinn, do Instituto de Medicina Tropical de Hamburgo, em 1912), mas também por assumir dois cargos de suma importância, como foram a diretoria do Instituto Oswaldo Cruz em 1917 e a Direção do Departamento (Nacional) de Saúde Pública, em 1920. A indicação de Govêa foi concisa e baseou-se nos antecedentes científicos de Chagas, nos detalhes da descoberta da tripanossomíase, nos estudos clínicos e anátomo patológicos encetados e em alguns detalhes sobre a ecologia e a expressão médico-social da doença. O documento foi acompanhado de uma brochura sobre o Instituto Oswaldo Cruz e de nove trabalhos originais de Carlos Chagas. Uma vez mais, Chagas não foi contemplado, a despeito de ter sido o único cientista indicado neste ano, tendo ficado vago o Prêmio Nobel de Medicina de 1921. Coincidência ou não, o Dr. Hilário de Gouvêa faleceu no ano seguinte à recusa de sua proposição. As duas outras indicações, como já citado, foram informais e sem registro oficial na academia sueca, uma delas ocorrendo depois da morte do cientista. Com todo o mérito, reconhece-se hoje universalmente, Carlos Chagas deveria ter recebido a láurea máxima, especialmente na indicação de 1921, quando sequer teve competidor Os registros em Estocolmo são vagos a esse respeito. Segundo a pesquisadora Rachel Lewinshon, que lá esteve, existe um processo registrado, inacessível a visitantes, que folheado por um membro amigo da Fundação Nobel apenas registra a indicação e nada contém sobre a não concessão. Pelas normativas vigentes, também não se pode abrir revisão, tampouco reinstalar-se um processo post mortem. Chagas teria sido o primeiro Prêmio Nobel de nosso País, até hoje, o único.
Três considerações são pertinentes, sobre esses episódios que aos poucos vêm sendo estudados.
Em primeiro lugar, nenhuma dúvida cabe quanto ao mérito de Chagas, levando-se em conta a história, a essência do feito e o impacto real da descoberta. Hoje a esquizotripanose atinge dezoito países e se espalha pela Europa e Norte América, mediante migrações, afetando mais de quatorze milhões de indivíduos, achando-se em vias de ser controlada, mediante ingentes esforços da comunidade científica herdeira de Carlos Chagas. A saga do descobrimento foi decantada e reconhecida pelos melhores cientistas, em que pesem invejas e distorções equivocadas como, recentemente, um historiador francês que de modo superficial e carente de ética científica manipula os fatos históricos e faz juízos de valor sobre Chagas, chamando-o literalmente de mentiroso e oportunista. Chama atenção, pelo lado do mérito, o fato de que ao receber o prêmio Schaudinn, em 1912, Chagas superou outros concorrentes como P. Erlich, E. Roux, E.Metchnikoff, C. Nicolle e A. Laveran, todos eles renomados cientistas europeus que já haviam ganhado ou viriam a receber a láurea sueca.
Uma segunda reflexão se prende à imensa modéstia e ao silêncio de Chagas, que, sabedor das demarches, delas jamais deu ciência a quem quer que fosse, nisto incluindo-se sua família e amigos mais chegados. Nenhum de seus biógrafos refere-se às indicações. Desconhecia-as totalmente o Prof. Carlos Chagas Filho, nada mencionando a respeito no seu livro “Meu Pai”, também o afirmando peremptoriamente quando interrogado a respeito, pouco antes de sua morte, por Rachel Lewinshon e João Carlos Pinto Dias, entre outros. Modéstia, sigilo ético, cuidado por não pressionar a Academia, cuidado para não magoar colegas, desilusão, eis algumas possíveis explicações, todas elas razoáveis para um homem sensível e ético, que recusava acúmulos de cargos, que só admitia fazer sua ciência se esta fosse grandiosa e bela, “e em defesa da vida”. A postura retraída e prudente de Chagas revela ainda um homem sofrido, amadurecido em honrosos e muitos combates e tarefas, determinado a preservar o seu Instituto nos conformes dos ideais de Oswaldo. Um Chagas que almejava oferecer ao País – pelo patriotismo e pela visão de futuro – uma consciência científica que fosse própria e de alto nível, capaz de resolver problemas e de estimular outros setores da nacionalidade. Seu filho o retrata comedido e mais triste nos anos que se seguem à contenda da Academia Nacional de Medicina, coincidentemente os mesmos subsequentes ao segundo Nobel perdido. Tempo de acertos, de administrar difíceis pendências internas em Manguinhos e de organizar a Saúde Pública do País. Foi um tempo, também, de formar novas gerações de pesquisadores que levassem adiante a imensa tarefa de reconhecer e caracterizar de vez as questões que julgava mais pertinentes à caracterização clínica e à terapêutica da terrível moléstia, também de preveni-la. Passou a conviver mais com os filhos e orientandos. Parece que não teve tempo para curtir lamentáveis mágoas, ou de correr atrás de um prêmio honroso que merecera, que o sabia seu, que algum dia, por certo, haveria de chegar.
A terceira e necessária consideração prende-se naturalmente à pergunta que todos temos: por quê a não concessão do prêmio em 1921? Difícil será argumentar-se pela falta de valor científico do pesquisador, ou pelo mérito e significado médico da descoberta realizada. O arrazoado de Govêa é consistente e bem embasado, ademais, anexando uma monografia sobre a excelência da Instituição onde Chagas trabalhava. Aos poucos, personalidades como Brumpt, Crowell, Krause, Noé, Gaminara, Segovia, Nathan Larrier e outros iam se debruçando sobre os vários aspectos da protozoose. A carta triatomínica já estava muito consistente e, aos poucos, detectavam-se casos agudos em outros estados e países. Coutinho e colaboradores acenam para um conjunto de fatos assessórios que poderiam ter diminuído a importância e a imagem de Chagas no contexto da época e do interesse de Estocolmo: não apenas estava terminando a época áurea da microbiologia, também como fruto de novos arranjos políticos mundiais (primeira guerra, redução de colônias ultramarinas). Também a Medicina evoluía a passos largos, abriam-se novos horizontes na propedêutica armada, novos temas emergiam nos campos da biofísica e da genética, entre outros. Mais ainda, da parte de Chagas alguns pontos poderiam contar em contra, como por não ser médico militar, por não ter estudos no Exterior, por não ser o Brasil uma colônia manejada por médicos estrangeiros etc. Nada comprovado, Houssay receberia o prêmio mais tarde em situação semelhante. Talvez a mais provável seja mesmo a hipótese de Sierra Iglesias (1990), que assim descrevia (p. 225) “En 1921 era propuesto para Chagas el Premio Nobel de Medicina y cuando todo presumia que le sería otorgado, inconfesables influencias se interpusieron. El Instituto Sueco se había dirigido a organismos científicos del Brasil recabando datos sobre su personalidad, sobre su obra, pero algunos sus propios compatriotas (increíblemente, entre ellos algunos médicos, por lo tanto primariamente inhabilitados para juzgar el descubrimiento de la tripanosomiasis), lo desaconsejaron, siendo este año declarado desierto este codiciado lauro mundial”. A respeito, dois de nós conversamos longa e pessoalmente com Sierra Iglesias, que reiterou sua versão, dando como fonte o preclaro e ilustre pesquisador uruguaio, Prof. Rodolfo Talice. Mais ainda, Iglesias acreditava firmemente que a evasiva brasileira partira de dentro da própria Academia Nacional de Medicina, palco à época de desditosa campanha contra Chagas. Não conseguimos falar com Talice, infelizmente falecido. Uma visita à Academia Nacional de Medicina foi infrutífera em termos de qualquer registro sobre o “affaire” do Nobel. Uma outra a Estocolmo, pela Dra. Rachel Lewinshon, a despeito de cartas de recomendação da Fiocruz e da Organização Mundial da Saúde, também foi frustrante, pelo impedimento ao exame dos arquivos e pela informação provavelmente correta, de um membro da Karolynska, de que nada consta sobre a negativa, apenas a indicação e os documentos curriculares. Mais ainda, ficou a impressão de que as coisas do passado são intocáveis para aquela Academia, não há maior interesse em rever processos, muito menos reconsiderá-los. Haveria problemas complicados e intermináveis, por certo. Afinal, sempre há riscos na concessão do prêmio.
Como um epílogo:
Carlos Chagas era o candidato natural ao Prêmio Nobel durante um certo número de anos em função de um contexto constituído pela cultura da pesquisa médica daquele momento, do impacto da descoberta do ponto de vista científico e de saúde pública, entre outros. Os motivos pelos quais o prêmio foi negado quando as indicações foram feitas permanece um mistério em torno dos quais todos fizemos nossas especulações.
A questão em seu cerne diz respeito ao papel dos símbolos públicos de reconhecimento de mérito para as coletividades dos reconhecidos: países, instituições, comunidades, equipes. O reconhecimento em si tem um impacto profundo, do ponto de vista político e cultural, sobre estas coletividades. Não é por acaso que se concede o P. Nobel da Paz a este ou aquele – em geral, se tem em mente um sério conflito em curso, como o do Oriente Médio, e com certeza a premiação tem uma “agenda” de interferência (positiva) no mesmo. O Nobel científico também segue agendas de interesse. Nash foi laureado pelo impacto econômico de sua teoria e, sendo laureado, o conteúdo dela foi duplamente reforçado. Assim, o “botched prize” (premio frustrado) de Chagas com certeza teve um desdobramento político, só que um “impacto fantasma”, às avessas. Só sabemos em retrospectiva: uma doença que poderia, se dada a devida visibilidade, ter sido controlada e, portanto, poupado ao país muito em sofrimento e mesmo em finanças, só pôde ser enfrentada de fato na década de 1980 (tendo sido descoberta em 1909). O desdobramento “fantasma” representaria um atraso de várias décadas com sério impacto sobre o desenvolvimento nacional e modernização econômica.
Embora isso seja totalmente especulativo, o mundo dos “se’s” (“se” Chagas tivesse sido premiado, então talvez a visibilidade resultante teria permitido o controle precoce da enfermidade), pode-se acreditar que a rejeição das indicações ao Nobel teve uma inegável consequência, e de grande porte. Países precisam de cientistas heróis quando estão construindo ou “negociando” um papel para sua ciência. Comunidades que lutam contra complexas questões sociais de desvantagens de todo tipo também podem lucrar com isso. Desumanizar conquistas individuais contra certas condições como doenças, drogadicção ou formas variadas de degradação humana pode não ser vantajoso a ninguém – nestes casos, a humanidade e conflitos expostos podem ser mais benéficos. Para países e coletividades, heróis têm um lugar, sim. Prêmios Nobeis, medalhas Olímpicas e outros símbolos de reconhecimento podem fazer toda a diferença entre um salto de qualidade que milhares de pessoas podem dar juntas no sentido de conquistas sociais fundamentais, ou não. Por isso, a perda do Nobel por Chagas foi lamentabilíssima. Quem quer que tenha sido responsável por ela causou ao país perdas que nunca poderemos calcular.
Uma nova indicação do Nobel, post mortem, não é usual. Fica para todos, ao ensejo do próximo centenário da descoberta de Chagas, a idéia e o orgulho por nosso cientista maior, ter sido laureado de fato e com todas as honras, como benfeitor inconteste da humanidade.
Carlos Chagas não recebeu o Prêmio Nobel
Naftale Katz
Academia Mineira de Medicina, Instituto Mineiro de História da Medicina, Centro de Pesquisas René Rachou/Fiocruz
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Carlos Chagas pode ser considerado um dos mais brilhantes cientistas brasileiros de todos os tempos. O feito de um mesmo cientista ter descoberto o agente etiológico, o inseto vetor, os animais reservatórios e a doença, parece ter sido inédito na história da medicina. Assim, não deve ser surpresa que Chagas tenha sido indicado por duas vezes para o Prêmio Nobel, infelizmente, de cada vez (1913 e 1921) por um único nomeador brasileiro. Baseados na informação de Sierra Iglesias (1990), pesquisadores brasileiros defendem a idéia de que Chagas não foi agraciado com o Prêmio Nobel devido às críticas feitas por seus colegas da Academia Nacional de Medicina. Fundamentado em dados recentemente liberados pela Fundação Nobel, este fato está sendo discutido. Uma melhor explicação para a não concessão do prêmio a Carlos Chagas talvez possa ser encontrada na credibilidade e respeito entre pesquisadores de países centrais em relação aos dos países periféricos.
Na história da medicina o feito de um mesmo cientista ter descoberto o agente causador, o inseto transmissor, animais reservatórios e a descrição anatomopatológico e o quadro clínico de uma doença parece ter sido apenas uma vez alcançada, quando da descoberta da tripanosomíase americana, realizada e denominada por Carlos Chagas. Por estas descobertas mereceria todos e quaisquer prêmios que na época (e mesmo depois) pudessem ser concedidos em reconhecimento a uma grande descoberta. A doença de Chagas, como passaria a ser conhecida por batismo do grande clínico Miguel Couto em 1910, foi posteriormente identificada desde o sul do continente americano até o sul dos Estados Unidos em suas diferentes formas clínicas, sendo causa não apenas de morbidade, mas de mortalidade importante especialmente na fase em que o homem é mais produtivo.
Este trabalho discute e traz contribuições a um problema específico cuja discussão iniciou-se no Brasil no fim dos anos 1990, a respeito das razões pelas quais Carlos Chagas não foi agraciado com o prêmio Nobel de 1921.
Tudo começa com uma citação no livro de Sierra Iglesias (1990) sobre a vida e obra do pesquisador argentino Salvador Mazza, que muito contribuiu para o reconhecimento da importância da doença de Chagas na Argentina. Neste livro, na página 225 pode-se ler:
“En 1921 era propuesto para Chagas el Premio Nobel de Medicina, y cuando todo presumía que le sería otorgado, inconfesables influencias se interpusieron. El Instituto sueco se había dirigido a organismos científicos del Brasil recabando datos sobre su personalidad, sobre su obra, pero algunos de sus próprios compatriotas (increíblemente, entre ellos algunos no médicos, por lo tanto primariamente inhabilitados para juzgar el descubrimiento de la tripanosomiasis), lo desaconsejaron, siendo este año declarado desierto este codiciado lauro mundial”.
Baseados nesta informação, Coutinho e Dias iniciam uma série de artigos onde defendem como idéia altamente plausível que foi por atitudes de colegas de Chagas, especialmente os da Academia Nacional de Medicina (ANM), que a êle foi negado o prêmio Nobel.
Posteriormente, fica-se sabendo que a informação contida neste parágrafo fundador foi transmitida pelo Prof. Rodolf Talice, pesquisador uruguaio, a Sierra Iglesias, o qual relatou este fato a João Carlos Pinto Dias e a José Rodrigues Coura. Na época, como Talice havia falecido há alguns meses não foi possível ampliar esta informação.
Várias publicações aparecem inicialmente em 1999 denominado “Ano de Carlos Chagas” pela Organização Mundial da Saúde e por outras instituições mundiais em comemoração aos 90 anos decorridos desde a descoberta da tripanosomíase americana. Academia Mineira de Medicina associou-se a estas comemorações com várias atividades sendo uma delas a publicação de um livro sobre Carlos Chagas onde existe uma coletânea de artigos a respeito da sua vida e obra. Posteriormente, Lewinsohn em seu livro “Três Epidemias: Lições do Passado”, no qual a doença de Chagas é uma delas, apresenta um capítulo sobre o assunto “Carlos Chagas e o Prêmio Nobel”.
É necessário registrar que estes artigos seguem sempre a mesma linha de argumentação e o que seria inicialmente evidências, com o tempo vão se transformando em afirmações, fazendo a versão virar história.
Recentemente, a Fundação Nobel publicou em seu site informações sobre os prêmios Nobel concebidos de 1901 a 1951. Destaque-se que por 50 anos todas as informações a respeito da escolha dos candidatos ao prêmio, nomeadores e nomeados eram mantidos em sigilo. Agora, com os dados tornados públicos, é possível aventar hipóteses diferentes para tentar entender porque Carlos Chagas não recebeu o prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1921.
Deve-se inicialmente salientar que houve uma intensa polêmica na Academia Nacional de Medicina iniciada em novembro de 1922 indo até o ano seguinte, quando o relatório final apresentado na reunião extraordinária de seis de dezembro de 1923 foi favorável a Carlos Chagas. Se a Fundação Nobel (ou Instituto Karolinska, responsável pela indicação dos membros que julgam o prêmio, escolhido pelo próprio Nobel para esta finalidade) tivesse enviado pedido de esclarecimento, este deveria ter sido encaminhado em 1921. Consultadas as atas da ANM daquele ano nada se encontra referente a isto. Por outro lado, a consulta à Academia, se feita, deveria ter sido encaminhada ao presidente da mesma, que na ocasião era Miguel Couto, grande admirador de Carlos Chagas. É verdade, que especialmente três membros da ANM, Afrânio Peixoto, Figueiredo de Vasconcellos e Parreiras Horta, estavam em forte disputa com Chagas, seja negando a importância da doença ou mesmo a autoria única da descoberta. Contudo, a Academia reconheceu que Chagas estava certo e que era o único descobridor da tripanosomíase americana. Assim não há nem na ANM, nem na minuciosa descrição de Carlos Chagas Filho sobre a vida de seu pai nenhuma menção a esta consulta do instituto sueco.
Afirmam os autores citados que embora não houvesse outros indicados, e Chagas ter sido o único indicado, devido à polêmica (ou melhor, às opiniões contrárias) não houve a concessão do prêmio naquele ano. Consultando as informações contidas no site da Fundação Nobel, referentes ao ano de 1921, pode ser visto que foram 82 os que indicaram (nominator) e 42 os indicados (nominee). Carlos Chagas é o 46º nesta lista, tendo sido indicado apenas uma vez, por Hilário de Gouvêa um oftalmologista mineiro, exercendo sua profissão no Rio de Janeiro. Na ficha da Fundação Nobel consta como otorrinolaringologista, pois na época as duas especialidades eram colocadas juntas na Sociedade de Otorrinolaringologia. Hilário de Gouvêa foi convidado pela Fundação Nobel para indicação de candidato. Neste mesmo ano, o cirurgião brasileiro C. S. de Magalhães, também nomeador oficial, indicou Patrick Manson para receber o prêmio. Dos 42 indicados havia nomes expressivos como Gley (11 indicações), Roux (10 vezes), Sherrington (7 vezes), Duret (7 vezes) e mais 24 nomeados com uma única indicação, assim como Chagas. Todavia, a comissão do Prêmio Nobel de Medicina resolveu não conceder o prêmio naquele ano. Deve-se adicionar que não foi apenas em 1921 que o prêmio não foi concedido na categoria Medicina, este fato se repetiu em 1915, 1916, 1917, 1918, 1925, 1940, 1941 e 1942 por razões desconhecidas.
A pergunta importante a ser feita é porque Chagas não foi indicado por mais ninguém em 1921?
Sabe-se que houve a indicação de seu nome em 1913 por Pirajá da Silva, o descobridor da esquistossomose mansoni no Brasil, ano em que Charles Richet foi o ganhador do prêmio pelos trabalhos em anafilaxia. Nesse ano foram indicados 63 candidatos por 118 nomeadores, e também nesta época Carlos Chagas teve uma única indicação. Para Lewinsohn, a candidatura de 1913 não estava ainda madura. Esta afirmação parece não coadunar com o reconhecimento prestado a Carlos Chagas ao receber em 1912, o Prêmio Schaudinn na Alemanha. Este era prêmio concedido a cada quatro anos pelo Instituto de Moléstias Tropicais de Hamburgo a um cientista de qualquer nacionalidade, autor da mais importante descoberta científica no campo da protozoologia. Entre as várias personalidades que compunham a comissão do prêmio estavam Koch, Von Hertwig, Buetschli, Manson, Ross, Blanchard, Roux, Metchnikoff e Oswaldo Cruz, para citar apenas alguns dos representantes dos pesquisadores da Alemanha, França, Inglaterra, Japão, Itália, Austrália, Portugal, Rússia, Estados Unidos e Brasil.
Para Pitella que, como nós, utilizou os dados dos arquivos da Nobel Foundation disponibilizados na internet, as ligações dos membros do Instituto Karolinska e do Comitê Nobel com a comunidade científica internacional, principalmente com cientistas norte-americanos e europeus, explicam como são selecionados os nomeadores, nomeados e os premiados. De fato, para os Estados Unidos da América foram, de 1901 a 1951, selecionados 732 nomeadores, indicados 1132 e premiados 14; para a Alemanha 763, 914 e 9, respectivamente e com números semelhantes para a Inglaterra, 256, 464 e 9 premiados.
Foram, portanto, duas as indicações de Carlos Chagas feitas por dois brasileiros com oito anos de intervalo entre elas. A título de informação Robert Koch foi indicado 45 vezes, desde 1901 até receber o prêmio em 1905; Metchnikoff 56 vezes e Ehrlich 58 vezes, para citar apenas alguns exemplos. Por outro lado, registre-se que a escolha do prêmio Nobel não é baseada na contagem de votos que os indicados recebem, embora isto deva ter importância. Outros indicados, por exemplo, receberam o prêmio com apenas um voto (Carrel) ou dois ou três (Banting, Macleod e Meyerhof).
Baseado nos dados por nós coletados, concordamos com a afirmação de Pitella que a responsabilização da polêmica sobre a doença de Chagas e a culpabilização dos médicos brasileiros pela não indicação de Chagas parece ser puramente especulativa, sem nenhuma prova concreta.
De fato, a não concessão do prêmio Nobel a Carlos Chagas, um dos nossos maiores cientistas de todos os tempos, é muito mais pela não indicação de seu nome pelas dezenas dos nomeadores em todo o mundo do que por culpa dos médicos brasileiros que questionaram a sua descoberta. Aliás, a falta de reconhecimento das contribuições científicas importantes feitas por brasileiros pelos colegas de outras nacionalidades, especialmente pelos países ditos do primeiro mundo, é um fato a ser discutido. Tal aconteceu por exemplo com Pirajá da Silva o descobridor da esquistossomose no Brasil. As relações de credibilidade e respeito entre os pesquisadores dos países centrais e os dos periféricos, merecem ser mais bem estudadas. Talvez aí residam explicações esclarecedoras (Figura 1, 2, 3 e 4).
Figura 1: Charge publicada na Careta.
Figura 2 : Charge publicada na D. Quixote.
Figura 3: Visita de Einstein.