Epidemiologia

Situação atual

Situação atual da epidemiologia da doença de Chagas

Adauto Jose Goncalves de Araújo

Departamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz

 

Paulo Chagastelles Sabroza

Departamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz

E-mail: sabroza@ensp.fiocruz.br

 

Luiz Fernando Rocha Ferreira da Silva

Departamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz

E-mail: ludovico@ensp.fiocruz.br

 

Dias em 2007, discute a epidemiologia da doença de Chagas no contexto da globalização e iniquidade, em um crescendo de ocorrências de mudanças antrópicas, particularmente as migrações e invasão de ambientes naturais. É doença prevalente em populações rurais, onde encontram-se milhares de insetos vetores nas moradias de adobe. Estima-se que haja cerca de 12 a 14 milhões de pessoas infectadas na América Latina, como descrito por Dias. Houve notável esforço para se eliminar a transmissão domiciliar por Triatoma infestans, como descrito por Ramos Jr e Carvalho e Schofield e colaboradores, sendo o Brasil considerado livre desta modalidade de infecção pela Comissão Intergovernamental do Cone Sul (ver os arquivos: A Iniciativa do Cone Sul (Incosul) e A certificação da interrupção da transmissão da doença de Chagas pelo Triatoma infestans no Brasil, em 2006). Entretanto, tal situação não considera importantes aspectos regionais. No Nordeste brasileiro, por exemplo, há espécies de triatomíneos silvestres que se adaptam muito bem às moradias, atraídos pelas luzes das casas. A espécie predominante é Triatoma brasiliensis, mas existem outras espécies de vetores do Trypanosoma cruzi também importantes, conforme mostraram Dias e colaboradores em 2000 e Borges-Pereira e colaboradores em 2002.

A transmissão do parasito faz-se principalmente por intermédio do vetor, insetos triatomíneos em cujas fezes encontram-se as formas infectantes do parasito. Segue-se em importância a transmissão transfusional e a congênita, que vem se tornando cada vez mais importante. Ocorrem ainda a transmissão por acidente de laboratório e por leite materno, mas com pouco significado epidemiológico, conforme divulgado em 2006 no Guia de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde 2006.

No Brasil, o fenômeno da migração rural em direção aos centros urbanos fez surgir a transmissão por transfusão sanguínea, quando indivíduos infectados passaram a vender sangue para sobreviver. Com cerca de 70% dos indivíduos infectados vivendo nas cidades, como revisto por Dias, o risco de transmissão por transfusão sanguínea é muito alto, caso não se observe rigoroso controle nos bancos de sangue.

A principal forma de controle para a transmissão por vetores é feita com produtos químicos aplicados diretamente nas moradias e anexos, para combate aos insetos. Outra forma de controle, socialmente mais adequada, são os programas de melhoria de moradias rurais em que insetos vetores não consigam colonizar. Estas medidas associadas, controle de insetos e melhorias habitacionais, são apontadas como as mais eficazes desde a década de 1980, como revisto por Dias em 1986 e no texto “O controle de vetores da doença de Chagas”.

 

Livro: Doença de Chagas e seus principais vetores no Brasil

https://issuu.com/daruich/docs/doen_a_de_chagas_e_seus_principais_vetores_no_bras

 

Recentemente ocorreram surtos de doença de Chagas com forma aguda e morte por ingestão de formas tripomastigotas dissolvidas em bebidas, como suco de cana e açaí, em que os insetos vetores, silvestres provavelmente, foram triturados durante o preparo ou suas fezes contaminaram o alimento, conforme divulgado amplamente na mídia e em 2006 no Guia de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde 2006.

A doença de Chagas segue como problema de saúde pública por todos os países da América Latina, e sua distribuição cobre a América do Sul, incluindo Chile e Argentina, até o sul dos Estados Unidos, por onde existam vetores adequados ao parasito. A Iniciativa dos Países do Cone Sul em promoverem ações para controle do vetor foi bem sucedida, com a participação da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, como revisto por Schofield e colaboradores. No entanto, como Dias em sua publicação de 2007 chama atenção, tanto a iniciativa, como sua persistência, deve-se muito à participação ativa de cientistas, ao manterem, junto aos governos, a atenção voltada para o controle e prevenção da doença.

No Brasil, com a progressiva melhora do Sistema Único de Saúde, houve avanços consistentes em relação à atenção aos portadores da doença de Chagas. Tanto no que se refere ao tratamento dos cardiopatas, quando indicado, quanto às intervenções cirúrgicas e colocação de marca-passo em cardíacos, os resultados trouxeram maior conforto às pessoas portadoras das formas clínicas graves da doença. Torna-se claro que um conjunto de ações profiláticas governamentais, divulgadas pelo Ministério da Saúde, associadas à elevação de padrões sociais da população, pode controlar a transmissão da doença a médio e longo prazo, como descrito por Dias e Coura e Dias. Mas resta muito a ser feito, sobretudo em relação a populações vivendo distantes de qualquer atenção à saúde ou possibilidade de tratamento e acompanhamento de seus problemas e dificuldades. Ainda há um contingente significativo de pessoas infectadas por T. cruzi, assintomáticos ou oligossintomáticos, cujas manifestações clínicas poderão surgir no futuro em uma fração desse grupo. Deve-se ressaltar que seu diagnóstico precoce é importante, pois há medicamentos eficazes para tratamento dos sintomas.

Os dados mais recentes apontam que a doença de Chagas segue como problema de saúde pública, sobretudo nas grandes cidades para onde convergiram pessoas infectadas pelo parasito, sejam aquelas assintomáticas ou oligossintomáticas em busca de trabalho, ou doentes em busca de tratamento. A doença de Chagas é a quarta causa de morte no Brasil entre as doenças infecto-parasitárias, sendo as faixas etárias mais atingidas acima de 45 anos; vê-se que é nas grandes cidades que se concentram os pacientes, especialmente na região sudeste (maiores detalhes na página do Ministério da Saúde/Secretaria de Vigilância em Saúde. Por isso, não se pode negligenciar na atenção à transmissão e cuidados com pessoas infectadas pelo parasito, estejam elas com manifestações clínicas ou não, mesmo que a transmissão domiciliar por Triatoma infestans tenha sido interrompida com sucesso.

 

Tabela 1: Dados epidemiológicos da frequência de soro-positivos para a doença de Chagas frente a outras doenças, a partir de : amostras de Bancos de Sangue apresentados na XI Reunião da Incosul, Paraguai em 2002.

 

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Histórico

O primeiro inquérito sorológico nacional para doença de Chagas (Brasil, 1975-1980)

João Carlos Pinto Dias

Pesquisador Titular do Centro de Pesquisas René Rachou/Fiocruz

E-mail: jcpdias@cpqrr.fiocruz.br

 

Aluízio Rosa Prata

Faculdade de Medicina da Universidade do Triângulo Mineiro

 

Carlos Chagas muito cedo já percebeu a grande desproporção entre os casos agudos e crônicos da tripanossomíase americana nas áreas endêmicas, sendo estes últimos extremamente mais numerosos e de muito maior impacto médico social. Intuiu, também, que a enfermidade deveria estar muito espalhada pelas Américas, mercê da rápida acumulação de evidências de triatomíneos infectados em casas rurais, do México à Patagônia, registrados por seu colega e colaborador, o entomologista Arthur Neiva, como descrito por Chagas em 1911, Coura em 1997 e Dias e Schofield em 1999. Chagas sabia das dificuldades de então para o diagnóstico da infecção crônica, dada a escassez de parasitos circulantes e pela falta de técnicas de detecção de anticorpos séricos, suficientemente específicas e sensíveis. Era uma época em que a Imunologia apenas desabrochava no cenário científico, com muito pouco realizado em termos das doenças parasitárias, como descrito por Dias em 2000. O paralelo entre o cenário triatomínico-tripanossômico e o peso médico social da tripanossomíase americana fora motivo de muitas especulações de Chagas, aliás, um dos principais motes da célebre polêmica da Academia Nacional de Medicina, nos anos 1920.

A doença só receberia atenção, estudos e prevenção se reconhecida objetivamente, numa extensão que demonstrasse sua importância. Os caminhos para tal reconhecimento passariam pela clínica e pelo laboratório, como descrito por Dias em 1948, Laranja e colaboradores em 1956 e Dias e Schofield em 1999.  Determinado, Chagas enveredou-se por ambos, conclamando pesquisa e estudos de apoio por parte de clínicos e patologistas como Eurico Villela, Gaspar Vianna, Crowell, Evandro e Margarinos Torres, e de patologistas clínicos e parasitologistas como A. Machado, C. Guerreiro, Rocha Lima, E. Brumpt e Emmanuel Dias, como revisto por Coura 1997 e Dias e Schofield. O xenodiagnóstico fora até os anos quarenta a principal ferramenta de detecção da infecção crônica, desenvolvido por Brumpt e aperfeiçoado por Emmanuel Dias, com restrições por sua baixa sensibilidade e pelas dificuldades técnicas e logísticas de sua implementação em inquéritos de massa. A reação de fixação de complemento de Guerreiro e Machado, descrita em 1913, mostrava-se de realização muito complexa e apresentava problemas de sensibilidade, em trabalhos pioneiros de Villela, entre outros, como descrito por Camargo e Takeda e Dias e Schofield.

A doença de Chagas crônica começou realmente a ser reconhecida na segunda metade dos anos 1940, mercê de trabalhos na zona endêmica de Bambuí, por Emmanuel Dias e colaboradores, como revisto por Dias e Schofied e Morel 1999. Naquele foco, foi re-estudada e sistematizada a cardiopatia crônica chagásica, por Laranja, Dias, Nóbrega e Miranda em 1956, tendo sido fundamental, para tanto, um preciso diagnóstico sorológico. Isto foi conseguido mercê dos excelentes trabalhos de aperfeiçoamento da reação de fixação de complemento por Júlio Muniz, por Gilberto de Freitas e por José Lima Pedreira de Freitas, entre outros, facultando estudos em populações de áreas endêmicas que também começaram por Bambuí, como publicado por Muniz e Freitas em 1944 e Freitas em 1947.

Foi clássico o primeiro inquérito de larga escala realizado naquela área por Dias e colaboradores, seguindo-se trabalhos similares em São Paulo, Nordeste, Rio Grande do Sul, Goiás e Rio de Janeiro, mais tarde no Nordeste e no Centro Oeste, como descrito por Dias e colaboradores em 1948 e 1953. No início dos anos sessenta, Salgado e Pellegrino, como publicado em 1968, realizaram em Minas Gerais um extenso inquérito sorológico escolar, que evidenciava importantes taxas de transmissão da doença. A seguir, inquéritos sistemáticos em Bambuí e São Paulo foram usados pela primeira vez para medir o impacto de ações de controle, uma estratégia também aplicada na Venezuela e na Argentina, como descrito por Dias em 1967 e 1974, Puigbó e colaboradores, Salgado e Pellegrino, Souza e colaboradores e Segura. Os inquéritos multiplicaram-se e foram ganhando aperfeiçoamentos, especialmente com o advento de modernas técnicas laboratoriais como a hemaglutinação, a imunofluorescência e, mais tarde, a ELISA, como descrito por Camargo e Hoshinu-Shimizu e Camargo e colaboradores.  Com base nas evidências acumuladas, em meados de 1970, um grupo de cientistas e sanitaristas, com o apoio do CNPq, do Ministério da Saúde e da Universidade de São Paulo, entendendo ser altamente oportuna a realização de uma ampla pesquisa da tripanossomíase no Brasil, planejou e executou o Primeiro Inquérito Nacional de Prevalência (INP) que teve papel fundamental para a priorização do controle da endemia em nosso País, como revisto por Coura, Morel e Dias em 2002.

Do ponto de vista histórico, a efetivação do INP resultou de uma progressiva articulação da comunidade científica brasileira com as autoridades sanitárias, durante os anos 1970. Ao início daquela década havia ocorrido no Brasil uma reforma institucional que esvaziara o Ministério da Saúde de quadros técnicos e de investigação, gerando mal estar, competição e perda de referências científicas, uma situação negativa que se queria reverter. Em contraponto, um processo acadêmico institucional que remontava ao início dos anos 1950 reforçava a comunidade científica nacional, especialmente marcado pela criação do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), da Organização Mundial da Saúde e, mais particularmente, da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), como descrito por Morel e Dias em 2000. A doença de Chagas fora posta na agenda dessas instituições, em termos de congressos, reuniões técnicas, incentivo à pesquisa e publicações. Como antecedente Emmanuel Dias conclamara a Organização Panamericana da Saúde (OPAS) num congresso mundial de Lisboa, em 1958, a dar prioridade ao controle da endemia, genuína e exclusivamente panamericana, recebendo do Dr. Fred Soper, então diretor, a resposta pragmática: “you must to sell the idea…”, descrito por Dias em 1959 e Dias e Schofield. Realmente, a carga da doença era suspeitada e até calculada, mas faltavam ainda, na prática, dados de prevalência e morbi-mortalidade que motivassem e justificassem os necessários investimentos em seu controle, de forma racional e continuada. Em 1975, foi revisto e racionalizado o programa ministerial. Os recursos disponíveis na Sucam alcançavam aproximadamente o necessário para a cobertura de 60% da área endêmica (luta anti-vetorial). À época, recém-criado o Programa Integrado de Doenças Endêmicas do CNPq (PIDE), uma reunião técnica entre pesquisadores e Ministério resolveu desencadear dois inquéritos epidemiológicos que servissem para dimensionar o problema da doença de Chagas no Brasil, para direcionar e orientar melhor as ações de controle, e também para motivar e justificar os necessários recursos materiais, humanos e financeiros que permitissem a cobertura total da área endêmica. Estes seriam o Inquérito Nacional de Triatomíneos Domiciliados e o Inquérito Nacional de Prevalência por soro-epidemiologia, como descrito por Camargo e colaboradores, Fiúsa Lima e Silveira, Silveira e colaboradores e revisto por Dias em 2002. O inquérito triatomínico abarcou mais de 2.400 municípios, sendo realizado integralmente pelas equipes regionais e recursos financeiros da Sucam, sendo publicado por Silveira e colaboradores em 1984.

Como base fundamental para o INP, foi de alta importância a sistematização das metodologias epidemiológica e sorológica, de tal forma que se dispusesse de uma representatividade significativa do universo a ser estudado e que a técnica sorológica fosse bastante reprodutível, de alta sensibilidade e alta especificidade. À prática da sorologia em doença de Chagas crônica havia evoluído bastante, com o advento e aprimoramento de técnicas mais simples, confiáveis que a clássico teste de Guerreiro e Machado. Este era complexo e apresentava discrepâncias de resultados entre diferentes laboratórios, embora tivesse prestado excelentes informações em mãos de bons sorologistas, em diversos inquéritos regionais, como descrito por Dias e colaboradores em 1947, Dias em 1967, Salgado e Pellegrino em 1968, Prata e colaboradores em 1976 e Camargo e colaboradores em 1977. Nos anos 1960, entre outras, estariam já disponíveis as técnicas de hemaglutinação indireta e de imunofluorescência indireta, aperfeiçoadas para a detecção de anticorpos anti-T. cruzi, como descrito por Camargo e Hoshimu-Shimizu e Camargo e Takeda. Em particular, ambas permitiam uma importante simplificação, por viabilizarem a coleta em lâminas de papel de filtro, facilitando a coleta de campo e o transporte, além de independerem de punção venosa.

O inquérito foi levado a cabo a partir de 1975, sendo a fase de coleta mais intensa nos anos 1976-79, com atividades de consolidação (inclusive de repetições sub-regionais) até finais de 1981. Toda a operação foi conduzida e coordenada de modo inter-institucional e trans-disciplinar, cabendo a coordenação geral a um colegiado formado pelo Ministério da Saúde (Sucam, Drs. Antônio Carlos Silveira e Pedro Tauil) e pela Universidade de São Paulo, esta última através do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina de São Paulo (Profs. Drs. Guilherme Rodrigues da Silva e Euclydes A. Castilho) e do Laboratório de Imunologia do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo (Prof. Mário E. Camargo). Por amostragem simples, equipes de agentes da Sucam colheram mais de 1,5 milhões de amostras de sangue por punção digital e transporte em papel de filtro em localidades rurais menores de 2.500 habitantes em todos os municípios brasileiros de então, com exceção daqueles do Estado de São Paulo, que desenvolvia particularmente ações próprias de controle e avaliação, como descritos por Silva e colaboradores e Souza e colaboradores. A amostragem foi calculada de forma aleatória simples, em zona rural, com estratificação de localidades pelo número de casas, como mostrado por Camargo e colaboradores e Fiúsa Lima e Silveira 1984. A colheita foi feita sobre população geral de áreas rurais, abrangendo todos os moradores da habitação sorteada, usando-se lancetas descartáveis para punção de polpa digital. O suporte fez-se em área padronizada de papel de filtro (Whatmann número 1), o que facilitou imensamente a colheita, o armazenamento e o transporte. Fazia-se a secagem no ambiente e empacotamento em envelopes de plástico, para conservação em geladeira comum e caixas de isopor até a chegada aos laboratórios regionais. Estes laboratórios foram em número de 17, alocados em vários estados brasileiros (laboratórios estaduais, ou de universidades, ou de institutos de pesquisa), tendo sido montados, supervisionados e municiados pelo Laboratório Central do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, como descrito por Camargo e colaboradores. A técnica utilizada foi a de imunofluorescência indireta, com antígeno e conjugado preparados pelo Laboratório Central, utilizando-se como corte a diluição 1:40. Para controle de qualidade, cada laboratório recebeu um painel padronizado de soros positivos e negativos, preparados pelo Instituto de Medicina Tropical de São Paulo. Todos os soros positivos e parte dos negativos dos laboratórios regionais foram re-testados pelo Laboratório Central, anotando-se também vários episódios de repetições em regiões ou municípios com problemas na primeira coleta (conservação, identificação etc.).

Os resultados gerais do inquérito foram amplamente divulgados, sendo apropriados em termos de prevalência global no País, Estados e Municípios, calculando-se a proporção de soros positivos por faixa etária. Estimou-se para a população geral rural brasileira uma prevalência global de 4,2% de infecção pelo T. cruzi, com maiores taxas de prevalência em Minas Gerais e Rio Grande do Sul (8,8%), Goiás (7,4%), DF (6,1%), Sergipe (6,0%) e Bahia (5,4%). Seguiram-se Piauí e Paraná (4,0%), Paraíba (3,5%), Pernambuco e Mato Grosso (2,8%), Alagoas e Mato Grosso do Sul (2,5%), Acre (2,4%), Amazonas (1,9%), Rio Grande do Norte (1,8%), Rio de Janeiro (1,7%), Santa Catarina (1,4%), Ceará (0,8%), Pará (0,5%), Rondônia (0,4%), Roraima e Espírito Santo (0,3%) e Maranhão (0,1%), ficando negativo o Amapá, segundo Fiúsa Lima e Silveira. De modo geral, observou-se que a distribuição das taxas de prevalência não obedeceu a um padrão de continuidade, mas mostraram a existência de bolsões sub-regionais de transmissão mais intensa, geralmente ligados a maiores densidades triatomínico-tripanosômicas, reveladas pelo inquérito entomológico, um fato, aliás, já observado em pesquisas sub-regionais anteriormente realizadas, como mostrado por Dias e coalboradores em 1947, Dias em 1967, Camargo e colaboradores e Silveira e colaboradores. Como não puderam ser desagregados os dados sobre autoctonia, taxas de prevalência inesperadas como no DF, Amazônia Ocidental e Santa Catarina foram revistas posteriormente, explicáveis eventualmente por migrações internas a partir de áreas de maior endemicidade, como descrito por Fiúsa Lima e Silveira. Outras situações, como a do município de Barcelos (Amazonas) particularizaram uma característica focal de maior densidade triatomínica, neste caso, o Rhodnius brethesi, como descrito por Coura em 1990.

Como previsto, este INP possibilitou um melhor direcionamento do programa de controle e foi argumento muito importante para a priorização das ações pelo governo, ocorrida através de recursos financeiros suplementares, a partir de 1983, que permitiram cobertura total da área endêmica, revisto por Dias em 2002. Também rendeu importantes frutos na disseminação do diagnóstico da infecção chagásica por todo o país, assim como ensejou um desdobramento relevante ao possibilitar a realização de um inquérito eletrocardiográfico nacional (1980-86), feito por metodologia adequada e pareamento de indivíduos soro-positivos e soro-negativos, o qual revelou padrões variáveis de morbidade, em distintas regiões, como descrito por Macedo. A metodologia desenvolvida possibilitou inúmeros estudos focais ou regionais, disseminando-se o uso da coleta em papel de filtro e gerando-se o aproveitamento dos laboratórios regionais de sorologia como embriões dos sistemas estaduais de referência e capacitação ao diagnóstico da doença de Chagas no Sistema Único de Saúde do Brasil. Outro bom produto foi a medida do impacto das ações de controle pela Sucen, em São Paulo (na década de 1980) e do Programa do Brasil (na década de 1990), evidenciando enorme redução da incidência da doença em grupos etários jovens, nas áreas trabalhadas. O INP serviu ainda, à distância, como modelo e referência para estudos similares em vários outros países, como o México, Honduras, Bolívia etc. E foi, sobretudo, um importante marco da Saúde Pública Brasileira, demonstrativo de competência, de excelência metodológica e de vontade política, emulada por correta e coerente motivação científica, como descrito por Morel, Dias e Schofield, Silveira e colaboraddores e diversos relatos da OMS.

Passados cerca de trinta anos, os resultados do INP estão sendo revistos por um grupo de pesquisadores, associados ao Ministério da Saúde e à Universidade de São Paulo, com vistas principalmente à determinação das taxas de prevalência por faixa de idade, o que permitirá fazer comparações e estudos de coorte em trabalhos posteriores, especialmente no que tange à avaliação de impacto das ações de controle. Possibilitará ainda, indiretamente, estimar a importância da transmissão congênita da infecção chagásica, através do estudo de prevalência em crianças de baixa idade. Para complementá-lo, em ambos os sentidos, está em curso um novo inquérito nacional para indivíduos de 0 a 5 anos de idade, em estudo amostral de cerca de 150.000 brasileiros, contemplando todos os Estados da Federação, já em fase de finalização. Como esperado, a prevalência encontrada está sendo extremamente baixa, indicando reduzidíssimos graus de transmissão. Resultados preliminares de quase 100 mil amostras revelaram apenas 21 casos positivos, ou seja, 0,021% de prevalência, havendo positividade em apenas seis Estados até aqui (CE, PB, AL, BA, MG e RS). Um número expressivo de crianças soro-positivas antes de seis meses de vida negativou-se quando a reação foi repetida após os sete meses, o que evidencia transferência passiva de anticorpos maternos, e também indica um muito baixo nível de transmissão congênita no Brasil (exceção, talvez, para o Rio Grande do Sul). Os resultados negativos para a Região Amazônica revelam, até aqui, ausência ou mínima incidência de transmissão na faixa etária examinada naquela área. O novo inquérito deve terminar em 2007, podendo indicar, além do impacto positivo das ações de controle, falhas operacionais ou novas situações epidemiológicas, representadas pela persistência de alguns bolsões residuais de transmissão natural ou congênita da doença de Chagas.

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Paleoparasitologia

Paleoepidemiologia da doença de Chagas

Adauto Jose Goncalves de Araújo

Departamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz

 

Paulo Chagastelles Sabroza

Departamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz

E-mail: sabroza@ensp.fiocruz.br

 

Luiz Fernando Rocha Ferreira da Silva

Departamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz

E-mail: ludovico@ensp.fiocruz.br

 

Os dados da paleoparasitologia mostram que a infecção por Trypanosoma cruzi encontrava-se em populações pré-colombianas tanto nas regiões andinas como no cerrado brasileiro ou nas planícies desérticas norte-americanas. As evidências mais antigas provêem de múmias (Figura 1) Chinchorro, no Peru, com datações de 9.000 anos, descritas por Aufderheide e colaboradores em 2004, e de um corpo mumificado no Brasil, com antiguidade de 7.000 anos, recentemente decrito por Lima e colaboradores.

 

Figura 1

 

Acreditava-se que a infecção chagásica teria surgido em populações humanas após a adoção de hábitos sedentários entre os habitantes da região andina, coincidente com a domesticação de pequenos roedores do gênero Cavia, para alimento ou rituais fúnebres, como descrito em Dias e Coura. A presença dos animais, criados no interior das casas de adobe, atraiu os insetos vetores que se adaptaram às moradias passando a alimentar-se de sangue humano e animais domésticos. Os vestígios arqueológicos apontam que o convívio entre humanos, roedores e triatomíneos vetores, particularmente a espécie Triatoma infestans, teria partido dos vales andinos, na região hoje correspondente ao território boliviano, conforme mostrado por Bargues e colaboradores. O estabelecimento de moradias estáveis, cujas características ofereciam nichos colonizáveis pelos triatomíneos, juntamente com a domesticação de animais, teria facilitado a domiciliação dos insetos entre as populações nas terras altas da América do Sul, enquanto nas terras baixas, por conta dos hábitos nômades e uso de moradias construídas com palha e madeira, os insetos não teriam sido capazes de se adaptar e, portanto, a doença de Chagas teria apenas se dispersado das populações da costa do Pacífico às terras baixas da América do Sul após a chegada de europeus e africanos, como descrito por Coimbra Jr. A difusão da infecção chagásica coincidiria assim com a introdução das casas de adobe nas terras baixas e aumento do comércio e trânsito entre as populações humanas.

Os primeiros estudos de paleoparasitologia pareciam confirmar a teoria sobre a origem da doença de Chagas nas populações andinas. Lesões patológicas identificadas em múmias peruanas e chilenas, compatíveis com doença de Chagas, constataram a infecção chagásica e suas consequências. As investigações concentraram-se nos corpos mumificados do deserto de Atacama e regiões arqueológicas próximas, descrevendo-se lesões sugestivas de megas, inicialmente descritos por Rothhammer e colabordores em 1985, com detalhamento histopatológico mostrando ninhos de formas amastigotas foi descrito por Fornaciari e colaboradores. Guhl e colaboradores e Ferreira e colaboradores confirmaram esses diagnósticos empregando técnicas de biologia molecular, e recuperação de material genético do T. cruzi em múmias andinas. Aufderheide e colaboradores estudaram múmias datadas de cerca de 9.000 anos infectadas pelo parasito, datadas, portanto, de período anterior ao admitido para domesticação de roedores e adoção de hábitos sedentários na região andina.

Contudo, desde 1984, havíamos levantado outra hipótese sobre a origem da doença de Chagas nas populações pré-históricas americanas. Ao examinar triatomíneos da espécie T. brasiliensis infectados pelo T. cruzi, que tentavam se alimentar nos arqueólogos a copiar pinturas rupestres das paredes dos abrigos sob-rocha no Parque Nacional Serra da Capivara, sudeste do Piauí, pensamos que os antigos artistas também pudessem ter sido picados pelos insetos e infectados pelo parasito. Mas, àquela época, não havia como se testar a hipótese sobre a infecção pelo T. cruzi nos parcos vestígios humanos encontrados nos sítios arqueológicos, como descrito por Araújo e colaboradores. Somente com o advento das técnicas da biologia molecular tornou-se possível comprovar tal hipótese. Principiamos um projeto de investigação em populações pré-históricas sul-americanas.

Os primeiros testes buscavam estabelecer padrões para aplicar as técnicas de biologia molecular em material arqueológico. Fizemos infecções experimentais pelo T. cruzi em animais de laboratório, para em seguida sacrificá-los e dessecá-los, a simular mumificação natural. Ao se aplicarem técnicas de biologia molecular, os resultados foram adequadamente positivos, como demostrado por Bastos e colaboradores. Assim, foi possível usar esta metodologia em material arqueológico com resultados precisos em múmias chilenas do deserto de Atacama, conforme descrito por Ferreira e colaboradores.

Em seguida passamos a testar vestígios orgânicos provenientes de sítios arqueológicos fora da região dos Andes. O primeiro proveio de um corpo parcialmente mumificado, encontrado na região fronteira dos Estados Unidos e México com datação de 1.200 anos, no qual Reinhard e colaboradores descreveram massas fecais sugestivas de dilatação do intestino posterior, compatíveis com lesão chagásica. Dittmar e colaboradores descrevem que os resultados de testes de biologia molecular mostraram-se positivos, confirmando a infecção chagásica no indivíduo. Reinhard e colaboradores em 2007 especularam sobre o significado da doença chagásica nos grupos pré-históricos norte-americanos, assim como os mecanismos de transmissão do parasito, de acordo com os hábitos alimentares de então.

Prous e Schlobach e Kipnis encontraram corpos parcialmente mumificados no sítio arqueológico do vale do Peruaçu, norte do estado de Minas Gerais, Brasil, todos datados de épocas anteriores à invasão européia. Um deles, datado de cerca de 600 anos, continha enorme coprólito na cavidade pélvica, sugerindo megacólon, caracterítico da doença de Chagas. Em nosso laboratório o exame de parasitos intestinais mostrou a infecção por ancilostomídeos e Echinostoma sp., descrito por Sianto e colaboradores, enquanto os testes de biologia molecular em tecidos moles e ossos foram positivos para T. cruzi, como descrito por Araújo e colaboradores e Fernandes e colaboradores. Na mesma região arqueológica Lima e colaboradores examinaram um corpo esqueletonizado, datado de 7.000 anos, com resultado positivo para infecção chagásica. Deve-se ressaltar que, nestas regiões, ainda hoje a doença de Chagas prevalece como problema de saúde pública pois, apesar de não se registrar atividade de transmissão natural, permanecem os doentes crônicos.

Confirma-se, portanto, que a infecção por T. cruzi afetava grupos humanos muito antes de estabelecerem-se hábitos sedentários por domesticação de animais e plantas, para além da região andina, estendendo-se por onde havia bandos de caçadores-coletores a coabitar territórios partilhados com mamíferos reservatórios do parasito, como roedores e marsupiais, e respectivos vetores, insetos triatomíneos adaptados a alimentar-se de sangue. Deve-se assinalar, no entanto, que a presença da espécie T. infestans nos povoados pré-colombianos da região andina marca o início de um processo de desenvolvimento da doença de Chagas em populações humanas, por conta da domiciliação desta espécie de vetor, enquanto nas terras baixas brasileiras e de outras regiões, a transmissão da infecção dava-se por convivência com espécies de vetores silvestres.

A doença de Chagas parece ser tão antiga quanto à presença humana nas Américas, por onde existiam humanos, mamíferos reservatórios e triatomíneos vetores, Araújo e colaboradores. Para além da região onde se desenvolveram as civilizações andinas, a doença de Chagas acometia povos de outras regiões, díspares em suas culturas como as que habitavam a zona limítrofe do Texas e norte do México e o cerrado de Minas Gerais. As técnicas de biologia molecular permitiram separar linhagens do parasito entre TC I e TC II, caracterizando aspectos de convívio de humanos com T. cruzi em passado remoto, descrito por Dittmar e colaboradores e Lima e colabores.

Tais aspectos são importantes quanto a abordagens de saúde pública, pois a evolução da relação parasito-hospedeiro revela conduções de medidas de controle e intervenção nos mecanismos de transmissão da infecção e tratamento da doença.  Atenuações e incrementos de atributos patogênicos do parasito podem ser recuperados agora por técnicas da paleoparasitologia molecular. Vislumbram-se possibilidades de estudos sobre evolução pela recuperação de material genético em épocas passadas, desenhadas já por Greenblatt e Spigelman com respeito a Mycobacterium tuberculosis e outros parasitos.

Os estudos sobre a paleoepidemiologia da doença de Chagas buscam entender a origem e evolução da infecção pelo T. cruzi em humanos e demais hospedeiros mamíferos. Como já mostrado em outros parasitos, os estudos de paleoparasitologia molecular são capazes de trazer subsídios sobre aspectos evolutivos de virulência e patogenicidade extraídos de vestígios orgânicos acumulados no tempo. Assim, a recuperação de material genético de T. cruzi e de seus hospedeiros em diferentes áreas geográficas e com datações diversas, permite a perspectiva de se traçar a origem e caminhos de dispersão da doença de Chagas, bem como possibilidades de estudos sobre seu impacto nas populações pré-históricas.

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Importância social

A importância social da doença de Chagas: um problema do continente americano

João Carlos Pinto Dias

Centro de Pesquisas René Rachou/Fiocruz

E-mail: jcpdias@cpqrr.fiocruz.br

 

José Rodrigues Coura

Laboratório de Doenças Parasitárias, Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz

E-mail: coura@ioc.fiocruz.br

 

Este tema apresenta duas vertentes principais, conforme o ângulo de abordagem, (a) a primeira referindo-se às origens eco-biológicas e históricas da tripanossomíase americana e, (b) a segunda, aos aspectos de seu impacto social e ao seu controle na região. Estarão de um ângulo (i) os fatores bio-ecológicos que determinaram a ocorrência dos ciclos primitivos do Trypanosoma cruzi e, de outro, (ii) todo o contexto político, social e econômico que ocasionou a dispersão da endemia e particularizou as populações afetadas, também determinando as perspectivas de controle. Um (iii) terceiro ângulo enfoca e mostra importância da produção científica latino americana sobre o tema, bem como o papel político e social dos investigadores no enfrentamento da doença.

Estudos vários, desde Carlos Chagas, já situavam a distribuição praticamente exclusiva da doença em terras do Novo Mundo, inicialmente embasados nos levantamentos dos vetores domiciliados e de seus graus de infecção natural pelo T. cruzi, aos poucos complementados com dados da doença humana (inicialmente descrição de casos agudos) e também pela detecção de reservatórios domésticos e silvestres infectados por Chagas em 1911 e 1932, Mazza em 1949, Dias em 1953, Freitas em 1960, Dias e Coura em 1997, e relatado pela OMS em 2002. Na descrição original, Carlos Chagas já definia uma entidade americana por reconhecer tratar-se de uma nova tripanossomíase que descobrira na América, diferente da africana. Além do T. minasense, também descoberto por Chagas, uma série de outros tripanosomatídeos viriam a ser descritos no Continente, com destaque ao grupo vespertilionis (de morcegos) e, especialmente, o T. rangeli, também veiculado por triatomíneos, mas não patogênico para o homem. Com os achados de infecções naturais do homem pelo T. cruzi, triatomíneos e reservatórios silvestres e domésticos, do sul dos Estados Unidos à Patagônia, a denominação de “americana” para a tripanossomíase cruzi nunca foi contestada, como revisto por Dias em 1953, Coura em 1997 e Romero Sá em 2006.

A transmissão natural do T. cruzi vem ocorrendo no Continente Americano há vários milênios, a partir de um ciclo silvestre muitíssimo mais antigo que o doméstico. As mais antigas evidências de infecção humana datam de época bem mais recente, detectadas em múmias peruanas e chilenas de cerca de dois mil anos AC (ver arquivo: Paleoepidemiologia da doença de Chagas). A disseminação da endemia ocorreu fundamentalmente após a descoberta de Colombo, originária de grandes movimentos populacionais, alcançando os picos de endemicidade na primeira metade do Século XX, como descrito por Dias e Coura em 1997 e relatado pela OMS em 2002. Modernos estudos de Biologia Molecular e Genética indicam a evolução do T. cruzi a partir de ancestrais comuns com tripanosomatídeos australianos, existentes antes da separação da Pangéia, ficando o cruzi restrito às Américas e sendo transmitidos por hemípteros hematófagos da subfamília triatominae, cuja quase totalidade das espécies conhecidas limitara-se ao Novo Mundo, como revisto por Schofield em 1994 e Zingales e colaboradores em 1999. A infecção humana dependeu basicamente da aproximação do homem com os triatomíneos, correspondendo ao processo de domiciciliação (colonização de ecótopos artificiais) destes últimos, o que ocorreu para algumas poucas espécies ao longo da América Latina, como revisto por Martins em 1968, Barretto em 1979, Forattini 1980 e Dias e Coura em 1997. Nas últimas décadas, casos autóctones de doença de Chagas humana vêm sendo detectados em outros Continentes, mercê de migração de infectados que viabilizam transmissão transfusional, congênita, por transplantes de órgãos e por acidentes em laboratório, como revisto por Dias e Coura em 1997 e relatado pela OMS em 2002.

Do ponto de vista epidemiológico e político, a doença de Chagas constitui basicamente um problema da América Latina, mais especificamente de seus países continentais. São estimados entre 12-14 milhões de indivíduos infectados pelo T. cruzi em 19 países americanos de colonização Ibérica, ocorrendo apenas esporádicos casos de transmissão natural nos Estados Unidos. É também calculada uma proporção de entre 10 e 40 %, entre os infectados, aqueles que já têm ou que terão uma cardiopatia crônica devida à tripanossomíase americana, sendo que dos quais pelo menos 10 % apresentarão uma forma grave que lhes será provavelmente causa de morte e perda de preciosos anos de vida produtiva, como mostrado por Dias e Coura 1997, Akhavan em 1998 e pela OMS em 2002. Além da cardiopatia, formas digestivas (predominantes na América do Sul), absenteísmo, custos previdenciários e médico-hospitalares, processos de perpetuação de pobreza familiar em zonas endêmicas, baixa produtividade e custos de programas de controle e vigilância (inclusive em bancos de sangue, entre outros, são elementos que indicam importantes gastos financeiros e sociais dos países afetados pela endemia. Em adição, a crescente migração de chagásicos para os Estados Unidos (muito mais que para o Canadá), está criando neste país uma preocupação importante com os naturais riscos de transmissão transfusional, congênita e por transplantes de órgão, acarretando ainda gastos com o manejo de pacientes crônicos, especialmente os com cardiopatia, como revisto por Schmunis em 1997 e relatado pela OMS em 2002. A partir do ciclo enzoótico primitivo, a doença humana dispersou-se nas Américas por circunstâncias e fatores de natureza basicamente antrópica e político social, retratados em ranchos rurais de má qualidade, populações socialmente excluídas, bolsões de pobreza e baixa produção, sistemas de saúde ineficientes e espaços geograficamente abertos, principalmente por desmatamentos intensivos. Neste contexto, o triatomíneo domiciliado será balizado por fatores geo-ecológicos como altos teores de salinidade, espaços umbrosos muito densos, variados índices higrométricos, elevadas altitudes e latitudes além do paralelo 49º. S., como revisto por Forattini, Schofield, Carcavallo e colaboradores, Dias e Coura em 1997 e relatado pela OMS em 2002. Ao norte da América Setentrional, a par da latitude e da ausência de triatomíneos com alto poder de domiciliação, estarão em cena fatores sócio econômicos e políticos como o tipo de colonização humana dos Estados Unidos e do Canadá que não irá ensejar habitações toscas como as cafuas, tampouco a exclusão social da região latina, como apontado por Briceño-León e Dias e Borges Dias.

Assestada na parte mais pobre do Novo Mundo, esta tripanossomíase não terá a repercussão nem a motivação ao estudo de outras protozooses mais universais, como a malária e as leishmanioses. Configurar-se-á basicamente um problema da região, mercê de sua incidência, distribuição e impacto médico social, gerando naturalmente maior interesse e expertise no segmento latino americano, a começar por sua descoberta. A doença de Chagas não será um óbice ao processo de ocupação de espaços por potências estrangeiras, dada a sua lenta evolução clínica e a época recente de seus picos epidêmicos, ocorrentes principalmente no século XX, quando os países afetados já eram politicamente independentes. Já por isso, Carlos Chagas em 1911 conclamava que os próprios governos dos países afetados se encarregassem da luta sem tréguas ao Conorhinus, ligando esta luta ao desenvolvimento das nações, à ocupação do solo e ao aprimoramento da raça. Três décadas depois deste posicionamento, discípulos de Chagas retomarão o mote, principalmente como consequência dos conhecidos eventos de Mendoza (IX Reunião da MEPRA e descrição de Romaña) e os trabalhos de Bambuí, que culminaram com a sistematização dos estudos epidemiológicos e a caracterização definitiva do quadro da cardiopatia crônica chagásica Rassi, como revisto por Coura em 1997 e Dias e Schofield. E serão Emmanuel Dias, Cecílio Romaña, Salvador Mazza, Pedreira de Freitas e Francisco Laranja, os arautos pioneiros da idéia de que a enfermidade era um problema continental e disso decorriam inequívocas responsabilidades governamentais dos países endêmicos, revisto por Diasem 1988. Neste contexto, duas situações fundamentais se entrecruzaram: de um lado, a evolução científica dos “chagólogos” latino americanos (incluindo o desenvolvimento de ferramentas e estratégias de prospecção da enfermidade, como a sorologia texto histórico e a eletrocardiografia e, de outro, o envolvimento da Organização Panamericana da Saúde (OPAS), assumindo um papel catalisador e de motivação junto aos governos regionais e à Comunidade Científica, como discutido por Dias e Schofield. De modo geral, ambas as situações se deram a partir da segunda metade da década dos 1950, mercê de esforços muito particulares de pesquisadores e sanitaristas envolvidos com a doença, já descritos os principais quadros clínicos e formas de transmissão, bem como disponibilizadas as ferramentas básicas de prospecção e de controle (vetorial e transfusional). Se bem que em relativo pouco tempo se expandiram os inquéritos de prevalência em várias partes do Continente, o que mais tardou foram os estudos de morbi-mortalidade, até hoje muito escassos em vários países, o que retardou bastante as ações de controle em vários deles, como revisto por Coura em 1997 e Dias e Schofield. De modo mais incisivo, coube a Emmanuel Dias o importante papel instigador dos estudos e ações de controle da doença no Continente, não somente mapeando-a de forma exemplar já nos anos 1950 como estimulando estudos regionais, desenvolvendo estratégias de trabalho, formando seguidores e estimulando diversos países e a própria OPAS. Nesta jornada fez-se acompanhar por formidáveis parceiros como Pedreira de Freitas, Mário Pinotti, Félix Pífano, Amador Neghme, Cecílio Romaña, Arnoldo Gabaldón, Hugo Escomel, Rafael Torrico, Rodrigo Zeledón e vários outros, como relatado por Dias em 1947 e em 1988. O crescimento de publicações, experiências de controle e levantamentos sobre a doença torna-se logarítmico ao final dos 1950, época que coincide com uma grande efervescência sanitária na luta contra a malária na região. Será emblemática uma cobrança de Dias às autoridades sanitárias e particularmente à OPAS, em 1958, ao denunciar veementemente o descaso para com a doença de Chagas pelas mesmas no Congresso Internacional de Malariologia e Doenças Tropicais, em Lisboa, descrito por Dias em 1959. Aos poucos, esta situação começará a mudar, especialmente com a maior inserção da OPAS na luta contra a doença e com o maior acercamento entre os cientistas envolvidos, como descrito por Romaña em 1979 e Dias e Schofield. Papel particular desempenharão intâncias e programas regionais como o Programa Integrado de Doenças Endêmicas do CNPq (Brasil), o Programa de Salud Humana (Argentina), a Sociedade Brasileira de Medicina Tropical e o Tropical Disease Research (OMS/PNUD, WB). Nos anos 1980 estarão amadurecidos alguns programas nacionais de controle vetorial e será demarrado, com o advento da síndrome da imunodeficiência humana (AIDS), o definitivo controle dos bancos de sangue. Na década seguinte haverá coalizão e maior cooperação entre vários países da Região, configurando-se as Iniciativas Internacionais de luta contra a doença, um prenúncio de novos tempos e de avanços substanciais sobre a transmissão do T. cruzi na América Latina, como relatado por Coura em 1997 e Dias em 1988 pela OMS em 2002.

No plano mais contextual do Continente, o reconhecimento da doença e seu manejo passarão por questões políticas complexas, a começar da fragmentação das políticas sociais e internacionais, por décadas estando a região dependente de ajuda externa e carente de valores éticos e democráticos, como descrito por Dias e Borges Dias, Briceño-León e Coura. Na verdade, o grande problema da doença de Chagas humana foi sua enorme expansão regional, dependente de relações espúrias de produção e da consequente exclusão política e social das populações afetadas, situações essas de difícil, lenta e complexa solução, como proposto por Martins em 1968 e Dias e colaboradores em 1994. Em contraponto, a doença de Chagas tem contribuído inequivocamente para o aprimoramento e a maturidade da comunidade científica latino americana, detentora da maior “expertise” sobre a endemia e propulsora engajada em seu controle. Tem ainda servido, na região, como motivadora para importantes análises médico-sociais, desnudando e ajudando a entender problemas e fatores causais de natureza política e social envolvidos na produção, na expansão e no controle da endemia. No lado positivo, desde os anos 1990 o controle da doença na região vêm assumindo uma forma de cooperação e integração entre os países, no bojo das chamadas e bem sucedidas “Iniciativas”, como a do Cone Sul  – Incosul, do Pacto Andino, da América Central, do México e da Amazônia, assim contribuindo para a consolidação da identidade regional, como revisto por Dias e colaboradores em 1994, Schmunis em 1997 e relatado pela OMS em 2002.

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Ecoepidemiologia da doença de Chagas

Marli Lima

Laboratório de Ecoepidemiologia da doença de Chagas, Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz
E-mail: mmlima@ioc.fiocruz.br

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