Drogas tripanossomicidas
Estudos pré-clínicos da doença de Chagas
Solange L de Castro & Maria de Nazaré C. Soeiro
Laboratório de Biologia Celular, Instituto Oswaldo Cruz, FIOCRUZ
solange@ioc.fiocruz.br; soeiro@ioc.fiocruz.br
1. Doença de Chagas
A doença de Chagas, causada pelo Trypanosoma cruzi, foi descoberta em 1909 pelo médico brasileiro Carlos Chagas (1879-1934) (Andrade et al., 2011; Dias, 2015). A estimativa de prevalência global desta doença era de 7 milhões de pessoas em 1960, 16-18 milhões em 1990, 9.8 milhões em 2006 e 5-7 milhões em 2010 (Schofield et al., 2006; PAHO, 2010; WHO, 2015). A drástica queda na sua prevalência observada de 1990 a 2010 foi essencialmente consequencia do desenvolvimentos de programas transnacionais na América Latina focados na eliminação de vetores domésticos e triagem de doadores de sangue: Iniciativa do Cone Sul, Iniciativa dos Países Andinos, Iniciativa da América Central e México e a Iniciativa de Países Amazônicos, todos com suporte da Organização Pan-Americana de Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) (Schofield et al., 2006; Guhl, 2007; Dias, 2009; Moncayo & Silveira, 2009).
A doença de Chagas é transmitida para humanos por vetores triatomíneos, transfusão de sangue infectado, transmissão oral e congênita e menos comumente por transmissão direta de reservatórios de T. cruzi, ingestão de carne mal-cozida de animais infectados, transplante de orgãos e acidentes de laboratório (Deane et al. 1984; Steindel et al., 2008; Altclas et al., 2008; Dias & Amato-Neto, 2011). Como o sucesso dos programas de controle vetorial e de bancos de sangue, transmissões congênita (Gebrekristos & Buekens, 2014; Carlier et al., 2015; Álvarez et al., 2017) e oral (Alarcón-de- Noya et al., 2010; Shikanai-Yasuda & Carvalho, 2012; Goés-Costa et al., 2017; Silva-dos-Santos et al., 2017) se transformaram em fontes importantes de novos casos da doença de Chagas. Esta doença, classicamente associada com populações pobres e rurais, sofreu um processo de urbanização nos anos 70 e 80. A dispersão para a América do Norte, Europa, Ásia e Austrália foi crescendo continuamente, criando novos desafios epidemiológicos, econômicos, sociais e políticos (Schmunis, 2007; Schmunis & Yadon, 2010; Jackson et al., 2014). Análise da prevalência de doença de Chagas em imigrantes da América Latina revelou uma taxa de infecção de 4,2% na Europa até 2004, com uma grande heterogeniedade a depender do país de origem (Requena-Méndez et al., 2015, 2017).
Em países não endêmicos, a transmissão da doença de Chagas está associada com a via congênita, transfusão de sangue e transplante de orgãos (Bern et al., 2011; Rodriguez-Guardado et al., 2015; Antinori et al., 2017). Nos Estados Unidos da América (EUA) aplicando a soroprevalência reportada pela OPAS (2006) e assumindo uma taxa de transmissão por grávidas infectadas 1-5%, Bern & Montgomery (2009) estimaram 300.000 pessoas infectadas e 63-316 casos congênitos de infecção por T. cruzi/ano. Recentemente atualização desta estimativa revelou um decréscimo de cerca de 20% no número de infecções, sendo que não foram inclusos imigrantes sem documentação, o que pode levar a cerca de 109.000 casos adicionais (Manne-Goehler et al., 2016). O CDC (Centers for Disease Control and Prevention) classificou a doença de Chagas como uma das cinco doenças parasitárias negligenciadas nos EUA (CDC, 2015). Na Europa vivem aproximadamente 3,5 milhões de latinoamericanos, com uma estimativa de 90.000 indivíduos infectados, estando aproxidamente 50.000 destes na Espanha (WHO, 2010; Gascon et al., 2010; Antinori et al., 2017; Monge-Maillo et al., 2017).
2. Nifurtimox e benznidazol
O tratamento etiológico para a doença de Chagas está restrito a duas drogras nitroheterocíclicas introduzidas nos anos 60-70: benznidazol (Bz, LAFEPE e Abarax/ELEA) e nifurtimox (Nif, LAMPIT/Bayer) (Fig. 1). Bz foi produzido até 2003 pela Roche (Rochagan® e Radanil®), quando sua manufatura foi transferida para uma companhia farmacêutica ligada ao governo brasileiro, o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe). O medicamento foi preparado com o princípio ativo doado pela Roche até 2011, quando sua produção foi interrompida em decorrência da não aprovação de Boas Práticas de Fabricação (Manne et al., 2012), sendo retomada após certificação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA, Brasil). Na Argentina, a produção foi iniciada pelo laboratório privado Elea (Abarax®), através de uma associação com o Ministério da Saúde e com a Organização Não Governamental Fundación Mundo Sano. Atualmente, a organização Médicos sem Fronteira (MSF) adquire um comprimido manufaturado pelo Lafep of US$ 0,21 USD enquanto a OPAS paga US$ 0,48 pelo produto da Elea (Pinheiro et al., 2017). Bz foi recentemente aprovado pelo FDA nos EUA (US Food and Drug Administration) para uso em crianças de 2 a 12 anos, sendo este o primeiro tratamento para doença de Chagas aprovado nos EUA (FDA, 2017). A produção de Nif (Bayer HealthCare) foi interrompida nos anos 80 devido a questões de demanda no Brasil, mas com os resultados de ensaios clínicos positivos para o tratamento da tripanosomíase africana humana (Alirol et al., 2013), sua produção foi retomada em 2000 na fábrica da Bayer em El Salvador (Ilopango Bayer). A combinação de Nif com eflornitina (NECT) como tratamento de primeira linha para o estágio CNS da infecção por T. brucei gambiense foi aprovada para uso clínico e incluída na Lista de Medicamentos Essenciais da OMS. Bayer, seu único produto, garantiu seu fornecimento até 2019 e está também desenvolvendo uma nova formulação visando um tratamento mais individualizado (Bayer HealthCare, 2017).
Figura 1: Medicamentos utilizadas no tratamento etiológico da doença de Chagas: (a) benznidazol; e (b) nifurtimox.
Os resultados obtidos com Nif e Bz variam de acordo com a fase da doença, o período e dose do tratamento, a idade e a origem geográfica dos (Coura & De Castro, 2002). As duas medicamentos apresentaram excelentes resultados com altas taxas de cura parasitológica durante a fase aguda, mas sua eficácia decai com o avanço da infecção, sendo desta forma crucial para seu sucesso, detecção e intervenção o mais cedo possível (Coura & Borges-Pereira, 2011). A alta incidência de efeitos colaterais, especialmente em adultos, levou ao abandono do tratamento em muitas situações (Pinazo et al., 2010; Jackson et al., 2010; Perez-Molina et al., 2012), enquanto crianças tem uma maior tolerância à medicação (WHO, 2002; Dias et al., 2016). Em estudo recente com Nif nos EUA revelou efeitos colaterais mais brandos, sendo na maioria dos casos controlados por redução na dosagem e/ou suspensão temporária da medicação (Forsyth et al., 2016).
O mecanismo de ação de Bz e Nif está ainda sendo discutido, apesar destes medicamentos estarem em uso clínico por mais de 5 decadas (DoCampo & Moreno, 1984; DoCampo, 1990; Maya et al., 2003; Sueth-Santiago et al., 2017). Ambas são consideradas promedicamentos que requerem ativação por nitroredutases: NTR-I, enzima oxigênio-insensível que cataliza a redução tipo 2 eletrons do grupo nitro, e NTR-II, oxigênio-sensível que cataliza a redução tipo um elétron (Peterson et al., 1979). A redução de Nif por NTR-II leva ao estresse oxidativo devido à transformação de um radical nitroanion, ciclo redox, geração de espécies reativas de oxigênio (ROS) e peroxidação de lipídeos (DoCampo & Stoppani, 1979; Moreno et al., 1984). Apesar na natureza nitroheterocíclica dos medicamentos, Bz é um 2-nitroimidazol com menor potencial de redução quando comparado com o groupo 5-nitrofurânico de Nif, levando assim a uma menor taxa de formação de radical nitroânion e de espécies reativas, permitindo assim uma melhor resposta de detoxificação pelo T. cruzi (DoCampo, 1990). A redução por NTR-I leva a um intermediário hidroxilamina, que sofre diferentes transformações: no caso de Nif, o grupo nitrofurano é transformado em uma nitrila de insaturada de cadeia aberta altamente reativa (Hall et al., 2011), enquanto que com Bz, duas reduções tipo um eletron consecutivas levam à um derivado dihidroxi-dihidroimidazol, que pode se decompor para glioxal, metabólito tóxico, que por sua vez pode reagir com o DNA do parasito (Hall & Wilkinson, 2012; Patterson & Wyllie, 2014).
3.Desenvolvimento de novos medicamentos
Podemos acompanhar o processo de desenvolvimento de dorgas alternativas para doença de Chagas em diferentes fases (Salomão et al., 2016): (i) primeira fase (1909-1970), durante a qual uma lista extensa de compostos foi submetida a ensaios pré-clínicos e clínicos, sendo o mecanismo de ação raramente investigado; penicilina, anfotericina B, puromicin, primaquina, a bisquinaldina Bay-7602, metronidazol, piperamida e nitrofuranos foram utilizados para o tratamento de paciente, sem sucesso evidente (Brener, 1979; De Castro, 1993); (ii) segunda fase (1970-2005), que se inicia com o uso clínico de Nif e Bz com alopurinol, cetoconazol, itraconazol e fluconazol e estudos focalizados no mecanismo de ação de uma ampla variedade de compostos, como derivados purínicos, nitroheterocíclicos e azóis (Brener, 1975; Coura, 1996; Urbina, 1999; Coura & De Castro, 2002); (iii) terceira fase (2005), que se inicia com a publicação do genoma de T. cruzi (El-Sayed et al., 2005), permitindo a geração de parasitos transgênicos expressando β-galactosidase (cepa Tulahuen lacZ) (Buckner et al., 1996), proteína tandem tomato fluorescente ou luciferase de vagalume (cepas Y luc e Brazil luc) para ensaios com parasitos íntegros (Hyland et al., 2008; Canavaci et al., 2010; Andriani et al., 2011); e (iv) quarta fase com o aumento do número de programas de desenvolvimento de medicamentos envolvendo uma rede de pesquisadores, organizações não-governamentais e companias farmacêuticas (Chatelain & Ioset, 2011; Jakobsen et al., 2011). Os avanços das tecnologias de triagem ressultaram em uma mudança de tragens baseadas no alvo para fenotípicas (Gilbert et al., 2011; Salomão et al., 2016), e o desenvolvimento de HTS, tecnologia high-throughput e HCS, high-content (Bettiol et al., 2009; Engel et al., 2010; Keenan et al., 2013; Peña et al., 2015; Alonso-Padilla et al., 2015) estão permitindo uma avaliação rápida de um grande número de bibliotecas de compostos (Ferreira et al., 2016). Além dissso, o desenvolvimento de T. cruzi bioluminescente permite a análise individual da infecção em camundongo vivo experimentalmente infectado (Hyland et al., 2008; Andriani et al., 2011; Calvet et al., 2014; Lewis et al., 2015; Francisco et al., 2015). Moraes & Franco (2016) avaliaram que as principais campanhas de HTS testaram mais de 2,5 milhões de compostos.
Atualmente, duas abordagens têm sido muito empregadas no desenvolvimento de fármacos para doenças negligenciadas: reposicionamento e combinação. Novos usos para medicamentos conhecidos constituem uma abordagem excelente uma vez que os perfis de segurança e farmacocinéticas já foram otimizados para uso humano e questões ligadas à manufatura e armazenamento já avalidados (Aubé, 2012; Kaiser et al., 2015). Nos últimos anos, o reposicionamento corresponde a 30% de produtos cmo medicamentos e vacinas aprovadas pelo FDA (Jin & Wong, 2014). Combinação entre medicamentos permite a redução de doses e de tempo de tratamento, além de reduzir efeitos colaterais e desenvolvimento de resistência nos parasitos. Estudos in vivo utilizando modelos de infecção murina aguda demostraram que a combinação de fármacos ou de candidatos, mesmo se não leva a uma cura parasitológica, pode reduzir a carga parasitária, taxa de mortalidade e lesões teciduais (Maldonado et al., 1993; Urbina et al., 1993a).
Um melhor conhecimento da bioquímica de T. cruzi e diversas abordagens pré-clínicas permitiram a identificação de alvos do parasito como, por exemplo: metabolismo de esteróis, DNA, cisteino protease, síntese de nucleotídeos e via de salvage de purinas, dihidofolato redutase, gliceraldeído-3-fosfato desidrogenase, glicose-6-fosfato desidrogenase e metabolismo de pirofosfato. Para revisões sobre alvos em T. cruzi, por favor, veja Bahia et al. (2014a), Duschak (2016), Rodriguez et al. (2016), Sanchez-Sanchez et al. (2016), Salomão et al. (2016), Menna-Barreto & De Castro (2017), Salomão & De Castro (2017), Sueth-Santiago et al. (2017), Field et al. (2017) e Sales-Junior et al. (2017). Com base na literatura recente, nos encontramos entre os compostos mais promissores em estudos pré-clínicos, compostos azólicos e não-azólicos atuando sobre C14α-esterol desmetilase (CYP51), derivados fenoxifenoxietilcianato atuando sobre esqualeno sintase (SQ), diferentes compostos especialmente tiazóis atuando sobre cisteino protease, ligantes de DNA e nitrocompostos, mais especificamente, nitrotriazóis.
3.1. C14α-esterol desmetilase (CYP51) inhibitors: Esta enzima citocromo P450 calisa a remoção do grupo metila em C14, levando ao acúmulo de 14α-metil esteróis. Como em fungos, haja vista que o T. cruzi requer ergosterol endógeno, enzimas do metabolismo de esterol vem sendo estudadas há mais de 20 anos como alvos potencias de novos fármacos (Urbina, 2009; Buckner & Urbina, 2012; Macedo-Silva et al., 2015; Bermudez et al., 2016). A maioria dos estudos sobre inibidores de CYP51 envolve o reposicionamento de azóis, originalmente desenvolvidos como antifúngicos (Lepsheva et al., 2007, 2008; Yu et al., 2015). Azol é uma classe de compostos heterocíclicos de nitrogênio; aqueles com 2, 3 e 4 átomos de N são denominados, respectivamente, imidazóis, triazóis e tetrazóis. Diferentes azóis mostraram atividade in vitro e in vivo sobre T. cruzi (Urbina, 2009; Lepsheva et al., 2011; Urbina & McKerrow, 2015).
Posaconazol (SCH56592, Noxafil, Schering-Plough) e ravuconazole (RAV, Eisai Co.) (Figs. 2a,b) têm um amplo espectro de atividade antifúngica e são de um modo geral bem tolerados por humanos (Morris et al., 2009; Peyton et al., 2015). Posaconazol apresentou uma inibição potente da síntese de ergosterol em T. cruzi, induzindo altas percentagens de cura parasitológica em modelos agudos e crônicos da infecção, mesmo no caso de cepas do parasito resistente a Bz e em animais imunosuprimidos (Urbina et al., 1998; Molina et al., 2000; Urbina, 2009). Posaconazol também foi utilizado no tratamento de paciente chagásico crônico com lupus eritematoso sistêmico, com PCR negativo 12 meses pós-tratamento, enquanto Bz induziu uma redução, porém não eliminação de parasitos circulantes (Pinazo et al., 2010). Ravuconazol levou a altos percentuais de cura parasitológica em animais em fase aguda, com exceção daqueles infectados com cepa Bz-resistente (ex. Colombiana) e em modelos crônicos (Urbina et al., 2003a), enquanto que em modelo canino agudo, apresentou apenas efeito supressivo (Diniz et al., 2010).
Figura 2: Inibidores azólicos de TcCYP51: (a) posaconazol; (b) E1224; (c) VNI (Lepesheva et al., 2010); (d) VFV (Lepesheva et al., 2015); (e) VT-1161 (Hoekstra et al., 2015).
Tanto posaconazol quanto E1224, um pró-medicamento de ravuconazol (DNDi, 2013) foram submetidos a estudos clíncios de fase II em pacientes crônicos, utilizando como parâmetro de sucesso de tratamento a negativação do PCR. Brevemente: (a) Chagasazol (NCT01162967, Espanha) após 40 semanas do tratamento com posaconazol levou a 10-20% de PCR negativo, enquanto o valor correspondente para Bz foi de 94% (Molina et al., 2014); (b) Stopchagas (NCT01377480, América Latina) avaliou posaconazol, Bz, sua combinação com pergentagens de PCR negativo de 10, 15,6, 86,7 e 82,1% para os grupos placebo, posaconazol, Bz, and posaconazol+Bz, respectivamente (Stopchagas, 2016; Morillo et al., 2017); e (c) ensaio E1224 (NCT01489228, Bolívia) após um ano de tratamento este composto levou a 8-31% de PCR negativo, enquanto Bz alcançou 81 % (Torrico et al., 2013; DNDi, 2013; Barreira et al., 2016). Segundo Urbina (2015), a falha no tratamento estaria relacionada a doses sub-ótimas de E1224 e aos esquemas de tratamento utilizados.
VNI, um β-fenil-imidazol contendo um grupo carboxamida (Fig. 2c), identificado a partir de uma coleção de azóis da companhia Novartis (Lepesheva et al., 2010), se mostrou ativo em modelos murinos de infecção aguda e crônica pela cepa Tulahuen (Villalta et al., 2013); porém, em animais imunosuprimidos com ciclofosfamida após infecção por cepas Y ou Colombiana, não foi alcançada cura parasitológica em esquemas de monoterapia (Soeiro et al., 2013). Em trabalho subsequente, VFV (Fig. 2d), um fluoro análogo de VNI demonstrou 100 % de eficácia em infecção experimental, com disponibilidade oral e farmacocinética favoráveis (Lepesheva et al., 2015).
Também, VT-1161, um fármaco do tipo 1-tetrazol (Fig. 2e) submetido a estudos de fase II como antifúngico, se mostrou ativo in vitro e in vivo sobre T. cruzi. VT-1161 foi caracterizado estruturalmente em um complexo com TcCYP51, permitindo a otimização de nosvos análogo tratrazólicos com propriedades farmacocinéticas boas e um excelente perfil de segurança (Hoekstra et al., 2015).
Além disso, uma investigação comparativa recente de dois inibidores de CYP51 específicos para protozoários, VNI e seu derivado VFV, em its derivative VFV, em modelos murinos infectados com a cepa Y de T. cruzi mostraram que diferentes regimes de tratamento e veículos, assim como o sexo do animal podem, a depender do composto, causar um grande impacto em relação à cura (Guedes-da-Silva et al., 2017).
O desenho racional de inibidores de CYP51 representa uma estratégia promissora para agentes anti-T.cruzi através de diferentes abordagens (docking molecular, correlações estrutura-atividade, ensaios de inibição de CYP51, e ensaios fenotípicos in vitro e in vivo). A potência e seletividade de novos inibidores de CYP51, do tipo pirazolo[3,4-e][1,4]tiazepina foram investigados sendo ativos in vitro sobre parasitas intracelulares (Tulahuen strain) e formas sanguíneas (Y strain) (Fiuza et al., 2018). In vivo, o composto reduziu em 43 % o pico de parasitemia, mas não levou à sobrevivência dos animais. Nossos resultados mostraram que cinco novos análogos foram ativos sobre formas intracelulares, em especial dois compostos com índices de seletividade (SI) superiores a 36, apresentando um destes atividade sobre formas tripomastigotas semelhante à de Bz. Estes resultados encorajam a síntese de novos derivados pirazolo[3,4-e][1,4]tiazepínicos na busca de terapias alternativas para a doença de Chagas.
3.2. Inibidores de esqualeno sintase (SQS): Esta enzima cataliza a primeira etapa da reação em duas etapas de dimerização redutiva entre duas moléculas de farnesil difosfato (FPP) para dar origem a uma molécula de esqualeno (Macedo-Silva et al., 2015). Inibidores de esqualeno sintase foram originalmente desenvolvidos para tratamento de hipercolesterolemia (Charlton-Menys & Durrington, 2007; Do et al., 2009). A atividade de uma variedade de compostos, incluindo bisfosfonatos, benzilaminas, e quinuclidinas, sobre enzimas de mamíferos foi também investigada. 4-Fenoxifenoxietiltiocianato (WC-9) (Fig. 3a) é um potente inibidor da proliferação de formas amastigotas intracelulares de T. cruzi (Cinque et al., 1998; Liñares et al., 2006; Rodriguez et al., 2016a,b) agindo como um competidor não-competitivo da TcSQS na faixa do nanomolar (Urbina et al., 2003b AAC). Análogos de WC-9 foram desenhados e avaliados sobre formas intracelulares de T. cruzi, sendo que dois derivados fluorados (3-(3-fluorofenoxi)- and 3-(4-fluorofenoxi)fenoxietil tiocianato) se destacaram apresentando atividade similar ao composto líder (Figs. 3b,c) (Chao et al., 2016). Além disso, análogos de Selênio isostéricos a WC-9 foram sintetizados (Fig. 3d) mostrando atividade sobre formas intracelulares no nível do nanomolar e com valores de índice de seletividade (SI) superiores a 900, indicando que a substituição de um grupamento tiocianato por um selenocianato levou a compostos tripanocidas muito potentes compounds (Chao et al., 2017).
Figura 3: Inibidores da esqualeno sintase: (a) WC-9 (Cinque et al., 1998); (b,c) fluoro-análogos de WC-9 (Chao et al., 2016); (d) seleno análogo de (Chao et al., 2017)
3.3. Inibidores de cisteino protease
Cruzaína (cruzipaina ou gp51/57) é uma protease tipo cathepsin-L da família da papína em T. cruzi, envolvida na atividade proteolítica em todos os estágios do ciclo de vida do parasito, sendo também essencial na diferenciação e replicação intracelulares (McKerrow et al., 2009; Cazzulo et al., 2001; Doyle et al., 2011; Ferreira & Andricopulo, 2017). Tendo como base a natureza de interação com o sítio ativo da cruzaína, inibidores enzimáticos foram classificados como irreversível, formando ligação covalente com o enxofre da cistéina, e reversível, formando adutos do tipo 1,2 com este aminoácidom que são de um modo geral instáveis (Nicoll-Griffith, 2012).
Diferentes classes de inibidores irreversíveis da cruzaína foram estudados, como diazometil cetonas, alil sulfonas, vinil sufonamidas e vinil sulfonas (McKerrow, 1999; Sajid & McKerrow, 2002; Gonzalez et al., 2007; Jaishankar et al., 2008; Kerr et al., 2009; Chen et al., 2008; Fennell et al., 2013). A vinil sulfona K777 (Fig. 4a) se mostrou ativa in vitro sobre cepas de T. cruzi resistentes a Nif e Bz e também in vivo em modelos de camundongo e cão (Engel et al., 1998; Doyle et al., 2007; Barr et al., 2005; McKerrow et al., 2009). O análogo arginina de K777, composto WRR-483 (Fig. 4b) se liga fracamente à cruzaína mas é efetivo in vivo (Chen et al., 2010). O desenvolvimento de K777 pelo Institute for One World Health (iOWH) foi interrompido em 2005 devido a “hepatotoxicidade e problemas de manufatura” (Sajid et al., 2011; Steverding, 2015; Branquinha et al., 2015). A seguir, o Sandler Center (Universidade da Califórnia), em associação com o National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIAID), conduziram estudos de segurança, e em 2009, DNDi se juntou para obter fundos visando complementar a análise de K777 (McKerrow et al., 2009; Sajid et al., 2011). Em 2013, o Comitê Científico do DNDi recomendou a interrupção desde projeto devido a problemas de tolerabilidade em baixas doses em primata e em cães (DNDi, 2014).
Figura 4: Inibidores irreversívei sde cruzaína: (a) K777 (Engel et al., 1998); (b) WRR-483 (Chen et al., 2010)
Uma grande variedade de classes de compostos apresentou atividade anti-T. cruzi envolvendo inibição de cruzaína, tais como aril uréias (Du et al., 2002), purino nitrilas (Mott et al., 2010), dipeptidil nitrilas (Avelar et al., 2015), nitrilas análogas de odanacatib (Beaulieu et al., 2010; Burtoloso et al., 2017); tiosemicarbazonas (Caputto et al., 2011; Espíndola et al., 2015; Costa et al., 2016), tiazolidinonas (Leite et al, 2007; Santos-Filho et al., 2012; Oliveira-Filho et al., 2015), e tiazóis (Cardoso et al., 2014; Gomes et al., 2016; Silva et al., 2017; Oliveira-Filho et al., 2017). Para revisões recentes sobre cruzaína com alvo de medicamentos, ver Martinez-Mayorga et al. (2015) e Ferreira & Andricopulo (2017).
3.4. Ligantes de DNA
Diamidinas aromáticas clássicas se ligam de forma não covalente e não intercalante à fenda menor do DNA, e várias hipóteses sobre seu modo de ação foram propostas. Elas podem atuam pela complexação com DNA levando subsequentemente a uma inibição seletiva de enzimas dependentes de DNA e/ou atrvés da inibição direta da transcrição (revisto em Tidwell & Boykin 2003 e Wilson et al. 2005). Evidências indicam que diamidinas interferem na função do cinetoplasto em tripanosomatídeos através de uma associação seletiva de regiões ricas em AT frequentes em minicírculos de kDNA, talvez envolvendo enzimas de processamento de DNA (revisto em Werbovetz, 2006). Outros mecanismos de ação contra tripanosomatídeos propostos incluem inibição de proteases, topoisomerases, polimerases, proteína quinase A e síntese de fosfolipídeos (revisto em Soeiro et al., 2005). Além disso, estudos termodinâmicos demonstraram que apesar de alguns análogos de diamidinas aromáticas, tais como amidinas reversas ou arilimidamidas, serem fracos ligantes de DNA, eles são capazes de induzir alterações profundas na topologia do kDNA de T. cruzi e em outras sequências de DNA, impossibilitando sua funcionalidade (Daliry et al., 2011).
Visando superar as limitações do uso de diamidas aromáticas na clínica médica e veterinária, a busca de novos dications aromáticos tem sido bastante investigada, incluindo a síntese de pró-medicamentos, que são convertidos à diamindas aromáticas por enzimas que os metabolizam (revisto em Wilson et al., 2005). A parafuramidina (DB289), pró-medicamento de furamidina (DB75) foi submetida a ensaios clínicos contra tripanossomíase africana humana (revisto em Bouteille et al., 2003 e Soeiro et al., 2005; Mathis et al., 2006). A farmacocinética de DB289 foi investigada em ratos e em macacos cinomolgos (Macaca fascicularis) mostrando que doses orais eram bem absorvidas e convertidas em seu metabólito ativo DB75, e também que a pró-medicamento não apresentava alta toxicidade, apontando para seu uso potencial para o tratamento de infecções parasitárias (Midgley et al. 2007). Infelizmente, os ensaios clínicos utilizando esta parafuramidina foram interrompidos devido à toxicidade hepática e renal (Soeiro et al., 2013).
DB75 e seu análogo N-fenil substituído DB569 foram ativos sobre T. cruzi, sendo o análogo foi mais ativo sobre diferentes cepas e estágios evolutivos do parasito, com valores inibitórios na faixa do baixo micromolecular (De Souza et al., 2004). DB569 também foi capaz de aumentar as taxas de sobrevida e reduzir o parasitismo cardíaco, revertendo alterações eletrocardiográfica e reduzindo significantemente o número de células T CD8+ na inflamação cardíaca em camundongos durante as infecções aguda e crônica (De Souza et al., 2006a, 2007). DB75 e DB569 induziram morte celular tipo apoptose em tripomastigotas de T. cruzi, apresentando o segundo composto uma maior capacidade de induzir este fenômeno (De Souza et al., 2006b). Outra estratégia para o desenvolvimento de análogos é a introdução de variações estruturais nos centros catiônicos das diamidinas (Stephens et al., 2001), levando à síntese de amidinas reversas, nas quais o grupo imino está ligado ao nitrogênio tipo anilínico e não diretamente ao anel arila. Estes compostos se mostraram ativos sobre T. cruzi e L. donovani (Stephens et al. 2003). Quatro amidinas reversas, também denominadas arilimidamidas, DB702, DB786, DB811 e DB889, e uma diguanidina intimamente relacionada (DB711) apresentaram alta atividade, na faixa do baixo micromolar, sobre tripomastigotas sanguíneos e amastigotas intracelulares mesmo após tratamento por apenas 2 h, e as principais alterações ultraestuturais nas duas formas do parasito foram no núcleo e na mitocôndria (Silva et al. 2007a,b).
Em relação a análise de novas arilimidamidas (AIAs,) ensaios pré-clínicos com diferentes cepas de T. cruzi in vitro e in vivo demonstraram a promissora potência de m-terfenil bis-AIA 35DAP073, que em comparação com Bz, se mostrou 26X e 100X mais efetiva sobre tripomastigotas (cepa Y) e amastigotas intracelulares (cepa Tulahuen), respectivamente. Esta AIA também foi ativa sobre a cepa Colombiana. O efeito tripanocida não foi associado à biogênese de corpúsculos liídicos na célula hospedeira, investigada pela marcação com oil red. Tanto AIAs ativas (35DAP073) e inativas inactive (26SMB060) apresentaram perfis similares de ativação. Devido aos altos valores do SI, duas AIAS (35DAP073 e 35DAP081) foram selecionadas para análise in vivo, porém o ensaio de toxicidade aguda levou à exclusão de 35DAP081. Ensaios com 35DAP073 de camundongos infectados com a cepa Y na fase aguda, revelaram que tratamento por dois dias levou a uma redução de 46-96% da parasitemia. Porém dez doses diárias, utilizando a cepa Colombiana, resultou em toxicidade para os animais, impedindo tratamentos por períodos mais longos. A terapia combinada de 35DAP073 (0,5 mg/kg) com Bz (100 mg/kg) por 10 dias resultou em uma maior supressão da parasitemia e 100% de sobrevida dos animais. PCR quantitativa (qPCR) mostrou uma considerável redução na carga parasitária quanfo comparada com a monoterapia com Bz ou com AIA (Guedes-da-Silva et al., 2016).
3.5. Nitroheterocíclicos
Nitrocompostos são geralmente evitados em programas de química medicinal devido à presença do grupamento nitro que gera preocupação quanto a questões de toxicidade associadas a alterações de DNA, mas ao mesmo tempo, este grupamento funcional está frequentemente relacionado à desejada atividade biológica (Walsh & Miwa, 2011; Patterson & Wyllie, 2014; Keenan & Chaplin, 2015; Francisco et al., 2016). Em relação à doença de Chagas, fexinidazol (Fig. 5a) foi avaliado em modelos murinos de infecção aguda e crônica, levando à altas taxas de cura e a redução da miocardite (Bahia et al., 2012, 2014a; Caldas et al., 2014). Utilizando a técnica de bioluminescência, em animais infectados com a cepa CL Brener de T. cruzi (CL Brener) (Lewis et al., 2014) foi observado que fexinidazol e fexinidazol sulfona (Fig. 5b) se mostraram mais eficazes que Bz e Nif, considerando curados os animais com bioluminescência negativa após imunossupressão com ciclofosfamida (Francisco et al., 2016). Um ensaio clínico de fase II foi realizado na Bolívia (NCT02498782) com pacientes crônicos, porém após recrutamento de 47 participantes, surgiram questões quanto à segurança e tolerabilidade, e foi decido se concluir o ensaio sem inclusão de novos pacientes, sendo observado uma alta taxa de eficácia (DNDi, 2016; Barreira & Blum, 2018). Um novo estudo de prova de concentio foi desenhando e será desenvolvido em 4 locais na Espanha com recrutmento de pacientes planejado para 2017 (DNDi, 2017).
Figura 5: Nitrocompostos ativos sobre T. cruzi: (a) fexinidazol (Bahia et al., 2012); (b) fexinidazol sulfona (Francisco et al., 2016).
3-Nitro-1H-1,2,4-triazólicos dos grupos das aminas aromáticas e alifáticas, piperazinas, piperazidas, aminas e sulfonamidase foram ensaiadas por Papadopoulou e colaboradores. Muitos destes 3-nitrotriazóis apresentaram ativiade sobre amastigotas intracelulares no nível do nanomolar e com SI > 200, enquanto que a remoção do grupo nitro levou a compostos inativos. A atividade tripanocidas dos 3-nitrotriazóis foi associada em parte à ativação de uma NTR-I (Papadopoulou et al., 2011, 2012, 2013a,b, 2014, 2015a-c, 2016a, 2017a). Alguns destes compostos foram desenhados como agentes bifuncionais visando serem substratos de NTR-I e inibidores reversívels de CYP51 apresentaram alta atividade in vitro e in vivo sobre T. cruzi (Papadopoulou et al., 2015a,b). Por técnica de live imaging, os 3-nitrotriazóis que apresentaram maior atividade foram uma amida (Fig. 6a) e uma tiofeno sulfonamida (Fig. 6b) levando à ausência de sinal do parasito (Papadopoulou et al., 2013b). Em outro modelo murinho infectado com a cepa Y, cinco compostos foram ressaltados esta tiofeno sulfonamida (substrato de NTR-I mas não inibidor de CYP51), uma amida (Fig. 6c) (substrato de NTR-I e inibidor fraco de CYP51) e três ariloxifenilamidas (Fig. 6d-f) (substratos de NTR-I e inibidores de CYP51) com alta atividade in vitro e baixa toxicidade para a célula hospedeira (Papadopoulou et al., 2013b, 2014, 2015a,b) foram testados utilizando um tempo longo de tratamento. Estes 3-nitrotiraóis levaram à supressão da parasitemia, 100% de sobrevida e ausência de inflamação do miocárdio em um número menos de doses do que Bz (Papadopoulou et al., 2017b).
Figura 6: Derivados 3-nitrotriazólicos ativos sobre T. cruzi: (a) amida (Papadopoulou et al., 2013b), (b) tiofeno sulfonamida (Papadopoulou et al., 2013b); (c) amida (Papadopoulou et al., 2013b) ; (d-f) ariloxifenilamidas (Papadopoulou et al., 2014, 2015a, 2017b).
4. Conclusões & desafios
O desenvolvimento de novos medicamentos requer a interação das disciplinas de biologia molecular e cellular, química, bioquímica, farmacologia e toxicologia. O advento da genômica, sequenciamento rápido de DNA, bioinformática, e triagens automatizadas de alta vazão fortaleceram a interação entre grupos de diferentes expertises de modo a se buscar compost com alta eficácia, incluidno aqueles que podem ser administrados em pacientes imunossuprimidos, com ausência ou baixa toxicidade e curstos reduzidos de produção.
Em relação a falta de translação entre ensaios pré-clínicos e e clínicos, a literatura aponta claramente para a necessidade de protocolos mais factíveis e padronizados em modelos animais. Um estudo recente foi realizado sobre o tratamento com Bz e com VNI, potente inhibidor da CYP51A, em modelos de camundongo utilizando ambos os sexos, diferentes cepas do parasito e esquemas terapêuticos (Guedes-da-Silva et al., 2016). Os resultados obtidos corrobraram dados prévios da literatura mostrando que fêmeas são menos vulneráveis à infecção que machos no tratamento tanto com Bz e VNI, sugerindo que modelos com animais machos são mais adequados. Além disso, protocolos preventivos zi (compostos administrados 1 dia pós-infecção) podem resultar em sucesso de tratamento não confiável pois a infecção não estaria espalhada em diferentes tecidos e órgãos, e assim tais protocolos deveriam se evitados em triagens in vivo. Uma outra consideração é a relevância de métodos de imunosupressão e modo a verificar o perfil terapêutico de novos compostos, além da utilidade de técnicas de diagnóstico molecular (PCR quantitativo) para verificar a eficácia em animais experimentais (Guedes-da-Silva et al., 2016).
Em uma revisão da literatura em 2002, mencionamos que “…. Um medicamento ideal ainda não existe e possivelmente passará um longo tempo até ser obtido” (Coura & De Castro, 2002). Como citado por Moraes & Franco em 2016, milhões de compostos foram ensaios em campanhas HTS. Infelizmente, apesar dos grandes avanços na tecnologia e no conhecimento sobre T. cruzi e desenvolvimento da infecção, o quadro persiste sombrio, e em um futuro próximo, observamos três promissores caminhos: novos esquemas dos antigos medicamentos que venham a reduzir as doses e o tempo de tratamento, o uso de combinações de Bz ou Nif (como por exemplo com inibidores de CYP51), como é a prioridade de estudo em desenvolvimento pelo DNDi (DNDi, 2015; Barreira et al., 2016; Barreira & Blum, 2018), e o reposicionamento de medicamentos. Como reportado por Araújo-Lima et al. (2018), as atividade e seletividade de estatinas, como atorvastatina (AVA) sobre T. cruzi em modelos in vitro de terapia combinada com Bz mostrou uma interação sinérgica entre as duas medicamentos sobre formas tripomastgotas e amastigotas intracelulares. Também, outro estudo recente, utilizando protocolo de proporção fixa de Bz com metronidazole (Mtz), um nitroimidazólico commercial de amplo espectro antimicrobiano e com um razoável perfil de segurança, mostrou in vivo que tal combinação (Bz 10+Mtz 250) impedia em 70% a mortalidade dos animais, além de protecer de alterações cardíacas elétrica disparadas pela (Simões-Silva et al., 2017). O conjunto destes estudos enfatiza a importância do reposicionamento de medicamentos e do tratamento combinado visando terapitas alternativas para esta pathologia negligenciada e silenciosa.
Histórico
A história da terapêutica da doença de Chagas
José Rodrigues Coura
Laboratório de Doenças Parasitárias, Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz
E-mail: coura@ioc.fiocruz.br
Joaquim Romeu Cançado
Universidade Federal de Minas Gerais e Fundação Carlos Chagas
A história da terapêutica específica da doença de Chagas pode ser dividida em três períodos: (i) da descoberta da doença, em abril de 1909, até a morte de Carlos Chagas, em novembro de 1934, e logo depois em 1935 o lançamento do “Manual de Doenças Tropicais e Infectuosas” por Evandro Chagas, em nome do seu pai e dele próprio como autores, onde dizem: “Medicamentos trypanosomicidas têm sido experimentados sem qualquer êxito”; (ii) de 1936 e 1960, quando numerosas drogas foram experimentadas empiricamente com resultados controversos; e (iii) a partir de 1961, quando Zigman Brener demonstrou claramente a atividade da nitrofurazona em esquemas de duração prolongada na cura da infecção experimental de camundongos pelo Trypanosoma cruzi.
O capítulo sobre Trypanosomíase Americana do Manual de Doenças Tropicais e Infectuosas de autoria de Carlos Chagas e Evandro Chagas, publicado em 1935, em suas 36 páginas, dedica apenas um parágrafo com seis linhas ao tópico tratamento, onde diz: “Não existe, até o presente momento, tratamento específico para a trypanosomíase americana. Medicamentos de ações trypanomicida têm sido experimentados por numerosos pesquisadores sem qualquer exito. Algumas síndromes clínicas podem experimentar ação therapeutica symptomática, realizada de acordo com suas manifestações e evolução”. Embora falem de “medicamento de ação typanosomicida têm sido experimentados por numerosos pesquisadores” não citam referências a trabalhos publicados sobre os mencionados medicamentos. Possivelmente como os resultados foram negativos, os pesquisadores, como de costume na época, não quiseram publicá-los.
Em excelente revisão feita por Brener em 1968 no capítulo sobre “Terapêutica experimental da doença de Chagas”, na mais completa obra sobre a doença até então publicada, o livro sobre Doença de Chagas, organizado por Cançado, com a colaboração dos maiores especialistas brasileiros da época sobre a doença, apenas dois trabalhos haviam sido publicados sobre terapêutica experimental da doença de Chagas até 1935, o trabalho de Mayer e Rocha Lima de 1912 sobre Atoxil (arsemical), fucsina (um corante da rosanilina) e tártaro emético (antinomial pentavalente) e dos mesmos autores em 1914 sobre cloreto de mercúrio, ambos sem resultados favoráveis. Na minuciosa revisão de 1968 Brener menciona 23 outros quimioterápicos e mais de 30 antibióticos utilizados de 1936 a 1962, dos quais apenas os seguintes tiveram algum efeito supressivo sobre a infecção pelo Trypanosoma cruzi: a bisquinaldina “Bayer 7602”, fenantridinas, 8-aminoquinoleínas, arsenicais trivalentes (Bayer 9736) e Spyrotrypan, “acromicina” ou “stilomcina”, nitrofuranos e o “Flagyl” (acetamida-5nitrotiazol Imidazol) e, particularmente, os nitrofuramos os quais discutiremos depois.
Em uma análise sobre as tentativas terapêuticas da doença de Chagas nos 50 anos desde a sua descoberta (1909-1959), Cançado, no seu livro publicado em 1968, diz “a revisão da literatura sobre o tratamento da doença de Chagas revela de imediato extrema pobreza” e em seguida apresenta os seguintes números que confirmam a sua assertiva: de 96 trabalhos apresentados ao Congresso Internacional sobre a Doença de Chagas, realizados no Rio de Janeiro em julho de 1959, somente quatro se referem à terapêutica da doença e destes apenas um à terapêutica clínica, e acrescenta, de 1.369 trabalhos sobre doença de Chagas identificados pelo Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação (IBBD), no mesmo período (1909-1959), havia somente 69 sobre tratamento, sendo 43 de terapêutica experimental e 26 de terapêutica clínica. Finalmente menciona o fato que sempre impressionou a todos nós que trabalhamos com a doença de Chagas: nenhum dos 64 trabalhos de Carlos Chagas citados pelo IBBD se dedica ao tratamento da doença. Certamente Carlos Chagas e/ou seus colaboradores devem ter feito experimentos terapêuticos para a doença, particularmente com arsenicais e antimoniais, utilizados respectivamente desde 1906 para a sífilis (Paul Enrlich) e 1912 para leishmaniose (Gaspar Vianna).
Ainda no capítulo sobre tratamento da doença de Chagas, Cançado faz uma análise crítica da literatura, mostrando a fragilidade metodológica da grande maioria dos trabalhos sobre terapêutica. De um lado porque sendo a maior parte deles na fase aguda e usando a remissão dos sintomas e sinais clínicos e da parasitemia como parâmetros, o que ocorre normalmente nessa fase mesmo em pacientes não tratados e de outro lado pela falta de sistematização no controle de cura e da prova definitiva que seria a negativação da sorologia, revelada pela fixação do complemento, método de diagnóstico da época, na maioria das vezes não aplicada ou com resultados inconsistentes.
Entre os agentes quimioterápicos empregados de 1936 a 1960 como tentativa de tratamento da doença de Chagas destacam-se os derivados de quinoleínas e vários outros antimaláricos, arsenobenzóis e outros arsemicais, fenantridinas, sais de ouro, bismuto, cobre e de zinco, iodeto de sódio, violeta de genciana, aminopterinas, ácido para-aminosalicílico, hidrazida do ácido nicotínico, sulfonamidas, antihistamínicos, ACTH e cortisona, derivados da estilomicilina, anfotericina B e mais de 30 antibióticos, e alguns nitrofuranos com resultados negativos ou discutíveis, como revistos por Coura e Silva, e por Brener e Cançado.
A partir de 1961 quando Brener revendo nitrofuramos estudados experimentalmente por Packchanian na infecção experimental pelo T. cruzi, demonstrou de forma clara e indubitável, que a nitrofurazona (5-nitro-2-furaldeido-semicarbazona) em esquema de duração prolongada (53 dias em média) na dose de 100 mg/Kg/dia curava mais de 95% dos camundongos cronicamente infectados, abriu-se uma nova era na terapêutica da doença de Chagas. Logo depois Ferreira e colaboradores trataram também 10 casos agudos da doença com nitrofurazona, “com bons resultados e poucos efeitos colaterais”, mas em seguida verificaram que cinco deles voltaram a ter xenodiagnóstico positivo. Coura e colaboradores reportam em trabalhos publicados em 1961 e 1962 que trataram 14 casos crônicos com nitrofurazona (Furacin) em doses progressivas de 10 mg/Kg/dia na primeira semana, 20 mg/Kg/dia na segunda semana e 30 mg/Kg/dia na terceira semana; os efeitos colaterais nos quatro primeiros casos foram tão intensos (polineuropatia sensitiva) que o tratamento teve que ser suspenso. Reiniciaram o tratamento com 10 mg/Kg/dia em 10 outros pacientes, sendo que 5 toleraram o tratamento apesar dos efeitos colaterais (anorexia, perda de peso, parestesias e polineuropatia sensitiva) durante 60 dias; um desses pacientes com infecção crônica recente (18 meses) tolerou o tratamento com 20 mg/Kg/dia durante 53 dias. Dos seis pacientes tratados por período prolongado (mais de 50 dias), dois foram considerados curados, baseado na negativação persistente do xenodiagnóstico e da reação de fixação do complemento (reação de Guerreiro e Machado), que jamais voltaram a se positivar. Cançado e colaboradores em 1964 também trataram cinco pacientes crônicos com nitrofurazoma na dose de 10 mg/Kg/dia em períodos variáveis com a tolerância de 10 a 34 dias, com falha terapêutica. A conclusão final foi de que a nitrofurazoma poderia ser curativa mas os pacientes não toleravam os efeitos colaterais nas doses e no tempo necessários para a cura.
No final da década de 1960 e início de 1970 duas novas drogas surgiram com melhores perspectivas para o tratamento da doença de Chagas tanto pelo potencial curativo, particularmente para a fase aguda, como pela tolerância: o nifurtimox um nitrofurano: 3-metil-4-(5´-nitrofurfurilidenoamino)tetrahidro-4H-1, 4-tiazina-1,1-dióxido (Bayer 2502) comercializado como nome de Lampit e o benznidazol (N-benzyl-2-nitroimidazol acetamida (RO 7-1051) comercializado com o nome de Rochagan® no Brasil e Radanil® na Argentina. Nifurtimox desenvolvido por Bock e colabordores e benznidazol desenvolvido por Richle se mostraram ativos in vitro e in vivo contra o T. cruzi. A produção do nifurtimox a partir da década de 1980, vem sendo descontinuada, inicialmente no Brasil e depois na Argentina, Chile e Uruguai e o benznidazol no Brasil está sendo passado pela Roche para o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe). O desinteresse da indústria farmacêutica na produção de medicamentos para a doença de Chagas, considerados como “medicamentos sociais”, está ligado à baixa demanda, restrito somente a alguns países na América Latina, para população de baixa renda e, portanto, com pequena margem de lucro.
Nifurtimox e benznidazol foram amplamente utilizados por diversos pesquisadores, especialmente no Brasil, Chile e Argentina, incluindo Cançado e colaboradores, Cançado e Brener, Bocca-Tourres, Rubio e Donoso, Schenone e colaboradores, Rassi e Ferreira, Rassi e Luquetti, Coura e colaboradores, Macedo e Silveira, Viotti e colaboradores, Andrade e colaboradores, Sosa Estani e colaboradores, Cançado, e Lacunza e colaboradores, entre diversos outros que publicaram seus resultados.
Os resultados obtidos com ambas as drogas variaram de acordo com a fase da doença, com a duração do tratamento, com a idade dos pacientes, e com a área geográfica de sua origem. Os melhores resultados foram obtidos na fase aguda da doença, em crianças e pacientes com infecção recente, usando-se nifurtimox na dose de 8 a 10 mg/Kg/dia ou benznidazol 5 a 7,5 mg/Kg/dia durante 60 a 90 dias. Na fase crônica e em pacientes adultos os melhores resultados foram obtidos no sul do Brasil, na Argentina e no Chile, portanto no Cone Sul, provavelmente devido ao tipo de cepa do T. cruzi dessa região. Em síntese pode-se dizer que o percentual de cura foi de 60 a 80% na fase aguda e de 10 a 20% na fase crônica, de acordo com os diversos autores e áreas geográficas. Alguns autores que obtiveram “altos percentuais de cura” na fase crônica basearam-se na negativação do xenodiagnóstico ou da PCR, que podem ser negativos em mais de 50% dos pacientes com redução da parasitemia, mesmo que não curados.
Os efeitos colaterais mais frequentes com o nifurtimox foram anorexia, perda de peso, excitabilidade psíquica ou sonolência e manifestações digestivas como náuseas, vômitos e ocasionalmente cólicas intestinais. Os efeitos colaterais com o benznidazol podem ser classificados em três tipos: (i) manifestações de hipersensiblidade como dermatite com erupção cutânea (usualmente aparecendo entre o 7º e 10º dia de tratamento), edema peri-orbital ou generalizado, febre, linfoadenopatia e dores musculares e articulares; (ii) depressão da medula óssea, entre as quais neutropenia, agranulocitose e púrpura trombocitopêmica; (iii) polineuropatia periférica representado por parestesias e polineurite.
Apesar de ter sido um avanço para o tratamento da doença de Chagas, o nifurtimox e o benznidazol estão longe de serem consideradas drogas ideais. A droga ideal para o tratamento da doença de Chagas deveria apresentar os seguintes requisitos: (i) produzir a cura parasitológica de casos agudos e crônicos e evitar a evolução da doença, sendo eficaz com poucas doses em curto prazo (10 a 15 dias); (ii) não produzir efeitos colaterais importantes nem teratogênicos e não induzir resistência parasitária; (iii) ser barata, de fácil aplicação e acessível aos pacientes.
A partir da década de 1990, diante das limitações do nifurtimox e do benznidazol, algumas drogas como o alopurinol um análogo da hipoxantina inibidor da xantina-oxidase e da síntese das purinas, usado para o tratamento da gota e antifúngicos azólicos como o cetoconazol, fluconazol e itraconazol, que mostraram alguma atividade in vitro contra o T. cruzi foram usados em animais de experimentação e no homem com resultados controversos, como os publicados por Lauria-Pires e colaboradores, Galerano e colaboradores, Brener e colaboradores, de Castro, Apt e colaboradores e Molina e colaboradores.
O grave problema que leva a controvérsias e a uma enorme perda de tempo é a falta de critérios na avaliação clínica e experimental in vivo em relação aos resultados parciais obtidos em cultura in vitro. É claro que esse é um primeiro passo necessário e indispensável, mas deve ser seguido com um rigoroso estudo em modelo experimental em animais, com diferentes cepas de T. cruzi, antes de qualquer anúncio e da experimentação em seres humanos, que além dos estudos de toxicidade, devem ser feitos com extremo rigor científico antes da proclamação de resultados positivos, na maioria das vezes, falsos por falta de critérios no controle da cura parasitológica e da evolução da doença e que deve ter sempre feita com um grupo controle.
O desenvolvimento de uma droga anti-parasitária pode surgir através de experimentos com produtos naturais ou sintéticos que tenham similaridade com compostos com reconhecida atividade para outras doenças ou através de alvos metabólicos específicos para um determinado parasito que se quer atingir, como revisto por Coura & de Castro. Como perspectivas para o tratamento experimental da doença de Chagas, vários alvos estão sendo abertos através de estudos metabólicos e bioquímicos do T. cruzi, entre os quais a síntese de esteróis e enzimas essenciais ao desenvolvimento e multiplicação desse parasito, como revisto por Do Campo.
Considerando que o ergosterol é o principal esterol do T. cruzi, na última década as pesquisas vêm sendo orientadas para o desenvolvimento de um inibidor eficaz desse esterol. Urbina e colaboradores desenvolveram o DO870 que curava um alto percentual de animais infectados com T. cruzi a curto e longo prazo. Mais recentemente Molina e colaboradores demonstraram que o triazólico posoconazol (SCH 56592 Schering-Plouch) inibe a proliferação de epimastigotas de T. cruzi e a síntese do ergotenol até 100 vezes mais do que o DO870, inclusive de cepas resistentes ao nifurtimox e benznidazol. O posoconazol é no momento a grande esperança no tratamento da doença de Chagas e já está em fase inicial de experimentação em seres humanos.
Células-tronco
Terapia celular no tratamento da doença de Chagas: estado atual e perspectivas
Milena B. P. Soares, Bruno Solano de Freitas Souza, Ricardo Ribeiro dos Santos
Instituto Gonçalo Moniz/Fiocruz
E-mail: milena@bahia.fiocruz.br/ bruno.souza@cpqgm.fiocruz.br/ ricardoribeiro@cbtc-hsr.org
A busca de métodos para o reparo de lesões causadas por doenças crônicas ou traumáticas tem sido impulsionada pela descoberta de células-tronco com capacidade de auto-replicação e de diferenciação em diversos tipos celulares funcionais. A demonstração de que as células-tronco adultas podem atuar terapeuticamente através da liberação de fatores tróficos e imunomodulatórios também colaborou para aumentar as potenciais indicações terapêuticas. Com a medicina regenerativa, ao invés de substituir um órgão lesado, vislumbra-se a possibilidade de repará-lo, sendo a terapia celular uma de suas mais promissoras ferramentas. O coração lesado pela doença de Chagas crônica é um alvo em potencial para a medicina regenerativa, visando restaurar as células funcionais e a função do órgão.
A cardiopatia chagásica crônica é ainda nos dias de hoje uma doença sem possibilidades terapêuticas eficazes além do transplante cardíaco. Como a baixa taxa de captação de órgãos, a maioria dos portadores da doença de Chagas em fila de transplante evolui para óbito antes de receber um coração novo. É uma doença caracterizada por uma destruição progressiva do miocárdio por uma resposta inflamatória que pode evoluir para a cardiomegalia e ao mal funcionamento do coração, resultando em alta morbidade e mortalidade dos pacientes. Portanto, uma terapia capaz de causar uma melhora da função cardíaca, e que seja accessível à população de cardiopatas chagásicos, é de grande interesse.
Dentre os vários tipos celulares que vêm sendo investigados quanto ao potencial de utilização em terapias celulares visando à regeneração cardíaca encontram-se: células mononucleares da medula óssea, células-tronco mesenquimais, precursores endoteliais, precursores cardíacos e células diferenciadas a partir de células-tronco pluripotentes (embrionárias e de pluripotência induzida ou iPSC).
Estudos com células-tronco em modelo animal de cardiomiopatia chagásica
A medula óssea foi uma fonte de células-tronco de aplicação imediata em estudos clínicos, não só pela facilidade de obtenção, mas principalmente pela experiência acumulada com a sua utilização clínica para o tratamento de doenças hematológicas e oncológicas, nas quais são utilizadas de rotina na prática clínica. Portanto, a potencial utilização de células da medula óssea em medicina regenerativa tem sido intensamente estudada, e esta foi a primeira população celular investigada para o tratamento da cardiopatia chagásica.
Para testar a eficácia da terapia com células de medula óssea no tratamento da cardiomiopatia chagásica, foi utilizado o modelo experimental de camundongos isogênicos infectados cronicamente pela cepa Colombiana de T. cruzi, que causa o desenvolvimento de cardiomiopatia chagásica crônica. Células de medula óssea foram obtidas de camundongos normais ou chagásicos crônicos e injetadas por via endovenosa em camundongos na fase crônica da infecção. Camundongos transplantados tiveram uma diminuição da inflamação e da fibrose após o transplante quando comparados aos controles não-tratados. Os efeitos da terapia com células de medula óssea foram duradouros, uma vez que o número de células inflamatórias e a área de fibrose permaneceram reduzidos até seis meses após o tratamento (Soares et al, 2004).
Com a utilização de células de medula óssea obtidas de camundongos transgênicos para a proteína verde fluorescente (GFP), verificou-se a presença de células transgênicas no miocárdio, indicando que parte das células injetadas migra para o coração. Algumas destas células apresentaram morfologia de cardiomiócitos e expressão de miosina, indicando uma possível diferenciação de células transplantadas neste tipo celular ou fusão com cardiomiócitos do animal receptor. No entanto, esse foram achados pouco frequentes. De fato, análises por microarranjos de DNA mostraram que a terapia com células mononucleares da medula óssea reverte a maior parte das alterações na expressão gênica alterada pela infecção por T. cruzi nos corações de camundongos, incluindo vários fatores associados à inflamação e fibrose (Soares et al, 2010). Portanto, demonstramos que essa população celular tem um potencial imunomodulador potente, porém baixa capacidade de substituição de células funcionais cardíacas.
Na infecção experimental por T. cruzi em ratos, Guarita e colaboradores (2006) estudaram os efeitos da terapia celular, que consistiu da administração direta na parede do ventrículo esquerdo de células mesenquimais derivadas da medula óssea co-cultivadas com mioblastos esqueléticos por 14 dias, na melhora da fração de ejeção do coração. Os autores observaram uma melhora significativa da fração de ejeção após a terapia celular em animais cronicamente infectados com fração de ejeção abaixo de 37%. Observou-se também uma diminuição dos volumes sistólicos e diastólicos finais do ventrículo esquerdo, e a presença de miogênese e angiogênese após o tratamento.
Outra população celular que foi testada é a de células-tronco mesenquimais, que são células do adulto encontradas em diversos tecidos, incluindo a medula óssea e o tecido adiposo. O tratamento de camundongos com cardiopatia chagásica crônica com células mesenquimais de tecido adiposo humano e de coração de camundongos causou uma redução de inflamação e fibrose no coração (Larocca et al, 2013; Silva et al, 2014). Análise de migração celular demonstrou que as células-tronco mesenquimais são encontradas no fígado, nos pulmões e no baço, e poucas células migram para o coração (Jasmim et al, 2014).
Estudos clínicos de terapia celular em cadiomiopatia chagásica
Em estudo realizado no Hospital Santa Izabel, em Salvador, Bahia, portadores da doença de Chagas com insuficiência cardíaca graus III e IV da NYHA foram selecionados (Vilas-Boas et al, 2006). De cada paciente foram aspirados 50 mL de medula óssea através de punção da crista ilíaca, sob anestesia local. O aspirado de medula foi submetido a centrifugação por gradiente de Ficoll, para isolamento de uma fração enriquecida com células mononucleares, que foi injetada lentamente no sistema coronariano esquerdo e direito, no mesmo dia do isolamento. Um mês após o transplante, os pacientes receberam injeções diárias durante cinco dias de G-CSF para induzir a mobilização de células-tronco da medula óssea para o sangue periférico, com o objetivo de induzir um reforço de oferta de células tronco para o reparo das lesões. Não foram observados efeitos adversos do transplante de células mononucleares de medula óssea, nem do tratamento com G-CSF. Não houve modificações significativas nos níveis de CKMB e troponina, marcadores de lesão muscular, assim como no número e intensidade de arritmias, indicando ser este um protocolo seguro e exequível, como descrito por Vilas-Boas e colaboradores (2006). A análise da fração de ejeção do ventrículo esquerdo indica uma melhora da função cardíaca seis meses após o procedimento. De modo semelhante, observou-se um aumento no tempo de caminhada no teste do corredor e melhora da classe funcional da New York Heart Association. Por fim, os pacientes relataram uma melhora da qualidade de vida (questionário de Minnesota). Os níveis séricos de sódio dos pacientes antes do tratamento encontravam-se abaixo da normalidade, como é frequente em pacientes com este grau de insuficiência cardíaca.
Estudo de biodistribuição através da marcação das células mononucleares de medula óssea e cintilografia demonstrou que as células transplantadas se localizam principalmente no fígado e baço, mas também são encontradas no coração, embora em menor quantidade (Barbosa da Fonseca et al, 2011).
Para comprovar se a terapia celular é eficaz no tratamento da cardiomiopatia chagásica crônica, foi desenvolvido um estudo multicêntrico (MiHeart) randomizado, duplo-cego, financiado pelo Ministério da Saúde. Nesse estudo, que incluiu 234 pacientes chagásicos, demonstrou-se que a injeção intracoronariana de células mononucleares autólogas da medula óssea autologous não causou melhora da função do ventrículo esquerdo ou de qualidade de vida (Ribeiro dos Santos et al, 2012).
Perspectivas
Muito embora as observações no modelo animal, assim como no estudo clínico, indiquem que a terapia com células-tronco tem um futuro promissor no tratamento da cardiomiopatia chagásica crônica, temos ainda um longo trajeto a percorrer no sentido de determinar qual o melhor tipo celular, quantas e quais doses a serem utilizadas, o momento de aplicação e, sobretudo, os mecanismos através dos quais a terapia celular atua. A cardiomiopatia chagásica crônica apresenta peculiaridades em relação a outras cardiomiopatias, como uma inflamação intensa, que podem facilitar ou dificultar a ação das células-tronco. Por ser uma doença progressiva, é provável que intervenções em estágios mais precoces sejam mais eficazes e promovam retardo ou bloqueio da evolução da doença, em vez de se almejar a recuperação da função em corações em fase terminal de insuficiência cardíaca.
Além das células-tronco adultas, como as mesenquimais, outras células geradas a partir de células-tronco pluripotentes (embrionárias ou de pluripotência induzida – iPSC) ou por reprogramação direta, tais como cardiomiócitos e células progenitoras cardíacas, deverão ser testadas em fase pré-clínica para determinar a segurança e potencial eficácia, para futuramente servirem de base para futuros ensaios clínicos. Outra questão a ser resolvida é como garantir a sobrevivência, enxertia e integração elétrica e mecânica das células transplantadas no tecido cardíaco. Para que este objetivo seja alcançado, estratégias interdisciplinares, através de associações de produtos celulares com nanotecnologia, biomateriais ou terapia gênica, serão cada vez mais utilizadas.
A terapia com células de medula óssea não pretende tratar a doença de Chagas. Esta não interfere na infecção pelo T. cruzi, até onde podemos dizer pela observação de que não há alteração na carga parasitária ou parasitemia dos animais tratados. Não se sabe também se esta terapia tem efeito na resposta imune agressora ao coração. Esta é uma terapia reparativa dos danos causados durante anos ou até décadas de agressão ao miocárdio resultante da doença de Chagas. O que se espera é que estes indivíduos possam conviver com o parasita sem sintomatologia, como ocorre com a maioria dos indivíduos infectados pelo T. cruzi, na forma indeterminada da doença.
Terapias combinadas
Joseli Lannes-Vieira
Laboratório de Biologia das Interações, Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz
E-mail: lannes@ioc.fiocruz.br
Em construção.
Fase crônica
Tratamento etiológico da doença de Chagas na fase crônica
Andréa Silvestre de Sousa
Oswaldo Cruz Foundation, Evandro Chagas National Institute of Infectious Diseases, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brazil.
Federal University of Rio de Janeiro, School of Medicine, Department of Internal Medicine, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brazil.
Introdução
O caráter de negligência associado à doença de Chagas pode ser evidenciado pelo baixo interesse da indústria farmacêutica por pesquisas e desenvolvimento de novas drogas direcionadas ao tratamento desta infecção. Os únicos fármacos disponíveis comercialmente, com eficácia antiparasitária estabelecida, são os mesmos em uso há mais de cinquenta anos: benznidazol e nifurtimox. A negligência também é notória quando se avalia a qualidade das evidências científicas e a heterogeneidade de critérios nas recomendações de diretrizes existentes nos vários países da América Latina. Como consequência, exacerbam-se os obstáculos na aplicação de condutas padronizadas por parte de gestores e profissionais da saúde. Além disso, prejuízos ocorrem na promoção e padronização de atividades de educação continuada, cada vez mais desejadas diante do silêncio das universidades em relação às doenças tropicais negligenciadas (DTN), perpetuando-se, assim, as condições de vulnerabilidade dos afetados.
Em relação às drogas existentes, o nifurtimox, comercializado pela empresa alemã Bayer, foi utilizado de forma pioneira em 1965. Apesar de eficácia comprovada, as graves e frequentes reações adversas, incluindo anorexia, perda de peso, parestesias, agitação psíquica, náuseas e vômitos foram responsáveis pela menor utilização desta droga, hoje não disponível em inúmeros países, entre eles o Brasil. Em nosso País, em situações específicas, como suspeita de resistência ou graves efeitos adversos associados ao benznidazol, o nifurtimox pode ser solicitado à Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde (MS), que obtém a droga a partir a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).
O benznidazol, substância de mesma classe farmacológica do nifurtimox, foi utilizado pela primeira vez no final da década de 70. Apresenta eficácia similar, porém menor intensidade de reações adversas. Atualmente, sua distribuição é realizada por dois laboratórios: o brasileiro Lafepe (Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco) e o argentino Elea, representando a única opção tripanocida comercializada em nosso País.
Mais recentemente, outros azóis, como posaconazol e ravuconazol, foram testados no tratamento da doença de Chagas, porém a maior eficácia e o menor custo do benznidazol reduzem a chance de utilização dessas novas drogas de forma isolada. Novos esquemas terapêuticos, com associação de medicamentos e mudanças de doses vêm sendo testados. Diante disso, benznidazol e nifurtimox persistem como únicas opções terapêuticas até o momento, ainda que tenham sido apresentados inicialmente nas décadas de 60 e 70.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a droga ideal a ser utilizada no tratamento da doença de Chagas seria aquela capaz de promover cura parasitológica tanto na fase aguda como crônica, com garantida eficácia após uma ou poucas doses, baixo custo, desprovida de efeitos adversos ou teratogênicos e incapaz de induzir resistência. Infelizmente, não há, até o momento, esta substância utópica. Ao contrário, nossas opções terapêuticas atuais se distanciam sobremaneira das características aqui citadas.
Avaliação da eficácia e critérios de cura
Os fatores que influenciam a eficácia de cura de ambas as drogas são variados: a fase de evolução da doença no momento em que se institui a terapia; dose e duração do tratamento; idade e condição imune do indivíduo tratado; e origem geográfica do paciente, representando a variabilidade genética do Trypanosoma cruzi e sua resistência natural ao tratamento. Assim, taxas de cura baseadas em sorologia e xenodiagnóstico podem chegar a 80% na Argentina, Chile e sul do Brasil, mas apenas 40% em brasileiros provenientes da região central e sudeste do País.
Da mesma forma, a negativação sorológica pode ocorrer em 80% dos casos ao serem tratadas crianças na fase aguda da doença, sendo inferior a 20% após o tratamento de adultos na fase crônica. A baixa parasitemia das fases mais avançadas diminuiria a chance de sucesso. Ao contrário, não existe dúvida no benefício do tratamento de todas as formas agudas da doença, independente da sua via de transmissão, incluindo os casos materno-fetais, acidentes laboratoriais e reativação em casos de imunossupressão. A fase da doença e a idade do indivíduo influenciam não apenas a efetividade do tratamento, mas também a incidência de eventos adversos e a taxa esperada de progressão da doença. Neste racional, crianças são mais uma vez os alvos preferenciais, não apenas pela maior eficácia descrita, mas também por menor taxa de progressão e eventos adversos.
Critérios de cura
O grande limitante na discussão de eficácia terapêutica na doença de Chagas na fase crônica é a ausência de um marcador que defina cura. Se for estabelecido o critério de negativação sorológica, o período de observação para este evento pode ser de décadas, tornando inviável a programação de ensaios clínicos com desfechos sorológicos. A utilização de um desfecho parasitológico substituto, como o DNA do T. cruzi avaliado através de negativação da PCR, não indica cura, pois a PCR negativa não significa ausência de infecção. A PCR tão somente deve ser utilizada como marcador de falha do tratamento, se persistir positiva após o curso da medicação.
Outros desfechos substitutos, como a redução da progressão da doença, tem sido utilizados em alguns estudos. Assim, é descrita a menor progressão eletrocardiográfica em relação ao placebo entre pacientes tratados com benznidazol, embora a soroconversão tenha sido tão baixa quanto 15% após 9,8 anos de seguimento. Com base em estudos observacionais, ambos os compostos são considerados efetivos em reduzir a duração e a gravidade clínica da doença, desfechos clínicos de elevada importância.
Benznidazol – dose e indicações
A dose preconizada de benznidazol na maioria das diretrizes é de 5 mg/kg/dia (comprimidos de 100mg), dividida em duas ou três tomadas diárias, mantida por 60 dias. Neste período, as reações adversas devem ser avaliadas, sendo mais frequentes as dermatológicas, com exantemas, prurido e descamações, além de anorexia, perda de peso, parestesias e polineuropatia periférica, cujos sintomas podem permanecer meses após o término do tratamento. Mais raramente pode ocorrer depressão da medula óssea, púrpura trombocitopênica e agranulocitose. A taxa de interrupção do tratamento associada às reações adversas pode variar entre 25 a 41%.
Recentemente, tem sido adotada a estratégia que fixa a dose máxima diária em 300mg, estendendo-se o tempo do tratamento, em dias, de acordo com o peso do indivíduo (ex.: para um indivíduo de 80Kg a dose de 300mg/dia deve ser mantida por 80 dias). Essa conduta, adotada no ensaio clínico BENEFIT, fez com que a taxa de descontinuidade prevista pelo cálculo amostral (17%) fosse inferior àquela de fato encontrada (13,4%). No mesmo estudo, a incidência avaliada de efeitos adversos (23,9%) foi inferior à prevista, baseado em dados da literatura.
Na fase aguda da doença é universal o entendimento da necessidade imperativa do tratamento etiológico, independente da via de transmissão. Entretanto, dúvidas relacionadas ao benefício persistem para a fase crônica. Infelizmente, a teoria da auto-imunidade despontada na década de 80 pode ter erroneamente colocado o tratamento específico em segundo plano para os casos crônicos. O entendimento atual da patogenia, sobretudo com os avanços da biologia molecular e casos reconhecidos de reativação em imunossuprimidos, não deixa dúvidas da importância do parasita no processo evolutivo da doença em sua forma crônica. O tratamento etiológico, portanto, tem sua base teórica ancorada na redução do estímulo ao processo inflamatório e controle de progressão da doença, com respostas positivas em estudos observacionais e modelos experimentais.
Embora seja racional o uso de terapia tripanocida visando controle da morbidade da doença, sua eficácia na forma crônica é considerada incerta em indivíduos com maior tempo de evolução da doença. Assim, ainda que o atual consenso brasileiro tenha expandido suas recomendações de tratamento, persistem dúvidas entre os pesquisadores, ratificadas neste documento, quanto ao uso de benznidazol entre indivíduos com mais de 50 anos de idade e entre aqueles com a forma crônica sintomática, sobretudo na cardiopatia chagásica crônica.
De forma geral, sobretudo para as situações duvidosas, recomenda-se que a decisão sobre o tratamento seja compartilhada entre médicos e os indivíduos infectados, pontuando riscos associados aos efeitos adversos e potenciais benefícios. Abaixo de 50 anos de idade, atingir o benefício de não progressão para doença cardíaca compensa a maior parte dos riscos.
É importante ressaltar que o tratamento de mulheres em idade fértil é uma estratégia de grande impacto e baixo custo na redução da transmissão materno-fetal. Mulheres grávidas não devem receber terapia tripanocida pelo risco potencial de teratogenicidade, salvo casos agudos graves, onde se prioriza a vida materna.
Pontua-se que a maioria dos indivíduos acima de 50 anos de idade devem ter sido infectados há mais de 30 anos. Se ao serem diagnosticados ainda se encontram na forma crônica indeterminada, provavelmente não deverão evoluir para formas cardíacas graves. Nesses casos, como os benefícios são menos claros e os riscos são possíveis, não se recomenda o tratamento de rotina, embora a decisão deva ser discutida entre as partes envolvidas. Entretanto, se as comorbidades são pequenas, a expectativa de vida é elevada, e sobretudo, se o contágio supostamente ocorreu na idade adulta, tende-se mais facilmente à opção do tratamento etiológico. Este último ponto recebe especial importância diante da recente mudança do perfil epidemiológico da doença de Chagas no Brasil, onde a maior parte dos casos agudos ocorrem na Amazônia, entre indivíduos de todas as faixas etárias. Neste cenário, a idade não pode ser utilizada para inferir o tempo de evolução da doença como ocorre na transmissão vetorial clássica. Assim, nestes casos em especial, o limite de idade para o tratamento etiológico não deve ser considerado para a indicação de tratamento.
No tocante às formas crônicas sintomáticas, pacientes na forma digestiva devem ser conduzidos tal qual a forma crônica indeterminada, com orientação para uso de tratamento específico até 50 anos de idade, salvo casos isolados de dificuldade maior de deglutição e absorção errática associada ao megaesôfago avançado.
A grande discussão recai para pacientes com cardiopatia chagásica crônica. É consensual entre todas as diretrizes que não se deve realizar tratamento específico nos casos avançados da cardiopatia. Na cardiopatia leve a moderada, entretanto, apesar do resultado do estudo BENEFIT, ensaio clínico randomizado, placebo controlado, que avaliou número expressivo de pacientes da América Latina não ter demonstrado benefício no desfecho primário de morte e eventos cardiovasculares associados, ainda restam questionamentos sobre a orientação do tratamento nestes casos. Análises de subgrupo e post hoc tentam justificar uma orientação de terapia consensuada entre médicos e indivíduos envolvidos, ao menos na população brasileira, única que alcançaria tendência de benefício terapêutico em análises posteriores. Curioso que, quando se observa a variabilidade genética do T. cruzi, o Brasil corresponderia justamente à área geográfica onde historicamente ocorrem as menores taxas de sucesso associadas à terapia tripanocida, quando comparados aos centros argentinos.
Uma análise interessante ainda não avaliada seria a comparação da qualidade do tratamento sintomático realizado em paralelo por todos os centros envolvidos no estudo BENEFIT. Como os benefícios do tratamento sintomático da cardiopatia são indubitáveis para a redução da mortalidade e demais desfechos clínicos, estes não podem jamais ser esquecidos ou colocados em segundo plano, devendo constar de forma unânime de todas as pautas e reivindicações para o tratamento adequado de indivíduos com cardiopatia chagásica crônica.
Conclusão
A droga ideal para o tratamento da doença de Chagas, conforme preconizada pela OMS, ainda não faz parte de nossa realidade atual. Mais do que buscar uma pílula mágica, devemos lutar por ações plausíveis, com aplicabilidade clínica garantida, e desfechos relevantes.
Na fase crônica, uma conduta de extrema relevância seria promover o tratamento de todas as mulheres com sorologia positiva em idade fértil. Esta ação simples e de baixo custo amplia o controle da doença, ao reduzir potenciais novos casos advindos da transmissão materno-fetal, além de limitar a morbidade neste segmento populacional mais jovem.
Na forma crônica indeterminada, é também relevante promover o tratamento dos indivíduos mais jovens, até 50 anos de idade, com risco latente de progressão para sintomatologia graves. Deve-se considerar, entretanto, que este limite arbitrário de idade não deve ser aplicado àqueles infectados na idade adulta, condição em que o tratamento poderia ser mais eficaz, dado o menor tempo de evolução da doença.
Para os cardiopatas, contudo, reconhecendo-se que as lesões estruturais definitivas associadas à fibrose extensa já possam ter ocorrido, e diante das evidências científicas existentes que não demonstraram benefício claro da terapia tripanocida, deve-se buscar, se não a cura com seus critérios questionáveis, a redução da morbimortalidade, e uma melhor qualidade de vida. Tudo isso é viável através do tratamento sintomático e reabilitação cardiovascular, opções muitas vezes disponíveis, contudo mal aplicadas ou relegadas à segunda linha.
Tratamento etiológico na fase crônica da doença de Chagas
J. Antonio Marin-Neto, Anis Rassi Jr, Anis Rassi
Divisão de Cardiologia, Departmento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil (J. Antonio Marin-Neto) e Divisão de Cardiologia, Hospital do Coração Anis Rassi Goiânia, GO, Brasil (Anis Rassi Jr, e Anis Rassi).
Resumo: Nas últimas décadas ficou bem demonstrada a relação entre a persistência do parasita e a instalação e progressão da cardiomiopatia crônica na doença de Chagas. Nesse contexto, além da indicação formal para o tratamento antiparasitário na fase aguda da infecção, pacientes com a forma indeterminada e até mesmo aqueles já diagnosticados com cardiomiopatia, desde que não avançada, devem ser considerados para tratamento tripanossomicida, com base em uma decisão individualizada que deve ser compartilhada entre o médico e o próprio paciente.
Palavras-Chave : Cardiomiopatia Crônica da Doença de Chagas – Tratamento Etiológico – Benzonidazol – Estudo BENEFIT
Introdução
Em contraste com a recomendação consensual de que todos os pacientes na fase aguda da doença de Chagas, independentemente do mecanismo de transmissão, devam receber terapêutica tripanossomicida, as indicações para o tratamento etiológico na fase crônica permanecem discutíveis. A elucidação do papel do tratamento etiológico na fase crônica da doença de Chagas tem sido obstaculizada por diversos fatores[i]: primeiro, o conceito errôneo de que a autoimunidade seria o principal mecanismo patogenético na fase crônica da doença; segundo, o fato de que desde a introdução do benzonidazol e do nifurtimox há cerca de 40 anos – únicos antiparasitários com eficácia comprovada – o tratamento etiológico não experimentou avanços e o surgimento de novos fármacos, menos tóxicos e mais eficazes, não foi possível; em terceiro lugar, ocorreu a relutância de médicos receosos de efeitos colaterais indesejáveis provocados pelos tripanossomicidas, especialmente em pacientes com cardiomiopatia manifesta, aliado à noção de que o tratamento etiológico nesse contexto já seria tardio e sem efeito[ii].
Entretanto, recentemente, com o melhor entendimento da história natural da doença de Chagas, este cenário negativo se alterou, propiciando abordagem mais racional dos diversos aspectos relacionados ao tratamento etiológico da doença de Chagas. Assim, embora hoje se reconheça que três outros mecanismos estejam envolvidos na complexa patogênese da cardiomiopatia crônica da doença de Chagas (CCDC) – disfunção autonômica periférica, alterações microvasculares coronárias e lesões miocárdicas de natureza imunológica – muitos investigadores atualmente definem que a persistência parasitária tissular constitui o fator essencial responsável pela instalação e progressão da típica miocardite crônica que provoca miocitólise e fibrose reparativa e reacional. Esse conceito evocou renovado interesse em perspectivas terapêuticas antiparasitáriass por resgatar a noção crucial de que a doença de Chagas em sua fase crônica continua sendo entidade nosológica essencialmente infecciosa, durante a qual o organismo humano, apesar de suas proteiformes defesas, não consegue debelar completamente o parasita agressor[iii], [iv].
Base experimental do possível benefício do tratamento etiológico na fase crônica da infecção pelo T. cruzi.
Há evidências de que a intensidade do processo inflamatório correlaciona-se nitidamente com a carga parasitária tissular em modelos experimenteais de infecção crônica pelo T. cruz[v]. Em aditamento, também se demonstrou que o tratamento tripanossomicida com benzonidazol, nifurtimox e fexinidazol, a despeito de não erradicar o parasito, reduz a carga infecciosa e, de relevância, provoca nítida atenuação da miocardite nesses modelos experimentais [vi], [vii], [viii].
Tratamento etiológico de pacientes com a forma indeterminada da doença de Chagas crônica.
Muitos pacientes cursam por toda a vida com a forma indeterminada da doença de Chagas crônica. Uma das mais candentes e intrigantes interrogações ainda não respondidas sobre a patogênese da doença consiste no enigma de por que apenas 30-50% dos pacientes infectados pelo T. cruzi desenvolvem as formas clínicas crônicas – em especial a mais grave e frequente, a CCDC – enquanto os demais são poupados dessas complicações?1 Não obstante ser imprevisível o curso individual de um paciente com a forma indeterminada da doença de Chagas, torna-se hoje inteiramente plausível assumir que se caracterize ela por representar a mais clara oportunidade de prevenção secundária quanto ao espectro da CCDC em humanos infectados pelo T. cruzi[ix]. É por isso que o mais recente Consenso Brasileiro sobre doença de Chagas recomenda como classe I o tratamento etiológico com benzonidazol para todas as crianças com menos de 12 anos, e como classe IIa para todo adolescente < 18 anos, e, em base individualizada, para a maioria dos adultos até 50 anos, cursando com a forma indeterminada[x] .
A evidência de nível B embasando essas recomendações deriva dos poucos estudos randomizados de pequeno porte e de alguns outros, observacionais, realizados com crianças e adultos assintomáticos com ECG normal em repouso[xi], [xii], [xiii], [xiv], [xv], [xvi], [xvii], . O benefício acarretado pelo tratamento etiológico em tais estudos pôde ser constatado apenas quanto a desfechos substitutos dos clinicamente mais relevantes, isto é, por evidência indireta de redução da carga parasitária e da incidência de alterações no ECG, detectadas durante períodos de seguimento relativamente curtos em comparação com a muito longa história natural da doença. Essa constatação decorre da inerentemente muito prolongada forma indeterminada da doença (isto é, antes que as manifestações clínicas apareçam), impedindo que se investigassem os efeitos sobre os desfechos mais clinicamente relevantes (e.g. morte, insuficiência cardíaca, arritmias graves) nesses estudos. Os resultados dessas pesquisas foram coligidos em revisões sistemáticas e meta-análises respectivas[xviii], [xix], [xx], [xxi].
Tratamento etiológico de pacientes com cardiomiopatia crônica
Até a publicação do estudo BENEFIT (BENznidazole Evaluation For Interrupting Trypanosomiasis) [xxii], [xxiii] a evidência suportando esta indicação era embasada nos estudos mencionados, em especial pelos resultados de meta-análises compreendendo três estudos randomizados de pequeno porte e seis pesquisas observacionais; os resultados dessa meta-análise demonstravam que pacientes tratados com benzonidazol tinham menor risco de desenvolver desfechos clínicos comparativamente aos paciente controles – que recebiam placebo ou nenhum tratamento – (RC, 0.29; 95% CI, 0.16–0.53)21
Resultados primordiais do estudo BENEFIT
Esse estudo, o mais volumoso em pacientes com a CCDC, arrolou 2854 pacientes em 49 centros de 5 países latinoamericanos – 1358 pacientes no Brasil, 559 na Argentina, 502 na Colômbia, 357 na Bolívia, e 78 em El Salvador. Os pacientes eram randomicamente alocados aos grupos recebendo placebo ou benzonidazol (5 mg/ kg de peso corporal por dia) por 40–80 dias, e foram seguidos em média por 5.4 anos23.
O tratamento com benzonidazol não exerceu efeito significativo sobre o desfecho composto primário do estudo, que teve incidência de 27.5% nesse grupo, versus 29.1% no grupo tratado com placebo (RR) 0.93 (95% CI 0.81–1.07; p=0.31).
Embora 23.9% dos pacientes no grupo benzonidazol interromperam transitoriamente o tratamento por eventos colaterais adversos (vs 9.5% no grupo placebo, p<0.001), somente 13.4% descontinuaram o tratamento de forma permanente (vs 3.6% no grupo placebo, p<0.001), caracterizando-se menor incidência desses desfechos de segurança do estudo, em comparação a relatos anteriores para o tratamento com o benzonidazol23.
Limitações desses resultados e análises post-hoc plausíveis
Recentemente publicou-se revisão da patogênese da CCDC e, simultaneamente, análise post-hoc criteriosa dos resultados do estudo BENEFIT e de inúmeros aspectos metodológicos que devem ter influenciado negativamente o alcance da investigação, com relevantes desdobramentos a serem considerados para se nortear a conduta médica no contexto1.
- A despeito do resultado neutro quanto ao desfecho composto primário do estudo, é muito relevante observar que todos os componentes do mesmo ocorreram menos frequentemente no grupo tratado em comparação com o grupo que recebeu placebo. Ademais, também se reduziu a incidência de internações hospitalares por causas cardiovasculares no grupo benzonidazol comparativamente ao grupo placebo. Isso provoca a plausível especulação de que, tivesse esse evento sido incluido no desfecho composto primário do estudo (como sugerido no desenho protocolar inicial da pesquisa) muito possivelmente o resultado favorecendo o tratamento com benzonidazol poderia ter sido alcançado. Também se torna relevante concluir que um desiderato fundamental do tratamento de pacientes com CCDC seja minimizar a necessidade de internações hospitalares e esta possibilidade, ainda que decorrente de análise post-hoc, pode vir a ser útil em perspectiva geral de aperfeiçoamento da abordagem de tais pacientes.
- Não obstante ter sido o estudo BENEFIT de natureza randômica e mesmo arrolando-se extenso número de participantes, deve-se atentar para o fato de que 5 de 6 fatores claramente reconhecidos como indicativos de mau prognóstico[xxiv] , tiveram maior prevalência inicial no grupo tratado com benzonidazol. Entretanto, não se reportou qualquer ajuste para compensar esse desequilíbrio inicial de características prognosticamente desfavoráveis no grupo tratado.
- A taxa geral de eventos no grupo placebo foi nitidamente inferior ao postulado inicialmente no protocolo do estudo (5.4% em vez de 8% por ano); isso pode ter ocasionado perda de poder estatístico da investigação, no sentido de se detectar diferença significativa na incidência dos desfechos cardiovasculares entre os dois grupos do estudo.
- Importantes discrepâncias geográficas foram observadas quando se cotejam os dois grupos do estudo, tanto quanto à redução da taxa de detecção de parasitos circulantes pelo método PCR , como na incidência do desfecho composto primário. Tais resultados são consistentes com a evidência de que as diversas cepas de T. cruzi encontradas preferencialmente em algumas regiões geográficas, se distingam por relevantes características genotípicas que se associem a variável susceptibilidade ao efeito do benzonidazol.[xxv], [xxvi], [xxvii].
- Na coorte brasileira incluida no estudo BENEFIT, o tratamento com o benzonidazol associou-se a redução relativa do risco quanto ao desfecho composto primário da ordem de 15% (RR 0.85, 95% CI 0.71–1.02), correspondendo a redução absoluta desse risco de 4.4% em comparação ao placebo. Tal redução mostra forte tendência a significância estatística, a qual, se tivesse sido alcançada, permitiria constatar que apenas 22 pacientes teriam que receber o tratamento etiológico com esse agente tripanossomicida, para já se evitar a ocorrência de um desfecho primário do estudo.
- Em consequência das inerentes limitações metodológicas do método PCR de detecção de parasitos circulantes, e, mais importante ainda, porque não se dispõe de qualquer indício sobre a intensidade da persistência parasitária tissular após o tratamento com o benzonidazol no estudo BENEFIT, seus resultados não podem ser interpretados como significando que a hoje primordial teoria da patogênese da CCDC deva ser abandonada. Ao contrário, torna-se imperative divisar protocolos com fármacos parasiticidas mais efetivos e métodos mais decisivos de se avaliar a eventual redução da carga parasitária após o tratamento etiológico.
- Com base nos atuais conhecimentos é concebível concluir-se que o risco de incorrer-se em erro a (não se ministrar terapêutica potencialmente benéfica e desprovida de efeitos colaterais intoleráveis) seja hoje muito menos aceitável do que o risco de incorrer-se em erro b (adotar prática terapêutica que no futuro se demonstre ineficaz)[xxviii]. Dessa forma entende-se o depoimento de investigadores que julgam questionável eticamente a postura de médicos que sequer considerem a possibilidade de tratamento etiológico para os pacientes cronicamente infectados pelo T. cruzi[xxix], [xxx]. De fato, o tratamento etiológico pode e deve ser aventado em forma individualizada para muitos pacientes sem estágios avançados da CCDC, e decidido na forma de uma ação compartilhada.
- Finalmente, mediante consideração dos resultados do estudo BENEFIT, passa a ser mandatória a exploração de tratamentos tripanossomicidas específicos, investigando-se os resultados de acordo com a diversidade genética do parasito e a origem geográfica dos pacientes.