Microscopia Óptica
Estudo microscopia óptica
Técia Ulisses de Carvalho
Programa de Biofísica, Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, Universidade Federal do Rio de Janeiro
E-mail: tecia@biof.ufrj.br
As primeiras descrições morfológicas do Trypanosoma cruzi, por Carlos Chagas, foram feitas por observações do parasito fixado e corado pelo corante de Giemsa, método até hoje empregado. Observações por microscopia ótica nos permitem identificar no parasito: (i) a forma geral da célula, (ii) o núcleo, (iii) o cinetoplasto (DNA mitocondrial condensado, que se localiza sempre próximo ao flagelo nos tripanosomatídeos). Este nome foi dado porque se acreditava que esta estrutura (cineto=movimento; plasto=organela) fosse responsável diretamente pelo movimento do flagelo) e (iv) o flagelo.
De acordo com: (i) a forma geral da forma evolutiva; (ii) a posição relativa entre o flagelo e o núcleo; (iii) localização da bolsa flagelar (local de saída do flagelo); e (iv) localização do flagelo livre, podemos diferenciar as diferentes formas evolutivas dos tripanosomatídeos.
No caso do Trypanosoma cruzi, a observação por microscopia óptica permite a identificação de 3 formas evolutivas bem definidas:
Tripomastigota: forma alongada (podendo se apresentar como formas finas e largas), com cinetoplasto com formato arredondado localizado na região posterior ao núcleo, flagelo emergindo da bolsa flagelar (não visível ao microscópio óptico) que se localiza lateralmente, na região posterior do parasito. O flagelo emerge e se adere ao longo do corpo do parasito, tornando-se livre na região anterior. Esta forma é altamente infectante, e pode ser encontrada: no inseto vetor (porção posterior do intestino, no reto); sangue e espaço intercelular dos hospedeiros vertebrados; culturas de células infectadas; cultivo axênico (metaciclogênese in vitro).
Figura 1 – Formas tripomastigotas sanguineas do Trypanosoma cruzi.
Figura 2 – Esfregaço sanguíneo de animal infectado.
Figura 3 – Formas tripomastigotas metacíclicas (metaciclogênese in vitro).
Amastigota: forma arredondada, com cinetoplasto em forma de barra ou bastão na região anterior ao núcleo, flagelo curto (não visível ao microscópio óptico) que emerge da bolsa flagelar. Esta forma pode ser encontrada: no interior de células em hospedeiros infectados bem como em cultivo axênico.
Figura 4 – Formas amastigotas intracelulares do Trypanosoma cruzi.
Figura 5 – Músculo cardíaco de camundongo infectado com T. cruzi. Formas amastigotas (seta preta).
Figura 6 – Célula altamente infectada com formas tripomastigotas e intermediárias.
Epimastigota: forma alongada, com cinetoplasto em forma de barra ou bastão localizado anteriormente ao núcleo. O flagelo emerge da bolsa flagelar com abertura lateral, e percorre aderido a parte do corpo do parasita, tornando-se livre na região anterior. Pode ser encontrado: no tubo digestivo do inseto vetor; cultivo axênico.
Figura 7 – Formas epimastigotas do Trypanosoma cruzi.
Microscopia Eletrônica
Estudo por microscopia eletrônica de varredura
Wanderley de Souza e Juliana Vidal
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Email: wsouza@biof.ufrj.br
As imagens obtidas no Microscópio Eletrônico de Varredura (MEV) nos fornece informação da superfície do espécime que está sendo estudado, gerando imagens com informações morfológicas importantes para estudos taxonômicos e ultraestruturais sobre os mais variados organismos, assim como da interação célula-célula. Como já foi citado, o Trypanosoma cruzi apresenta três estágios de desenvolvimento e cada um desses estágios apresenta um formato celular característico (Figura 1) amplamente estudado por microscopia óptica e por MEV.
Figura 1 – Epimastigota de Trypanosoma cruzi em microscopia eletrônica de varredura. Note o corpo celular alongado e fusiforme desta forma de desenvolvimento. A seta aponta a bolsa flagelar, região de saída do flagelo e as cabeças de seta apontam o flagelo livre.
Figura 2 – Forma tripomastigota (A) e amastigota (B) de Trypanosoma cruzi em microscopia eletrônica de varredura. Note que a forma tripomastigota (A) possui corpo celular alongado curvilíneo e apresenta flagelo livre. Já as formas amastigotas (B) apresentam formato arredondado ou oval e possuem flagelo bem reduzido que não emerge da bolsa flagelar.
Estudo por microscopia eletrônica de transmissão
Wanderley de Souza e Juliana Vidal
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, Universidade Federal do Rio de Janeiro
E-mail: wsouza@biof.ufrj.br
A microscopia eletrônica de transmissão tem sido amplamente usada em todas as áreas das ciências biológicas e biomédicas devido a sua capacidade de visualização das mais finas estruturas celulares possibilitando assim o estudo da organização celular. O Trypanosoma cruzi apresenta organelas que são típicas de organismos eucariotos como mitocôndria, peroxissomos e lisossomos e retículo endoplasmático, enquanto outras são peculiares. A Figura 1, mostra um esquema geral da forma epimastigota do T. cruzi e que servirá de base para uma descrição resumida dos principais componentes.
Figura 1 – Representação esquemática de epimastigota do T. cruzi.
Superfície celular
Quando analisada ao microscópio eletrônico de transmissão a superfície de todas as formas evolutivas do T. cruzi apresenta um discreto glicocálice com aproximadamente 7 nm de espessura. Este glicocálice é na realidade constituído pelos carboidratos que se projetam para o lado externo da célula e que estão associados às proteínas periféricas ou integrais, formando as glicoproteínas e aos lipídios, formando os glicolipídeos (Figura 2). O estudo da superfície usando a técnica do “fracture-flip” mostra que a superfície da forma epimastigota é bastante lisa, exceto na região mais especializada do citóstoma (Figura 3), quando comparada à superfície das formas amastigota e tripomastigotas (Figura 4) que apresentam, pela mesma técnica, uma superfície mais rugosa. As diferenças morfológicas entre a superfície das formas epimastigotas e tripomastigotas vista pela técnica do “fracture-flip” possivelmente refletem diferenças na dimensão das mucinas uma vez que as mucinas ancoradas por GPI em tripomastigotas são maiores do que as encontradas em epimastigotas.
Figura 2 – (A,B) Detalhe do glicocálice do T. cruzi por microscopia eletrônica de transmissão.
Figura 3 – Detalhe do citóstoma (Cy) do T. cruzi por criofratura.
Figura 4 – Detalhe do flagelo (F) do T. cruzi por criofratura.
Membrana plasmática
A membrana plasmática que envolve as células desempenha importante papel de separação entre o ambiente extracelular e o intracelular, atuando de uma forma altamente seletiva e específica no sentido de interligar funcionalmente estes dois compartimentos. Como em todas as células, a membrana plasmática do T. cruzi apresenta uma bicamada lipídica à qual, proteínas de diferente natureza encontram-se associadas em diferentes graus.
A presença de proteínas na membrana plasmática do T. cruzi tem sido analisada por técnicas estruturais e bioquímicas. Com a utilização de técnicas estruturais como criofratura foi possível mostrar que existem vários domínios na membrana plasmática que envolve o T. cruzi bem como nos outros tripanosomatídeos e que existem significativas diferenças entre as várias formas evolutivas. As imagens obtidas com a técnica da criofratura convencional mostram as proteínas integrais de membrana que aparecem ao microscópio eletrônico de transmissão na forma de pequenas partículas que foram denominadas partículas intramembranosas. Foi possível com esta técnica mostrar que a membrana que reveste as formas epimastigotas é muito mais rica em proteínas integrais do que a que reveste a forma amastigota e esta é maior que a que reveste a forma tripomastigota. Por outro lado, áreas especiais de membrana, que apresentam características diferentes daquela que reveste o corpo celular, foram encontradas (Figura 5). A membrana que reveste o flagelo é muito pobre em partículas intramembranosas, exceto na região da base do flagelo, onde existe uma aglomeração de partículas dando origem a uma estrutura denominada colar ciliar, e nas áreas de adesão do flagelo ao corpo celular, onde partículas assumem uma organização linear configurando uma área de junção do flagelo ao corpo celular. Esta junção envolve a organização de partículas intramembranosas encontradas na membrana flagelar nas formas epimastigotas (Figura 5) e tanto na membrana flagelar como na que reveste o corpo celular no caso da forma tripomastigota sugerindo uma adesão muito mais eficiente nesta última forma evolutiva. Até o momento as proteínas juncionais não foram caracterizadas. No entanto, uma série de proteínas de alto peso molecular e que são altamente antigênicas têm sido identificadas por métodos imunocitoquímicos na região de adesão do flagelo ao corpo celular que recebeu a denominação de zona de adesão flagelar ou FAZ (“flagellar adhesion zone”). Uma outra proteína bem caracterizada e que parece estar envolvida na adesão flagelo-corpo da forma epimastigota é uma glicoproteína de 72 kDa, conhecida como Gp 72. O “knock out” do gene que codifica esta proteína levou ao aparecimento de uma forma onde o flagelo não permanece associado ao corpo celular. Esta situação foi posteriormente revertida pela introdução do gene, via transfecção.
Figura 5 – (A-C) Detalhe do citóstoma e bolsa flagelar do T. cruzi por criofratura.
As formas epimastigotas e amastigotas de T. cruzi captam nutrientes por endocitose através de dois portais: a bolsa flagelar e complexo citóstoma-citofaringe. Ambos são invaginações de membrana que representam domínio de membrana especializado. O citóstoma consiste numa abertura na região anterior da superfície dos epimastigotas seguida de uma invaginação de membrana chamada citofaringe. Esta é acompanhada por sete microtúbulos, sendo que quatro destes originam-se próximo da bolsa flagelar e passam por baixo da borda pré-oral antes de chegar à citofaringe.
A bolsa flagelar de T. cruzi apresenta quatro microtúbulos especializados próximos ao corpúsculo basal (estrutura cilíndrica compostas por nove tripletes de microtúbulos presentes no citoplasma da célula com a função de direcionar a polimerização de tubulina para a formação do flagelo), assim como em T. brucei (Figura 6).
Figura 6: Detalhe da bolsa flagelar (BF) do T. cruzi por microscopia eletrônica de transmissão. Note a presença de quatro microtúbulos (seta) próximos a membrana da bolsa flagelar.
Desde o advento da microscopia eletrônica de transmissão, ocorreram avanços nas tecnologias dos microscópios, assim como na preparação de amostras para observação no MET. Uma delas foi a técnica chamada de tomografia de elétrons, de uma forma geral, a técnica é similar a tomografia computadorizada usada na área medica e gera imagens tridimensionais da célula de interesse.
Utilizando esta modalidade de microscopia, análises tridimensionais do complexo citóstoma-citofaringe de T. cruzi mostraram pela primeira vez que nas formas epimastigotas este complexo é circundado por um conjunto de sete microtúbulos e que se dispõem em formato de “calha” ao redor da citofaringe. Além disso, foi possível observar vesículas alinhadas próximas a região livre da citofaringe, o que é um indicativo de fusão ou brotamento de vesículas nesta invaginação (Figura 7).
Figura 7: A reconstrução tridimensional do complexo citóstoma-citofaringe da forma epimastigota de T.cruzi. O início dos microtúbulos do quarteto (azul) que seguem abaixo do domínio de membrana da borda preoral (roxo) e depois acompanham a invaginação da citofaringe (rosa). O triplete de microtúbulos (verde) se origina logo abaixo da abertura do citóstoma e também acompanham a citofaringe. Note a vesícula (amarela) na região desprovida de microtúbulos. Barra de escala: 200 nm.
Citoesqueleto
Os quatro principais componentes do citoesqueleto de células, (i) microtúbulos, (ii) filamentos espessos, (iii) filamentos intermediários
e (iv) microfilamentos, desempenham papel importante na manutenção da forma de células eucarióticas, movimentos da célula, movimentos intracelulares, controle da mobilidade de componentes da membrana, etc. Os estudos relativos ao citoesqueleto do T. cruzi ainda são incipientes. Praticamente nada se conhece sobre filamentos espessos e intermediários. Microfilamentos ainda não foram identificados, apesar de um grande número de estudos estruturais realizados. No entanto actina, o componente principal dos microfilamentos, já foi identificada em T. cruzi tanto por microscopia de imunofluorescência como em estudos bioquímicos. Já os microtúbulos têm sido estudados em mais detalhe e representam o principal componente do citoesqueleto dos tripanosomatídeos.
O T. cruzi possui diversas estruturas do citoesqueleto e estruturas relacionadas a ele que são essenciais para a biologia do protozoário, tais como a camada de microtúbulos subpeliculares (SPMT) que são microtúbulos estáveis responsáveis pelo formato celular característico dos tripanosomatídeos, pois formam uma espécie de arcabouço com arranjo helicoidal que fica localizada logo abaixo da membrana plasmática (Figura 6). Os microtúbulos subpeliculares são resistentes a baixas temperaturas e não sofrem despolimerização expressiva quando tratados com potentes desestabilizadores de microtúbulos de mamíferos, apesar de não serem insensíveis a estas drogas.Acredita-se que a membrana plasmática e os microtúbulos subpeliculares formem uma unidade estrutural e funcional, o periplasto, responsável pela manutenção do formato característico da célula e por todas as atividades que competem à interface entre o protozoário e o meio externo.
Na membrana plasmática, os microtúbulos subpeliculares estão ausentes somente na região de adesão do flagelo com o corpo celular, na bolsa flagelar e no citóstoma. Por este motivo, estes últimos são os únicos sítios por onde os nutrientes necessários para o metabolismo celular são captados pelo processo de endocitose.
Figura 6 – (A-C) Detalhe dos microtúbulos subpeliculares do T. cruzi.
Flagelo
Uma estrutura importante nos tripanosomatídeos é o flagelo, único, que emerge do corpo a partir de uma invaginação da membrana plasmática denominada bolsa flagelar. A extremidade da célula a partir da qual o flagelo torna-se livre do corpo é a extremidade anterior. Na forma amastigota o flagelo é muito curto, muitas vezes permanecendo no interior da bolsa flagelar, razão pelo qual às vezes não é visto no microscópio óptico, o que levou à criação do termo amastigota (sem flagelo) para erroneamente designar a forma intracelular multiplicativa do T. cruzi e de Leishmania.
O axonema do flagelo é formado pelo arranjo padrão de nove pares de microtúbulos periféricos e um par central. O flagelo encontra-se intimamente associado a um corpúsculo basal, estrutura firmemente associada ao citoplasma da célula e que se caracteriza por apresentar nove “triplets” periféricos de microtúbulos (Figura 7). Um fato interessante é que o corpúsculo basal dos tripanosomatídeos possui pequenos filamentos que o une ao cinetoplasto (região da mitocôndria onde está confinado o DNA mitocondrial) e mantém o cinetoplasto perpendicular ao eixo do flagelo
O flagelo dos tripanosomatídeos é mantido aderido ao corpo celular do protozoário pela FAZ- zona de adesão flagelar (Flagellar Attachment Zone). Alguns estudos utilizaram experimentos que possibilitam deletar genes e assim impedir a tradução de determinadas proteínas de interesse. Ao deletarem as proteínas da FAZ geraram parasitas com defeitos na morfogênese do flagelo e com endocitose deficiente. Um fato interessante é que o corpúsculo basal dos tripanosomatídeos possui pequenos filamentos que o une ao cinetoplasto (região da mitocôndria onde está confinado o DNA mitocondrial) e mantém o cinetoplasto perpendicular ao eixo do flagelo. A célula interfásica apresenta ainda um corpúsculo basal acessório, que se encontra conectado ao primeiro via estruturas filamentosas ainda não caracterizadas.
O lado do axonema o flagelo das formas epimastigota e tripomastigota apresenta uma estrutura complexa chamada de corpo paraxial ou estrutura paraflagelar (Figura 7). A PFR é uma estrutura presente exclusivamente em Cinetoplastídeos, exceto naqueles que possuem bactéria endossimbionte. A sua função mais bem descrita é a participação na mobilidade em cinetoplastídeos. Esta estrutura é formada por um complexo arranjo de filamentos de diferentes espessuras (25 e 70 nm) que se encontram conectados, via pontes especiais, aos pares de microtúbulos 4 e 7 do axonema. Estudos bioquímicos indicam a presença de duas proteínas majoritárias, de 69 e 80 kDa, e várias outras minoritárias, fazendo parte da estrutura paraxial. Mutantes de T. brucei e C. fasciculata que não expressam um gene que codifica uma das proteínas majoritárias da estrutura paraxial apresentam significativa diminuição de motilidade. A PFR tem relevância imunológica: recentemente, foi mostrado o mecanismo pelo qual uma das proteínas da paraflagelar é exposta pela via do MHC classe I, possibilitando que os linfócitos T reconheçam as células infectadas e controlem a infecção por T.cruzi.
Figura 7: Detalhe da ultraestrutura do flagelo do T. cruzi. Note a intima associação do axonema (Ax) com a estrutura paraflagelar (asterisco).
No caso das formas epimastigotas e tripomastigotas, parte do flagelo encontra-se aderida ao corpo celular, estabelecendo um tipo de junção que descrevemos antes. O fato de existir esta firme associação faz com que haja certo movimento do corpo quando ocorre o batimento flagelar, o que confere a impressão da existência de uma membrana ondulante. No entanto, não existe nos tripanosomatídeos uma estrutura que possa ser identificada como uma membrana ondulante, como ocorre, por exemplo, em tricomonadídeos.
É importante chamar atenção para o fato de que ao sair da bolsa flagelar a membrana do flagelo estabelece um contato bastante íntimo com a membrana que reveste a região de transição entre o corpo flagelar e a bolsa flagelar. Este contato é importante no sentido de estabelecer certa barreira de comunicação entre o meio e a bolsa flagelar.
O movimento do flagelo se dá graças a um processo de deslizamento entre os microtúbulos do axonema, com participação de uma proteína especial com atividade ATPásica, chamada de cinesina. De modo geral, o início de uma onda que se propaga ao longo do flagelo ocorre em uma das extremidades. Se a onda tem início na ponta do flagelo e se propaga em direção à base, a célula se movimenta para frente e dizemos que o flagelo puxa a célula. Quando a onda se inicia na base do flagelo e se propaga para a sua extremidade o movimento se dá no sentido oposto e dizemos que o flagelo empurra a célula. De modo geral, as células eucarióticas flageladas executam apenas um destes movimentos. Já os tripanosomatídeos, no entanto, apresentam a propriedade de apresentar ambos os movimentos, tornando-os extremamente eficientes no direcionamento do seu movimento.
Um papel importante do flagelo do T. cruzi é fazer com que ele se movimente. Este movimento é fundamental no final do ciclo intracelular, quando formas tripomastigotas são formadas e se movimentam intensamente no citoplasma da célula hospedeira. Esta movimentação é aparentemente responsável pelo rompimento da célula já alterada e liberação de formas tripomastigotas no espaço intercelular e que necessitam migrar para interagir com novas células ou atingir a corrente circulatória. Como veremos posteriormente, tanto no momento de contato da forma tripomastigota com uma nova célula do hospedeiro vertebrado, como durante o processo de interação de formas epimastigotas com a parede do tubo digestivo do hospedeiro invertebrado, o flagelo parece desempenhar um papel importante.
Cinetoplasto
A mitocôndria dos tripanosomatídeos é única e ramificada e se estende por todo o corpo celular. A classe destes protozoários foi nomeada Kinetoplastea tendo em vista uma das características típicas dos tripanosomatídeos, a presença do cinetoplasto. O cinetoplasto que é uma região específica da mitocôndria onde está concentrado o DNA mitocondrial, o kDNA. Este é formado por extensa rede de moléculas circulares que estão interligadas. Tal arranjo representa aproximadamente 30% do DNA total dos tripanosomatídeos. O cinetoplasto tem caráter basófilo, podendo ser facilmente observado ao microscópio óptico em preparações coradas pelo corante de Giemsa.
Esta região especial da mitocôndria se encontra localizada próxima ao corpúsculo basal, perpendicularmente ao eixo do flagelo e está fisicamente conectado por filamentos ao corpo basal. O formato do cinetoplasto, assim como a sua posição em relação ao núcleo sãos critérios utilizados para classificar as diferentes formas de desenvolvimento de T. cruzi, são elas: epimastigota, amastigota e tripomastigotas (Figura 8).
Figura 8: Diferentes formas de desenvolvimento de Trypanosoma cruzi por microscopia eletrônica de transmissão. A) Forma epimastigota, note o cinetoplasto (K) em formato de bastão localizado na região anterior lateral em relação ao núcleo (N); B) Forma amastigota cinetoplasto (K) em formato de bastão localizado na região anterior ao núcleo; C) Forma tripomastigota, apresenta o corpo fino, núcleo alongado e cinetoplasto arredondado localizado na região posterior.
Glicossomos
Desde os primeiros estudos sobre a ultraestrutura de tripanosomatídeos que se observou a presença de uma organela envolvida por uma membrana com uma espessura de 6 nm e uma matriz relativamente densa, que se enquadrava no conceito geral de microcorpos. Em T. cruzi, e na maioria dos tripanosomatídeos, tem forma esférica, com um diâmetro de cerca de 0,3 mm. Os microcorpos encontrados em várias células eucarióticas foram identificados como organelas envolvidas no desdobramento de água oxigenada, por ação da catalase, e na oxidação de aminoácidos, recebendo a designação de peroxisomos. Estudos citoquímicos não mostraram a presença de catalase nos microcorpos encontrados em T. cruzi. No entanto, outros tripanosomatídeos inferiores apresentaram reação positiva.
Como mencionado anteriormente a forma sanguínea do T. brucei praticamente não apresenta uma mitocôndria enquanto que apresenta uma grande quantidade de microcorpos. Este fato permitiu que Opperdoes e colaboradores isolassem esta organela e procedessem a sua caracterização bioquímica, mostrando que praticamente todas as enzimas da via glicolítica do protozoário estavam nela localizadas, razão pela qual denominou-a glicossomo. Logo a seguir estas observações foram confirmadas em vários tripanosomatídeos, inclusive o T. cruzi. Estudos citoquímicos mostraram que o glicossomo apresentava uma grande quantidade de proteínas básicas, o que foi explicado posteriormente com a observação de que as enzimas da via glicolítica localizadas na organela apresentam um ponto isoelétrico alcalino, diferindo-as daquelas encontradas na matriz citoplasmática de células eucarióticas. As proteínas glicossomais são sintetizadas em ribossomos citoplasmáticas e posteriormente transferidas, com a participação de um peptídeo sinal, para o interior dos glicossomos. Com base nos dados disponíveis podemos considerar o glicosssomo como um tipo especializado de peroxissomo existente em membros da ordem Kinetoplastida. Além de enzimas da vai glicolítica, esta organela possui outras enzimas que participam dos processos catabólicos e anabólicos. Várias dessas enzimas são cruciais para proliferação, viabilidade e virulência dos parasitos. Por este motivo, diversos inibidores destas enzimas têm sido desenvolvidos e se mostraram eficazes em inibir crescimento de T. cruzi. Diversos estudos mostraram que a integridade dos glicossomos e a devida compartimentalização das enzimas que compõem a matriz desta organela são cruciais para a viabilidade do parasito.
Retículo endoplasmático e complexo de Golgi
Perfis do retículo endoplasmático liso e rugoso podem ser encontrados por todo o corpo de todas as formas evolutivas do T. cruzi. Muitas vezes há uma maior concentração do retículo na região periférica, próximo aos microtúbulos subpeliculares (Figura 9). Ribossomos estão distribuídos por todo o citoplasma, muitas vezes organizados na forma de polissomos.
O complexo de Golgi está sempre presente, localizado entre o núcleo e o cinetoplasto. De modo geral, é formado por um sistema de 3 a 10 cisternas e vesículas na porção trans. Nas formas que apresentam um citóstoma-citofaringe (Figura 9B), como em epimastigotas e amastigotas, localiza-se próximo a esta estrutura. Estudos citoquímicos têm mostrado que o complexo de Golgi do T. cruzi participa do processo de glicosilação de glicoconjugados.
Figura 9: Detalhe do retículo endoplasmático (seta preta) e do Golgi (G) do T. cruzi. B) proximidade de complexo de Golgi com o complexo citóstoma citofaringe (seta branca).
Reservossomos
As formas epimastigotas e amastigotas do T. cruzi são capazes de ingerir macromoléculas do meio por via endocítica. Tal atividade é inexistente, ou muito baixa, na forma tripomastigota. A utilização de traçadores que podem ser observados no microscópio eletrônico de transmissão (quer diretamente, como é o caso de proteínas associadas a partículas de ouro coloidal, quer por detecção citoquímica, como é o caso da peroxidase) possibilitou estabelecer as vias de endocitose e o destino do material endocitado. Quando epimastigotas são incubados na presença de macromoléculas estas são interiorizadas por apenas duas regiões: a bolsa flagelar e o citóstoma-citofaringe. Nos casos em que a endocitose é mediada por receptor, como ocorre com a interiorização de LDL e transferrina, inicialmente a macromolécula se liga à superfície e só posteriormente é interiorizada via pequenas vesículas que se formam na bolsa flagelar e na porção final do citóstoma. As vesículas formadas migram para a região mediana e posterior da célula, muitas vezes formando estruturas tubulares, possivelmente resultantes da fusão das vesículas endocíticas iniciais. Posteriormente, fundem-se com estruturas maiores, localizadas preferencialmente na região posterior, dando origem a uma organela que contém inclusões eletron-transparentes que se destacam no interior de uma matriz. Estudos citoquímicos indicam que as inclusões correspondem a lipídeos, sendo que a matriz é constituída essencialmente por proteínas. Todas as macromoléculas ingeridas pela célula, independentemente da sua natureza, se concentram nesta organela, que é chamada de reservossomo. Nela também encontramos a cruzipaína, uma cisteína protease, a hidrolase lisossomal de maior atividade proteolítica no T. cruzi e nesta organela a enzima se encontra ativa. No lúmem dos reservossomos, também está concentrada a chagasina, um inibidor natural da cruzipaína, possivelmente fazendo a modulação de sua atividade O pH do interior do reservossomo é de cerca de 6,0, portanto, os reservossomos, assim como os lisossomos em células de mamíferos, são um sítio de acúmulo de hidrolases lisossomais
Estudos recentes mostraram que os tripomastigotas e amastigotas possuem organelas que também contém as mesmas enzimas lisossomais que os reservossomos. Experimentos diferenciados sugerem que as organelas dos tripomatigotas se originam diretamente dos reservossomos das formas epimastigotas, contendo inclusive material não digerível (particulas de ouro coloidal) endocitado previamente pelas formas epimastigotas, mostrando desta forma que as organelas contendo hidrolases lisossomais dos tripomastigotas são originadas diretamente dos reservossomos das formas epimastigotas.
Figura 10: Localização celular e ultraestrutura dos reservossomos (R) de T. cruzi.
Acidocalcissomos
Por muitos anos tem sido descrita a presença em T. cruzi, bem como em outros tripanosomatídeos, de estruturas citoplasmáticas delimitadas por uma unidade de membrana e que contém em seu interior um material eletrondenso que, nas preparações convencionais para microscopia eletrônica, ocupa apenas parte da estrutura. Esta estrutura tem sido chamada de grânulos de volutina, corpos densos, etc (Figura 11). O uso da microscopia eletrônica analítica indica a presença de vários elementos, sobretudo Ca2+ e P, na organela.
Estudos bioquímicos realizados em T. cruzi e T. brucei apontam no sentido de que existe uma organela citoplasmática que tem um pH ácido, sendo acidificado por ação de uma proton ATPase do tipo vacuolar e que também conta com uma Ca2+-ATPase. Esta estrutura foi chamada de acidocalcissomo. Estudos imunocitoquímicos usando anticorpos que reconhecem uma H+-ATPase vacuolar de Dictiostelium e a Ca2+-ATPase do T. cruzi mostram que o acidocalcissomo corresponde basicamente aos grânulos eletrondensos. Estudos por microscopia eletrônica mostram que as formas amastigotas do T. cruzi apresentam um número bem maior destas estruturas do que epimastigotas e tripomastigotas. Esta observação é de grande interesse uma vez que a forma amastigota vive em um ambiente intracelular onde normalmente a concentração de Ca2+ é baixa. Logo o parasita desenvolveu um mecanismo especial de acumulação de cálcio em uma estrutura especializada.
Figura 11: Detalhe dos acidocalcissomos do T. cruzi.
Vacúolo Contrátil
Os tripanosomatídeos apresentam um conjunto de túbulos e vesículas localizados próximo à bolsa flagelar e que formam uma estrutura conhecida como vacúolo contrátil. Ela está envolvida em processos de osmorregulação. No caso de epimastigotas de T. cruzi tem sido mostrado uma associação entre o vacúolo contrátil e os acidocalcissomos.
Figura 12: Detalhe do vacúolo contrátil (CV-azul) do T. cruzi em intima associação com a bolsa flagelar (FP-bege).
Núcleo
O núcleo do T. cruzi e de outros tripanosomatídeos apresenta uma organização estrutural similar ao de outras células eucarióticas. É relativamente pequeno, medindo cerca de 2,5 mm (Figura 13). Em epimastigotas e amastigotas o núcleo é ligeiramente esférico. Em tripomastigotas ele é alongado e localizado no centro da célula.
Figura 13: Detalhe do núcleo (N) do T. cruzi por criofratura.
A membrana nuclear apresenta poros nucleares típicos que são facilmente observados em réplicas de criofratura. Os poros apresentam um diâmetro de 80 nm, com cerca de 25 poros por micrômetro quadrado de superfície nuclear.
Em célula interfásica o material cromatínico aglomera-se em massas localizadas na periferia nuclear (Figura 14), imediatamente abaixo da membrana nuclear. Ocasionalmente as massas de cromatina projetam-se para a região mais central do núcleo. No início do processo de divisão celular ocorre uma dispersão da cromatina, conferindo ao núcleo um aspecto homogêneo. O nucléolo que é bem evidente se fragmenta e finalmente desaparece.
Figura 14: Detalhe do núcleo (N) do T. cruzi por microscopia eletrônica de transmissão. Nu-nuc, ht- heterocromatina, gc-Golgi, K-cinetoplasto.