Diagnóstico

Situação atual

Diagnóstico laboratorial – situação atual

Yara de Miranda Gomes

Laboratório de Imunoparasitologia, Departamento de Imunologia, Instituto Aggeu Magalhães/Fiocruz

E-mail: yara@cpqam.fiocruz.br

 

Na fase aguda e nas formas crônicas da doença de Chagas o diagnóstico etiológico poderá ser realizado pela detecção do parasito através de métodos parasitológicos (diretos ou indiretos) e pela presença de anticorpos no soro, através de testes sorológicos sendo os mais utilizados a imunofluorescência indireta (IFI), hemaglutinação indireta (HAI) e enzyme-linked immunosorbent assay (ELISA). Testes de maiores complexidades como o teste molecular, utilizando polymerase chain reaction (PCR), apesar de sua limitação pela ausência de protocolos padronizados, tem indicação quando os testes sorológicos apresentarem resultado indeterminado ou para o controle de cura após o tratamento antiparasitários. Nesse caso, a PCR deve ser realizada por laboratórios de competência reconhecida e realizada por especialista da área.

 

Fase aguda

Na fase aguda da doença de Chagas o diagnóstico laboratorial é baseado na observação do parasito presente no sangue dos indivíduos infectados, através de testes s parasitológicos diretos como exame de sangue a fresco, esfregaço e gota espessa (Figura 1). O teste direto a fresco é mais sensível que o esfregaço corado e deve ser o método de escolha para a fase aguda. Caso estes testes sejam negativos, devem ser usados métodos de parasitológicos indiretos. Os testes de concentração (micro-hematócrito ou Strout) apresentam 80 a 90% de positividade e são recomendados no caso de forte suspeita de doença de Chagas aguda e negatividade do teste direto a fresco. Em casos sintomáticos por mais de 30 dias, devem ser os testes de escolha, uma vez que a parasitemia começa a declinar (segundo I Consenso Brasileiro em Doença de Chagas do Ministério da Saúde em 2005), revisto em 2015 na forma do II Consenso Brasileiro em Doença de Chagas (Epidemiol. Serv. Saúde, Brasilia, 25 (núm. esp):7-86, 2016.

 

Figura 1 – Formas tripomastigotas do Trypanosoma cruzi no sangue periférico. Esfrecaço sanguíneo corado pelo Giemsa.

 

 

Fase crônica

Na fase crônica da doença o diagnóstico parasitológico direto torna-se comprometido em virtude da ausência de parasitemia. Os métodos parasitológicos indiretos (xenodiagnóstico – ou hemocultivo) que podem ser utilizados, apresentam baixa sensibilidade (20-50%). Sendo assim, o doença é geralmente diagnosticada por detectar IgG que se liga especificamente ao T. cruzi. Portanto, na fase crônica o diagnóstico é essencialmente sorológico e deve ser realizado utilizando-se dois testes de princípios metodológicos diferentes: um teste de elevada sensibilidade (ELISA com antígeno total ou frações semi-purificadas do parasito ou a IFI) e outro de alta especificidade (ELISA, utilizando antígenos recombinantes específicos do T. cruzi) ou dois testes sorológicos com diferentes preparações antigênicas, ambos os quais devem ser realizados concomitantemente or two serological tests involving distinct antigen preparations, both of which must be carried out concomitantly  (Figura 2).

 

Figura 2: Fluxograma para a realização de testes laboratoriais para a doença de Chagas na fase crônica (segundo I Consenso Brasileiro em Doença de Chagas do Ministério da Saúde em 2005), revisto em 2015 na forma do II Consenso Brasileiro em Doença de Chagas, 2016 (Epidemiol. Serv. Saúde, Brasilia, 25 (núm. esp):7-86, 2016).

 

 

Transmissão vertical

Em casos suspeitos de transmissão congênita, é importante confirmar o diagnóstico sorológico da mãe. Caso a infecção materna seja confirmada, deve se realizar o exame parasitológico no recém-nascido. Se for positivo, a criança deve ser submetida ao tratamento etiológico imediatamente. Os filhos de mães chagásicas com exame parasitológico negativo ou sem exame devem retornar entre seis e nove meses, a fim de realizarem testes sorológicos para pesquisa de anticorpos anti-T. cruzi da classe IgG. Se a sorologia for negativa, descarta-se a transmissão vertical. A Figura 3 apresenta o fluxograma de diagnóstico em casos suspeitos de transmissão vertical. Os casos positivos devem ser tratados, considerando-se a alta taxa de cura nesta fase. Em virtude do elevado número de falso-negativos em transmissão congênita, não se recomenda a pesquisa de anticorpos anti-T. cruzi das classes IgM e IgA.

 

Figura 3: Fluxograma para avaliação da transmissão vertical do T. cruzi (segundo I Consenso Brasileiro em Doença de Chagas do Ministério da Saúde, 2005).

 

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Histórico

História dos métodos de diagnóstico para a doença de Chagas

Alejandro Luquetti Ostermayer*

Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública, Universidade Federal de Goiás

E-mail: luquetti@ufg

 

* O autor agradece ao professor emérito Dr. Joffre Marcondes de Rezende pelas sugestões na elaboração deste texto.

O diagnóstico da infecção pelo Trypanosoma cruzi, agente causal da doença de Chagas, como em outras enfermidades infecciosas, tem como base três parâmetros distintos: as manifestações clínicas, que, se presentes, permitem ao médico suspeitar da infecção; os antecedentes epidemiológicos, que também induzem o clínico à suspeita; e os métodos de diagnóstico, em geral laboratoriais, que permitem confirmar ou excluir a suspeita diagnóstica na maioria das situações. Caberá ao clínico, de posse das informações acima, decidir se o indivíduo é infectado ou não. Cabe assinalar que infecção por certo agente não é sinônimo de doença; haja vista que muitas infecções transcorrem sem doença clinicamente ostensiva. Na infecção pelo T. cruzi, lembramos que mais da metade dos infectados não apresenta cardiopatia, nem megaesôfago nem megacólon, as principais manifestações da doença de Chagas. Nesses casos em particular, o diagnóstico é sugerido pelos antecedentes epidemiológicos e confirmado ou excluído pelos resultados dos exames laboratoriais.

Pelo exposto, os métodos de diagnóstico adquirem particular importância na doença de Chagas. Acresce que esta infecção se apresenta apenas em duas fases, distintas quanto à cronologia da infecção, às manifestações clínicas e aos métodos de diagnóstico. A fase aguda, inicial, com febre e sintomas inespecíficos (às vezes com sinal de Romaña ou chagoma de inoculação) diagnostica-se por métodos parasitológicos, em decorrência da elevada parasitemia, que define esta fase. Na fase crônica, que tem o seu início após a fase aguda e que, como assinalado, é assintomática em mais da metade dos casos, o diagnóstico laboratorial baseia-se na pesquisa indireta de sinais da infecção, ou seja, a presença de anticorpos anti-T. cruzi.

A história dos métodos de diagnóstico pode ser dividida em três períodos, de diferente duração. O primeiro período, desde a descoberta até 1960, é comentado a seguir.

Os primeiros métodos de diagnóstico desenvolvidos foram os métodos parasitológicos. Carlos Chagas baseou-se no achado de T. cruzi na criança Berenice, para afirmar que este agente era o responsável do quadro clínico. Tratava-se de fase aguda da doença, e o diagnóstico, hoje em dia, mais de 100 anos após, continua sendo realizado da mesma forma, com a pesquisa direta do T. cruzi no sangue periférico (Figura 1).

 

Figura 1: As setas indicam T. cruzi entre as hemácias, em gota de sangue.

 

Na fase crônica da tripanossomíase, nos primeiros anos após a sua descoberta, o diagnóstico de laboratório era feito por inoculação do sangue dos pacientes em cobaias. Chagas descreveu a presença de formas parasitárias esquizogônicas no pulmão das cobaias infectadas, que julgou fossem do T. cruzi. Este achado passou a constituir um método diagnóstico na infecção experimental da cobaia até 1913, quando se demonstrou que se tratava, na verdade, de outro parasito, o Pneumocystis carini, e o método foi abandonado.

Em 1914, Brumpt descreveu outra modalidade de diagnóstico parasitológico, o xenodiagnóstico, que inicialmente foi pouco utilizado. As primeiras referências ao seu emprego no diagnóstico da doença de Chagas são de Torrealba, na Venezuela em 1934; de Emmanuel Dias, no Brasil e Bacigalupo, na Argentina. O método só passou a ser utilizado rotineiramente após sua padronização por Cerisola e colaboradores em 1974.

A primeira descrição de pesquisa de anticorpos data de 1913 e deve-se a Guerreiro e Machado. Tratava-se da reação de fixação de complemento, logo conhecida como a reação de Guerreiro e Machado, que foi o único teste sorológico disponível durante mais de 50 anos, e que foi realizado de rotina para o diagnóstico até poucos anos. Este teste sofreu múltiplas modificações e padronizações, destacando-se a contribuição de Almeida e Fife em 1976. A complexidade técnica, a utilização de vários reagentes que demandam padronização diária, e o tempo de reação, levaram ao seu abandono a partir de 1995, principalmente pela existência de testes mais simples. Nessa época, um parecer técnico do Ministério da Saúde, recomendou a sua substituição por outros testes. (Rev Inst Med Trop São Paulo, 1996)

Nesse primeiro período na evolução do conhecimento do diagnóstico, até 1960, contava-se apenas com dois testes por mais de 50 anos. O segundo período, de 1960 a 1975, foi de grande desenvolvimento, como será relatado a seguir.

O hemocultivo, introduzido como método diagnóstico parasitológico desde a década de 1940, apresentava resultados bem inferiores ao xenodiagnóstico, pelo que não era utilizado. Após os trabalhos de Chiari e Brener em 1966 com sucessivos aperfeiçoamentos (revistos em Chiari, 1992) voltou a ser empregado até os dias de hoje com resultados comparáveis aos do xenodiagnóstico e a vantagem de permitir o isolamento do parasito.

A inoculação em animais experimentais também foi utilizada desde longa data, porém deixou de ser empregada como método de diagnóstico devido às dificuldades operacionais, assim como a sua baixa sensibilidade na fase crônica.

Outros testes foram utilizados, tais como a detecção de antígeno circulante, antigenúria, testes de hipersensibilidade tardia, porém não foram incorporados à rotina e não são utilizados.

Inúmeras tentativas de utilização de testes sorológicos empregando outros métodos, tais como testes de precipitação, de aglutinação de látex, de floculação, não frutificaram, ora pela baixa eficiência, ora pelos custos elevados.

Em 1962, Cerisola e colaboradores descrevem a utilização do teste de hemaglutinação indireta (HAI) para o diagnóstico sorológico da infecção. Este teste, de fácil execução e bom desempenho, é utilizado até hoje, embora apresente sensibilidade menor que os testes de imunofluorescência e de ELISA, que serão descritos em continuação. Por esta razão, não é recomendado para exclusão de doadores de sangue.

Em 1966, Camargo otimiza a utilização do teste de imunofluorescência indireta, já descrito por Fife e Muschel. Este teste, de elevada sensibilidade, foi utilizado no inquérito nacional sorológico, com mais de um milhão de amostras em todo o Brasil, que determinou, com bastante precisão, a prevalência da doença. Dada a sua elevada sensibilidade, é ideal para estudos epidemiológicos, assim como para diagnóstico, embora apresente reações cruzadas, em particular com leishmanioses. O mesmo continua a ser usado até o presente, simultaneamente com a HAI e a ELISA, constituindo os três os chamados de testes convencionais, com os quais há grande experiência em todos os países da América Latina.

O teste de aglutinação direta, aperfeiçoado por Vattuone e Yanovsy com a inclusão sistemática do agente redutor 2 mercapto-etanol, foi utilizado principalmente na Argentina com bons resultados, porem a sua comercialização foi interrompida.

Em 1975, Voller e colaboradores descrevem o teste imunoenzimático de ELISA em amostras de papel-filtro, método que foi aperfeiçoado e é atualmente utilizado na rotina diagnóstica dos serviços de hemoterapia e de diagnóstico, existindo no Brasil várias marcas aprovadas pela ANVISA (Tabela 1), com bom desempenho.

 

Tabela 1. Desempenho de 12 conjuntos diagnósticos de ELISA existentes no mercado em 2005. Após serem testados com 150 soros por 4 Instituicoes do Brasil sob a Coordenacao Geral de Laboratórios (CGLAB) do Ministério da Saúde (Portaria No VER).

 

Assim, neste segundo período histórico na evolução do diagnóstico, assistimos ao desenvolvimento de métodos que formam a base do diagnóstico até os dias de hoje.

No terceiro período, desde 1976 até o presente, avanços na biologia molecular tem aprimorado os métodos existentes e desenvolvido outros, a seguir comentados. Em sucessivos estudos, procurou-se melhorar a qualidade dos antígenos até então utilizados, de extratos totais (antígeno bruto) do parasito, por antígenos purificados por diversos procedimentos, na tentativa de evitar reações cruzadas, observadas com os testes convencionais de diagnóstico. Assim, na década de 1980, foram publicados trabalhos empregando glicoproteínas de 25 kDa, 90 kDa e de 72 kDa entre outras, com painéis de soros de pacientes com as diferentes formas clínicas da doença. Esses reagentes ainda não se encontram comercializados.

Com o avanço no conhecimento da biologia molecular, a partir de 1980 foram isoladas proteínas recombinantes, por diversos grupos no Brasil, Argentina e Estados Unidos, obtendo-se bons resultados de acordo com cada grupo. Também foram publicados estudos com peptídeos sintéticos (revistos por Silveira e colaboradores). Para fins de elucidar quais teriam maior aplicabilidade, o programa TDR (Tropical Diseases Research) da Organização Mundial da Saúde, promoveu um estudo multicêntrico que incluiu também alguns dos antígenos purificados. Esse estudo definiu alguns deles como apropriados. Outro estudo desenvolvido por Levin e colaboradores confirmou alguns desses resultados, assim como um terceiro, com maior número de soros realizado por Umezawa e colaboradores.

Após esses estudos foram desenvolvidos vários testes rápidos, alguns deles com a intenção de verificar o diagnóstico no campo, com apenas uma gota de sangue. Um desses testes foi validado em estudo multicêntrico realizado por Luquetti e colaboradores. Posteriormente um estudo coordenado pelos Médicos Sem Fronteiras comparou o desempenho de onze testes rápidos disponíveis na época, onde alguns demonstraram boa sensibilidade e especificidade, com aplicabilidade em inquéritos e em situações de emergência. (Sánchez-Camargo et al. 2014)

Outros testes utilizados foram a citometria de fluxo e o western blot. Embora este último tenha sido comercializado por um tempo (Tesa-blot®), nenhum dos dois encontram-se disponíveis atualmente.

Em outra abordagem, estão sendo desenvolvidos métodos sorológicos para detectar anticorpos específicos dirigidos contra linhagens de T. cruzi, na tentativa de identificar o tipo de Tc (I a VI) predominante em cada indivíduo infectado. Alguns resultados já foram publicados por Bhattacharyya e colaboradores em 2014.

Em outra fase do diagnóstico laboratorial, na década de 1990, os estudos dirigiram-se para a amplificação de ácidos nucléicos do próprio parasito, visando ao diagnóstico parasitológico, pela amplificação por PCR. Hoje em dia, é possível verificar a presença de um parasito em 20 mL de sangue. Ocorre que, por ser um método de verificação da presença do parasito, que pode não estar presente no infectado crônico, um resultado negativo não tem valor diagnóstico. A sensibilidade é superior àquelas do hemocultivo e do xenodiagnóstico, embora exista preocupação quanto à especificidade quando realizado em serviços de rotina. Acresce que não se encontra ainda comercializado (revisto por Luquetti e Rassi). Vide capítulo a seguir.

Um novo teste comercial, de quimioluminiscencia, foi desenvolvido na última década, com excelente sensibilidade, para aplicação em serviços de Hemoterapia. De utilidade em centros com grande demanda, é hoje amplamente utilizado.

Embora contando com vários testes sorológicos de bom desempenho, é necessário que os mesmos sejam verificados, lote a lote, e que os laboratórios mantenham pessoal com instruções técnicas apropriadas. O Ministério da Saúde do Brasil tem demonstrado sensibilidade a este respeito, promovendo estudos dos reagentes comercializados. De parceria com a Gerência de AIDS, elaborou um manual e vídeo (Telelab) sobre o diagnóstico da doença . Ainda em parceria com Biomanguinhos, a ANVISA desenvolve programa de qualidade externo (AEQ), desde 2001, distribuindo três painéis de soros por ano, em funcionamento até hoje, para os serviços de hemoterapia do Brasil.

Apesar de todos os avanços obtidos, permanece vigente a necessidade de diagnóstico sorológico com o emprego de dois testes de princípios diferentes para assegurar a presença da infecção (ou a exclusão da mesma). No entanto, para exclusão de doador de sangue, conforme recomendações da OMS (ref. 2002), a execução de teste único de elevada sensibilidade (ELISA ou quimioluminiscencia) é suficiente, desde que exista controle externo de qualidade.

 

Novas referências

Luquetti AO, Alquezar AS, Moreira EF, Zapata MTG, Guimaraes MC, Gadelha F, Pereira JB, Arruda AHS & Nasser LF. Recomendações e conclusões da II Reunião do Comitê Técnico Assessor para o diagnóstico laboratorial da doença de Chagas, São Paulo, SP, 19-21/03/96. Rev Inst Med Trop São Paulo 38: 328, 1996.

Sánchez-Camargo CL, Albajar-Viñas P, Wilkins PP, Nieto J, Leiby DA, Paris L, Scollo K, Flórez C, Guzmán-Bracho C, Luquetti AO, Calvo N, Tadokoro K, Saez-Alquezar A, Palma PP, Martin M, Flevaud L. Comparative evaluation of 11 commercialized rapid diagnostic tests for detecting Trypanosoma cruzi antibodies in serum banks in areas of endemicity and nonendemicity. J Clin Microbiol 52: 2506-2512. 2014.

Bhattacharyya T, Falconar AK, Luquetti AO, Costales JA, Grijalva MJ, Lewis MD, Messenger LA, Tran TT, Ramirez JD, Guhl F, Carrasco HJ, Diosque P, Garcia L, Litvinov SV, Miles MA. Development of peptide-based lineage-specific serology for chronic Chagas disease: geographical and clinical distribution of epitope recognition. PLoS Negl Trop Dis 22;8: e2892, 2014.

Control of Chagas Disease. WHO Technical Report Series Nº. 905. Second Report of the WHO Expert Committee, World Health Organization, Geneva, 2002.

 

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Diagnóstico molecular

Diagnóstico molecular da doença de Chagas

Constança Britto e Otacílio Moreira

Laboratório de Biologia Molecular e Doenças Endêmicas, Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz

E-mail: cbritto@ioc.fiocruz.br / otacilio@ioc.fiocruz.br

 

Ferramentas acuradas de diagnóstico para a detecção da infecção pelo Trypanosoma cruzi e identificação de marcadores de resposta parasitológica ao tratamento, são consideradas prioridades na pesquisa e desenvolvimento no contexto da doença de Chagas. O diagnóstico e tratamento oportunos são estratégicos para prevenir a progressão da doença e a ocorrência de limitações funcionais, incapacidade e deficiência. Segundo a versão atualizada do Consenso Brasileiro em Doença de Chagas, o diagnóstico etiológico da doença deve ser realizado em todos os casos suspeitos, tanto na fase aguda quanto na fase crônica. Dependendo do estágio da doença, o diagnóstico da infecção por T. cruzi deve seguir critérios definidos.

No estágio inicial (fase aguda), observa-se um grande número de formas tripomastigotas do parasito circulando na corrente sanguínea e o diagnóstico pode ser obtido através de exame microscópico direto no sangue periférico. Nesta fase também é possível a detecção de anticorpos IgM anti-T. cruzi. O diagnóstico parasitológico na fase aguda (exame direto, xenodiagnóstico e cultura de sangue ou hemocultivo) baseia-se principalmente na identificação do parasito e a sua sensibilidade é dependente do nível de parasitemia. Métodos de concentração (Strout’s, micro hematócrito e creme leucocitário ou buffy coat) são rápidos e de custos reduzidos, sendo recomendados como teste diagnóstico de primeira escolha para os casos sintomáticos de fase aguda com mais de 30 dias de evolução, devido ao declínio da parasitemia com o tempo. O exame microscópico direto do sangue periférico (com ou sem coloração) torna-se importante para verificação e caracterização morfológica do parasito, especialmente em áreas geográficas onde a infecção por Trypanosoma rangeli pode coexistir com T. cruzi; sendo o primeiro não patogênico ao homem. A ausência de diagnóstico e tratamento na fase aguda da doença é a principal causa para a progressão crônica da doença de Chagas.

Na fase crônica, os níveis de parasitemia se encontram abaixo do limite de detecção por microscopia e assim, o diagnóstico se baseia, sobretudo, na detecção de anticorpos IgG específicos anti-T. cruzi por testes sorológicos convencionais, ou através de métodos parasitológicos indiretos de amplificação in vitro da população de parasitos (hemocultivo e xenodiagnóstico) para o isolamento e identificação do T. cruzi. Embora específicos, os métodos parasitológicos para o diagnóstico de fase crônica têm demonstrado baixas sensibilidades, implicando assim na ausência de valor diagnóstico quando o resultado é negativo, segundo o Ministério da Saúde do Brasil (2013). O xenodiagnóstico possui uma sensibilidade limitada, detectando o parasito em apenas 20 – 60% dos pacientes crônicos soropositivos, dependendo da área endêmica em estudo, e consequentemente gerando um número significativo de resultados falso-negativos. A hemocultura não tem sido usada com frequência no diagnóstico, devido também a sua baixa positividade na fase crônica da infecção. Além disso, ambos os ensaios de amplificação biológica podem selecionar subpopulações de parasitos, levando a uma distorção dos resultados de tipagem do agente etiológico e dos dados epidemiológicos gerados. Por outro lado, resultados parasitológicos positivos são de grande utilidade, principalmente para o monitoramento de tratamento específico ou em casos de resultados inconclusivos por sorologia. Segundo Luquetti e Schmuñis (2010) e referendado pelo Ministério da Saúde do Brasil (2013, 2014), o diagnóstico sorológico na fase crônica deve ser realizado com um teste de alta sensibilidade junto a outro de elevada especificidade. Assim, recomenda-se o emprego de dois testes sorológicos com diferentes princípios/métodos e que possuam preparações antigênicas distintas. Embora, em geral, estes testes apresentem taxas de sensibilidade e especificidade maiores que 90%, ainda assim, podem ser observados resultados discordantes entre os testes convencionais e uma limitada especificidade destes frente a infecções com outros tripanosomatídeos que circulam na mesma área geográfica do T. cruzi (Leishmania spp e T. rangeli), o que pode acarretar em antigenicidade cruzada e resultados sorológicos falso-positivos, requerendo posterior confirmação. Testes sorológicos não convencionais – aqueles que empregam antígenos recombinantes, por exemplo – devem ser preferencialmente usados, junto a outro teste convencional. Outro problema ligado ao diagnóstico sorológico refere-se ao perfil clínico de um paciente que pode não estar relacionado com a sua resposta humoral, como por exemplo, durante as primeiras semanas de infecção (quando a reação sorológica ainda não é observada) ou após tratamento específico (quando uma resposta imune pode persistir por anos mesmo se o tratamento foi bem sucedido). Nesta última condição, resultados sorológicos positivos são apenas evidências indiretas da infecção com T. cruzi, considerando que a sua ocorrência independe da presença do parasito e sim, da memória imunológica do paciente.

Limitações na sensibilidade dos testes laboratoriais parasitológicos, especialmente em se tratando do diagnóstico de fase crônica, reforçam a necessidade de aplicação de um método direto e mais sensível que permita monitorar a presença do parasito e confirmar a etiologia da doença. Neste sentido, a Reação em Cadeia da Polimerase ou PCR vem sendo cada vez mais empregada para a pesquisa do DNA de T. cruzi diretamente no sangue de pacientes crônicos, através do uso de oligonucleotídeos sintéticos ou primers que amplificam sequências de DNA específicas do patógeno-alvo, através da síntese exponencial do DNA pela enzima polimerase. A necessidade de sua execução em laboratórios adequadamente equipados e com espaço exclusivo para a sua realização, além de pessoal treinado na prática de diagnóstico molecular, podem ser considerados fatores limitantes no que tange o emprego do teste de PCR em situação ambulatorial ou hospitalar, ou mesmo na rotina dos bancos de sangue. Apesar de que nos últimos anos, os custos dos testes de PCR estejam diminuindo e o equipamento para a realização rápida e automatizada dos testes moleculares esteja se tornando amplamente disponível.

Alvos moleculares e procedimentos para a detecção de DNA de Trypanosoma cruzi em sangue pela PCR

Com a finalidade de selecionar a melhor sequencia alvo, torna-se importante obter conhecimento acerca do genoma do parasito. Baseado em estudos prévios, como o de Requena e colaboradores (1996), o conteúdo de DNA total de T. cruzi varia entre aproximadamente 120 a 330 fentogramas (fg) e encontra-se distribuído tanto no núcleo como na mitocôndria única.

O genoma mitocondrial do T. cruzi constituído pelo DNA do cinetoplasto ou kDNA, representa cerca de 20 – 25% do DNA celular total e é organizado em uma estrutura em rede, onde milhares de pequenas moléculas circulares, os minicírculos, encontram-se concatenadas representando 95% do conteúdo de kDNA da célula. Segundo Degrave e colaboradores (1988), as moléculas de minicírculos de T. cruzi apresentam tamanhos de aproximadamente 1.400 pares de bases (pb), estão presentes em milhares de cópias (entre 5.000 a 30.000 por rede de kDNA) e possuem uma organização peculiar de sequência, distribuída em quatro regiões menores, com tamanhos variando entre 120 a 160 pb (dependente da cepa do parasito), dispostas em ângulos de 90° ao longo da molécula circular e apresentam um alto nível de conservação de sequência intra-espécie. Estas regiões conservadas encontram-se intercaladas por regiões maiores, em torno de 330 pb, que exibem uma extrema variabilidade de sequência, mesmo entre os milhares de minicírculos que compõem a rede de kDNA de uma única célula (Figura 1). Levando em consideração que cada parasito possui entre 5.000 a 30.000 minicírculos e que existem quatro cópias da região conservada por molécula, pode ser admitida, uma quantidade total de até 120.000 cópias destas sequencias por parasito. Assim, essas moléculas apresentam características que as tornam alvos ideais de detecção pela PCR, levando em consideração que estão presentes em um elevado número de cópias por rede de kDNA, além de cada minicírculo conter quatro regiões de sequências de DNA altamente conservadas presentes em todas as cepas e isolados representativos das diferentes linhagens genéticas de T. cruzi (DTUs ou Unidades Discretas de Tipagem). A estratégia da PCR usando como alvo de amplificação o kDNA, emprega oligonucleotídeos (iniciadores) desenhados para as sequências conservadas dos minicírculos, amplificando um fragmento específico de 120 pb (“região conservada” do minicírculo) ou de 330 pb (“região variável” do minicírculo) (Figura 1). A PCR desenhada para o alvo kDNA detecta todas as DTUs de T. cruzi. A presença de excesso de DNA humano não interfere no processo de amplificação seletiva do DNA do parasito.

Em relação ao genoma nuclear de T. cruzi, a primeira sequencia repetitiva descrita foi um DNA satélite (DNA-Sat) com unidades de repetição de 195 pb, dispostas em tandem e distribuídas na maioria dos cromossomos de T. cruzi, correspondendo à 9% do genoma total do parasito, segundo Requena e cols. (1996). Através de ensaios de hibridização, estes pesquisadores puderam estimar em aproximadamente 120.000 cópias por parasito, o número de repetições do DNA-Sat. Russomando e cols. (1992), empregando essas sequências satélites nucleares encontraram uma alta sensibilidade e especificidade de detecção do parasito diretamente no soro de portadores da doença de Chagas. Mais recentemente, o mesmo grupo relatou a implementação de um sistema de diagnóstico pré-natal que usa a PCR com alvo no DNA-Sat, para a detecção de casos de doença de Chagas congênita em áreas endêmicas do Paraguai (Russomando e cols., 2005). Neste contexto, a sensibilidade da PCR parece ser maior do que a observada por exame microscópico, demonstrando seu potencial de aplicação no diagnóstico precoce de infecção congênita.

Portanto, pelo elevado número de cópias de sequencias conservadas distribuídas no genoma nuclear e mitocondrial do T. cruzi, tanto as sequencias nucleares de DNA-Sat quanto os minicírculos que compõem majoritariamente a rede de kDNA, podem ser usados como alvos potenciais para o desenho de iniciadores específicos para a detecção desta espécie de parasito pela PCR.

 

 

Nos países endêmicos, afetados pela doença de Chagas, tem sido comum a prática de coletar amostras clínicas em áreas rurais, distanciadas do laboratório que pratica o diagnóstico, e essa rotina pode comprometer a integridade da amostra a ser analisada. Assim, a necessidade de se coletar amostras clínicas em áreas rurais promoveu o desenvolvimento de um procedimento simples para a coleta, transporte e preservação de amostras de sangue e posterior análise por PCR, tendo como alvo de detecção o kDNA de T. cruzi. Amostras de sangue periférico (10 mL) são coletadas em tubos próprios de coleta, contendo EDTA como anticoagulante, e misturadas em um mesmo volume de tampão de lise (Guanidina-HCl 6M/ EDTA 0,2M), podendo permanecer a temperatura ambiente por até 60 dias sem comprometer o resultado final do ensaio molecular. Também foi sugerido que o rompimento da estrutura em rede do kDNA para a liberação dos milhares de minicírculos, moléculas-alvo da amplificação, era necessário para aumentar a sensibilidade de detecção do parasito diretamente no sangue de pacientes crônicos. Para tal, Britto e colaboradores (1993) descreveram o método da clivagem física da rede de kDNA por calor (fervura dos lisados de sangue a 100°C por 15 min), um procedimento rápido e com baixíssimo custo, que vem sendo usado rotineiramente por diferentes laboratórios, contribuindo para que a PCR realizada a partir deste lisado apresente um limite de detecção de até um único parasito presente em 10 mL de sangue coletado. Esse nível de sensibilidade se mostrou adequado para a pesquisa acurada do parasito diretamente no sangue de pacientes portadores da doença crônica. Além disso, a PCR é sem dúvida, um método mais rápido e mais prático do que os métodos parasitológicos indiretos de amplificação in vitro, tais como o xenodiagnóstico e hemocultivo.

Posteriormente a fervura dos lisados de sangue, o DNA pode ser purificado a partir de uma pequena alíquota (300 µL) através de metodologias baseadas em solventes orgânicos (fenol-clorofórmio) ou pelo uso de kits comerciais contendo colunas de sílica ou beads magnéticas. Após a realização da PCR com alvo no kDNA ou DNA-Sat do parasito, amostras que apresentam resultados negativos para a presença de DNA de T. cruzi devem ser testadas para possível presença de inibidores da reação e para controlar a integridade do DNA recuperado, através de outro ensaio de PCR com iniciadores derivados de uma sequência humana específica (como o gene da ß-globina, ß-actina ou RNAse P). Esse passo torna-se crucial para descartar resultados de diagnóstico falso-negativos.

PCR como ferramenta complementar de diagnóstico e para monitorar parasitemia em resposta ao tratamento tripanocida

Na fase crônica da doença de Chagas, a PCR pode ser empregada como ferramenta complementar para confirmação do diagnóstico etiológico, nos casos onde os testes sorológicos fornecerem resultados inconclusivos ou discordantes. Vale chamar a atenção que um teste de PCR negativo não descarta a possibilidade de infecção, levando em consideração o número reduzido e intermitente de parasitos circulantes durante a fase crônica da doença; porém, um teste positivo apresenta um valor diagnóstico absoluto. Um resultado de PCR confirmado como verdadeiro negativo indica a ausência de DNA do parasito no momento do teste, isto é, a amostra de sangue coletada para PCR não contém o parasito. Portanto, a precisão da PCR pode estar comprometida por um comportamento desconhecido da parasitemia de T. cruzi na fase crônica, onde os períodos de parasitemia detectável não são previsíveis. Uma solução alternativa para esta limitação seria a coleta seriada de amostras de sangue, a fim de aumentar a probabilidade de identificação do DNA parasitário em pelo menos uma das amostras.

Vários estudos têm relatado a aplicação da PCR qualitativa para a detecção de T. cruzi em uma gama de amostras biológicas obtidas de hospedeiros mamíferos e insetos vetores. Na ausência de kits comerciais disponíveis, com apenas um descrito em 2009 por Deborggraeve e colaboradores, mas ainda com acesso limitado (T. cruzi OligoC-TesT), os métodos, protocolos e procedimentos operacionais deverão seguir as recomendações apresentadas por Schijman e colaboradores (2011), para a padronização do uso clínico da PCR na doença de Chagas. Esta necessidade decorre da extrema variabilidade nos níveis de sensibilidade gerada pelos diferentes protocolos, variabilidade que depende não apenas das características epidemiológicas das populações estudadas, mas também do volume de sangue coletado, do método selecionado para extração de DNA, da escolha das sequências de DNA-alvo e iniciadores, dos reagentes e condições de ciclagem térmica.

O trabalho de Schijman e cols. (2011) resultou de um estudo colaborativo internacional realizado a partir de 26 laboratórios com experiência prévia em PCR para Chagas, representando 16 países. Foi avaliada a habilidade de diferentes protocolos de PCR em detectar o DNA de T. cruzi a partir da análise de três painéis de amostras: diluições seriadas de DNA genômico de três linhagens genéticas do parasito [DTUs I, IV e VI] (painel A), amostras de sangue “contaminadas” com diferentes concentrações de T. cruzi (painel B), e amostras de sangue de pacientes soropositivos e controles não infectados (painel C). Para o painel constituído de amostras de DNA de T. cruzi em diferentes concentrações, 48 protocolos de PCR foram comparados e nos demais, esse número foi reduzido para 44, sendo 28 para o alvo kDNA, 13 para o DNA satélite nuclear (DNA-Sat) e os demais protocolos corresponderam a outros alvos com menor número de cópias, como 18S rDNA (DNA ribossomal 18S) e 24Sα rDNA (DNA ribossomal 24Sα), região intergênica de genes spliced leader (SL-DNA) e o gene mitocondrial para a subunidade II de citocromo oxidase (CO II-DNA).

Nas análises dos painéis A e B, os protocolos que empregaram kits comerciais para a extração de DNA (contendo colunas com resina de sílica) ao invés de solventes (fenol-clorofórmio) e DNA satélite como alvo de amplificação, demonstraram uma melhor especificidade. Porém, no painel A, a PCR-kDNA foi mais sensível para detectar DNA de TcI (DTU I). Em relação ao painel B, os testes direcionados para o kDNA também demonstraram maiores sensibilidades, detectando até 5 x 10-3 parasitos/mL. Após a análise dos painéis A e B, 16 métodos foram selecionados como de “Bom Desempenho”, demonstrando altas especificidades e coerência, sendo capazes de detectar até 10 fg/mL de cada estoque de DNA representativo de três DTUs de T. cruzi (TcI, TcVI e TcIV) (painel A) e 5 parasitos/mL em sangue contaminado artificialmente (painel B). Os valores médios de sensibilidade, especificidade e acurácia, obtidos na análise de amostras clínicas (painel C) a partir dos 16 métodos considerados de bom desempenho, variaram consideravelmente. Destes, apenas quatro protocolos de PCR revelaram os parâmetros de melhor desempenho em todos os painéis de amostras, sendo três para o DNA-Sat e um para o kDNA. Estes testes foram capazes de detectar até 10 fg/mL de cada estoque de DNA de T. cruzi (TcI, TcVI e TcIV); 0,5 parasito/mL nas amostras de sangue reconstituídas; sensibilidades entre 83,3 – 94,4%; especificidades de 85 – 95% e acurácia de 86,8 – 89,5%. Quanto ao desempenho dos quatro métodos na análise do painel de amostras clínicas (painel C), foram obtidas sensibilidades de 63 – 69%, 100% de especificidade e acurácia de 71,4 – 76,2 %, comparados ao diagnóstico sorológico dos pacientes. Neste estudo, os alvos direcionados para as sequencias gênicas de DNA ribossomal, miniexon ou subunidade II de citocromo oxidase não foram suficientemente sensíveis e parecera não serem adequados para o diagnóstico molecular da doença de Chagas na rotina clínica. Porém, estes alvos do parasito têm sido amplamente usados para genotipagem das DTUs de T. cruzi.

Apesar do excelente desempenho dos alvos DNA-Sat e kDNA no diagnóstico molecular da doença de Chagas, tem sido demonstrado que ambos podem amplificar DNA de T. rangeli (geneticamente muito semelhante ao T. cruzi) quando presente em concentração elevada. Mesmo assim, para o kDNA, os fragmentos amplificados de T. rangeli podem ser diferenciados de T. cruzi por apresentarem tamanhos distintos em gel de agarose, como demonstrado por Moreira e cols. (2017).

A avaliação de protocolos de PCR é o passo inicial para o aprimoramento técnico e o desenvolvimento de um Procedimento Operacional Padrão (POP), a nível internacional, para a PCR direcionada para T. cruzi. Como discutido por Schijman e colaboradores (2011), os métodos que demonstraram “Bom Desempenho Analítico” poderiam ser recomendados como ferramenta complementar de diagnóstico, nas seguintes condições: 1) acompanhamento pós-tratamento de pacientes, buscando investigar falha terapêutica e determinar resposta parasitológica ao tratamento; 2) diagnóstico de doença de Chagas congênita em recém-nascidos, para os quais testes sorológicos tornam-se inadequados tendo em vista a presença de anticorpos anti-T. cruzi maternos; 3) identificação de reativação da doença de Chagas após transplante de órgãos em receptores infectados pelo T. cruzi, em condições de imunossupressão; 4) diagnóstico diferencial de reativação da doença de Chagas em pacientes coinfectados com HIV/T. cruzi, e 5) casos suspeitos de transmissão oral. Além dessas, uma importante perspectiva para o desenvolvimento de um ensaio de PCR altamente sensível e específico refere-se ao seu potencial de aplicação na rotina de bancos de sangue para a triagem de doadores, visando solucionar o problema dos resultados sorológicos falso-positivos e o consequente descarte de sangue não contaminado. Nos dias de hoje, os custos dos testes de PCR estão diminuindo rapidamente e o equipamento para a realização rápida e automatizada dos ensaios moleculares está se tornando amplamente disponível.

Atualmente existe um consenso de que todos os indivíduos infectados com o T. cruzi devem ser tratados, com exceção daqueles que tenham desenvolvido insuficiência cardíaca crônica descompensada. O tratamento para a doença de Chagas tem sido considerado uma abordagem medicinal promissora para pacientes de fase aguda, indeterminada ou crônica, exceto quando apresentam sintomas extremamente severos de cardiopatia ou envolvimento do trato digestivo. Embora sejam necessários fármacos tripanocidas mais eficazes, o tratamento com benzonidazol (ou nifurtimox) é razoavelmente seguro, mas sua eficácia na fase crônica tardia ainda é questionável devido à ausência de um sistema confiável capaz de monitorar esquemas terapêuticos e para o estabelecimento de critérios para o controle de cura dos pacientes. A demonstração da negativação da sorologia ou o declínio persistente e progressivo dos títulos dos testes sorológicos é considerado indicador de cura no monitoramento do tratamento tripanocida da doença de Chagas. A redução nos títulos da sorologia ocorre gradualmente, principalmente na fase crônica de longa duração, geralmente em um período de 20 a 25 anos após o início do tratamento, segundo Rassi e colaboradores, 2012. Apesar da não obrigatoriedade em se realizar exames parasitológicos para evidenciar cura, testes parasitológicos positivos em qualquer momento do monitoramento, indicam falha terapêutica.

Como discutido por Portela-Lindoso & Shikanai-Yasuda (2003) e revisto por Britto (2009), a PCR é uma opção alternativa aos métodos indiretos (xenodiagnóstico e hemocultura) de avaliação parasitológica, para indicação de falha terapêutica. Estudos vêm demonstrando uma maior sensibilidade da PCR para a determinação da persistência do parasito nos indivíduos crônicos tratados e que foram monitorados durante longos períodos após o tratamento. Novamente deve ser ressaltado que a metodologia molecular não permite inferir o sucesso (eficácia) do tratamento, considerando que mesmo a geração de resultados repetidamente negativos, não necessariamente indica cura parasitológica. Com esse cenário, os ensaios quantitativos de PCR em tempo real tornam-se mais adequados em demonstrar uma diminuição significativa da carga parasitária, que é esperada em um esquema terapêutico bem-sucedido.

PCR quantitativo em Tempo Real (qPCR)

A partir do ano 2000, a metodologia de detecção de genes e sequências específicas foi aperfeiçoada com o desenvolvimento de diferentes sistemas de PCR em tempo real quantitativa (qPCR), uma abordagem baseada no emprego de sondas fluorogênicas (“TaqMan®” ou outras) ou corantes fluorescentes com afinidade de se intercalarem inespecificamente à molécula de DNA (“SYBR green® ou outros”), para a medida em tempo real da reação de amplificação. O teste de PCR em tempo real, seja qualitativo (ensaio de presença e ausência) ou quantitativo, é recomendado tanto para o diagnóstico de infecção, como para a medida de resposta ao tratamento etiológico na prática clínica e nos testes de novas drogas para a doença de Chagas. Identificar se um paciente ou animal experimental foi curado da infecção pelo T. cruzi é uma questão crítica, seja avaliando a eficácia de fármacos de primeira-linha (benzonidazol ou nifurtimox) ou testando novos compostos quimioterapêuticos e imunoterapias.

O uso de metodologias para estimativa dos níveis absolutos de T. cruzi circulante nos indivíduos infectados, permitiria descrever uma possível correlação entre a carga parasitária e a progressão da doença, além de ser de grande utilidade para a caracterização molecular das populações de parasitos, avaliação do prognóstico e eficácia terapêutica. Porém, ainda não foi estabelecido se, mesmo na ausência de cura parasitológica (eliminação do parasito), a redução da carga parasitária levaria a uma melhora dos sintomas clínicos nos indivíduos cardiopatas, portadores da doença de Chagas na fase crônica e que foram submetidos à quimioterapia anti-T. cruzi. Além disso, nos casos de imunossupressão, o diagnóstico preciso da reativação da doença de Chagas, seguido do tratamento precoce, é indicado (Almeida e cols., 2011). Assim, os métodos moleculares quantitativos (qPCR) para a estimativa da carga parasitária (de Freitas e cols., 2011; Duffy e cols., 2013; Moreira e cols., 2013; Ramírez e cols., 2015; Melo e cols., 2015) são altamente recomendados, pois possibilitam acompanhar precisamente o estado de reativação através da medida do aumento significativo do número de parasitos circulantes, podendo resultar em maiores benefícios para o manejo clínico dos pacientes. Entretanto, para os ensaios quantitativos, os níveis de corte (cut-off) ainda devem ser definidos para auxiliar a caracterização de reativação e possibilitar ações terapêuticas precocemente.

As estratégias de PCR em tempo real (qPCR) foram inicialmente propostas como ferramentas para quantificar carga parasitária em amostras clínicas de pacientes infectados pelo T. cruzi e que receberam tratamento etiológico, com o objetivo de prover um marcador substituto de resposta terapêutica, considerando o longo curso para negativação dos testes sorológicos, nos pacientes crônicos tratados. Até o presente, poucas estratégias de qPCR foram desenvolvidas para a detecção e quantificação de DNA de T. cruzi nos pacientes com doença de Chagas, porém sua aplicação na prática clínica requer estudos prévios para validação analítica e clínica. Neste contexto, a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Organização Panamericana de Saúde (OPAS) e outras entidades internacionais, como o Drugs for Neglected Disease Initiative (DNDi) e Médicos Sem Fronteiras (MSF), reuniram esforços para aprovar estudos visando a obtenção de procedimentos operacionais padrões para a recuperação e amplificação de ácidos nucleicos a partir de amostras de sangue periférico de pacientes portadores da doença de Chagas (Schijman e cols., 2011; Ramírez e cols., 2015). Com esta finalidade, entre novembro de 2007 e dezembro de 2011, foram realizadas atividades internacionais coordenadas, com a participação de representantes de laboratórios de diagnóstico molecular, localizados em vários países endêmicos e não endêmicos para doença de Chagas, incluindo América Latina, EUA e Europa. Estas atividades permitiram avaliar, simultaneamente, estratégias distintas de PCR em tempo real, e comparar os resultados obtidos frente a painéis de amostras clínicas de indivíduos dos países participantes, além de amostras de DNA de T. cruzi, em diferentes concentrações, representativas das diferentes DTUs do parasito.

O estudo de Ramírez e colaboradores (2015) foi realizado em uma tentativa de estabelecer procedimentos operacionais padrões para quantificação da carga parasitária de T. cruzi em amostras de sangue, utilizando dois dos quatro métodos ranqueados entre os melhores, no estudo internacional prévio de avaliação de protocolos de PCR, descrito por Schijman e colaboradores (2011). Foi avaliado o desempenho de duas estratégias de PCR em tempo real, de tipo multiplex (detecção e quantificação simultânea de mais de um alvo, em uma mesma reação), utilizando sondas TaqMan direcionadas ao kDNA e DNA-Sat, em reações independentes, incluindo em cada ensaio um controle heterólogo extrínseco, como controle interno de amplificação (IAC). O IAC corresponde a um plasmídeo recombinante que contém uma sequencia de planta (Arabidopsis thaliana aquaporin), usado como controle de qualidade de todo o procedimento, desde a extração de DNA até os ensaios de qPCR, e foi descrito originalmente por Duffy e colaboradores (2009). Para tal, uma quantidade normalizada do IAC é adicionada em cada amostra a ser quantificada antes da extração de DNA. Os parâmetros avaliados para a validação analítica dos dois ensaios TaqMan de qPCR foram: 1) Seletividade (inclusividade – capacidade de detectar o patógeno alvo a partir das diferentes DTUs de T. cruzi; exclusividade – ausência de detecção de outros tripanosomatídeos proximamente relacionados); 2) Extensão dinâmica – conjunto de valores de medidas obedecendo os limites especificados; 3) Limite de Detecção (LOD) – menor concentração que o método pode detectar, de forma confiável, a presença ou ausência do patógeno alvo; 4) Acurácia – a proximidade da concordância entre os resultados independentes do teste/medição obtidos de acordo com as condições estipuladas; 5) Limite de Quantificação (LOQ) – a menor concentração na qual o método possui precisão e acurácia aceitáveis para realizar a medida.

Foi demonstrada uma maior uniformidade da sensibilidade analítica para a qPCR-kDNA na análise entre as diferentes DTUs de T. cruzi do que a observada para a qPCR-DNA Sat, devido ao último método ser menos sensível para algumas cepas TcI e TcIV, indicando um menor número de cópias das sequencias nucleares satélites em seus genomas. Isto é, o número de cópias do alvo DNA-Sat pode variar bastante dependendo da linhagem de T. cruzi.

A comparação dos parâmetros analíticos para ambos os métodos de qPCR, sugere uma maior sensibilidade do alvo kDNA para a detecção e quantificação de amostras com cargas parasitárias reduzidas, porém com menor especificidade que o DNA-Sat (principalmente em relação à detecção de T. rangeli). Todavia, as análises de amostras clínicas demonstraram uma concordância elevada, em termos de sensibilidade e cargas parasitárias, determinadas por ambos os testes de qPCR (DNA-Sat e kDNA). Nesse trabalho, os autores discutem a aplicação adequada de cada método em função dos cenários epidemiológicos e/ou clínicos da infecção pelo T. cruzi (Ramírez e cols., 2015).  Independente do alvo selecionado, ensaios de qPCR podem ser suficientemente sensíveis para detectar a presença de um único parasito a partir de uma amostra de 5 mL de sangue. Entretanto, para a realização de ensaios quantitativos de qPCR, o laboratório deve ser equipado com um termociclador em tempo real e o software correspondente. Isso deve ser considerado para laboratórios com um baixo orçamento que não realizam testes de PCR em tempo real rotineiramente e, portanto, não possuem tal equipamento.

 

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