Autor: Alberto Novaes
Departamento de Saúde Comunitária, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Ceará
Em tempos de limitada humanidade, ocultação da democracia e de grandes desencontros em nosso País, na América Latina e no mundo em geral, para além de “homenagem”, este texto traz uma pequena reflexão sobre como as pessoas podem, a partir de encontros e boas energias trocadas, dar sentidos à sua existência para uma caminhada consciente e cidadã.
Algumas pessoas traduzem-se explicitamente pelo seu compromisso ético e humano no próprio momento histórico do existir. Possuem um dom de se apresentarem como lideranças natas assumindo responsabilidades sociais fundamentais, em especial em um País da ainda atual “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre. Reconhecem que a negligência com um povo deve ser superada estruturalmente, pelo caminho político, de enfrentamento das desigualdades e iniquidades, a partir de maior participação social e empoderamento das pessoas que são afetadas no seu dia-a-dia por estas condições de vulnerabilidade, bem como a partir do enfrentamento do estigma. A doença de Chagas insere-se como bandeira de luta…
“Este é o lado perverso das lutas pelos excluídos e desamparados; a par do pequeno crédito e da enorme tarefa política a ser realizada, só as assumem visionários e idealistas, os Carlos Chagas.”
João Carlos Pinto Dias
Em sua sabedoria, conhecem e reverenciam o passado e todos(as) aqueles(as) que o construíram, não apenas nas conquistas, mas também nos possíveis equívocos. Escolas de vida, reconhecem as forças e movimentos dentro da sociedade em seu potencial transformador das tristes realidades… Suas vozes como meio de expressão de lutas e desafios, mas sobretudo, de legitimidade, conduzem a inúmeras possibilidades para os(as) que os ouvem, gerando estranhamentos e encantamentos. Prospectam o futuro com uma clareza, mas que ainda é imperceptível por muitos… Mesmo assim, seguem firmes seu caminho, iluminando-o. São “Realistas esperançosos”, como diria Ariano Suassuna… Assim compreendo o Prof. João Carlos Pinto Dias.
Tive uma grande oportunidade ao ingressar na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1990 de mergulhar no complexo setor saúde. Desde o início, a força da tradição institucional de ensino e pesquisa em nosso país apresentava-se para mim: a imponência da antiga “Universidade do Brasil” e tantas referências lado a lado, como por exemplo, os professores Carlos Chagas Filho e Clementino Fraga Filho. Conhecê-los abria espaços que representavam possibilidades e “encontros” impensáveis… Durante os estudos ao longo da graduação, geograficamente próximo à Fundação Oswaldo Cruz, atraíam-me as temáticas relacionadas à saúde pública, sobremaneira aquelas que se remetiam a doenças infecciosas e parasitárias e às desigualdades. Foram as primeiras oportunidades de conhecer alguns dos textos clássicos do Prof. João Carlos, revelando para mim sua forte base e atuação na clínica, mas também na pesquisa. Não tinha a real noção da dimensão da pessoa em si, mas já reconhecia nestes textos alguém também com extrema sensibilidade e comprometimento com uma causa nobre e legítima, com as pessoas mais vulneráveis e com o seu país.
Na Universidade Federal do Rio de Janeiro, avancei em minha formação, com experiências reveladoras nas monitorias e iniciação científica no Departamento de Medicina Preventiva, que me aproximaram ainda mais do campo da Saúde Coletiva e da prática laboratorial em doenças infecciosas. O Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva foi um importante espaço de minha (trans)formação como cidadão, juntamente com minha formação biomédica clássica. Para além do clínico e cientista, pude ter outras perspectivas mais concretas de quem era o Prof. João Carlos, inclusive como gestor no Ministério da Saúde e na própria Fundação Oswaldo Cruz. Sua capacidade de diálogo e de composição de redes tão amplas, para além do nosso País, em especial com os países irmãos na América Latina. Ouvia estórias de como sua capacidade de conciliação e mediação abriam oportunidades…
A residência médica em doenças infecciosas e parasitárias surgiu naturalmente em minha formação, bem ao lado dos debates sobre a saúde pública, e a vontade de trabalhar com a temática materializou-se com a monografia que versava sobre a coinfecção Trypanosoma cruzi e HIV/aids, considerando-se o contexto da formação médica no Rio de Janeiro. O livro “Clínica e terapêutica da doença de Chagas: uma abordagem prática para o clínico geral” editado pela Fiocruz em 1997, e organizado pelo Prof. João Carlos juntamente com o Prof. José Rodrigues Coura, tornou-se uma referência importante nesta etapa de minha formação. Algumas participações em eventos, como o Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, trouxeram naquele momento, pela primeira vez, a oportunidade de conhecer um pouco mais de perto esta figura notável. Atinar para quem de fato era a pessoa tão significativa que se apresentava ao longo de minha formação médica e humanística.
Já durante o mestrado em Saúde Coletiva, sob a excelência da orientação da Profa. Diana Maul de Carvalho, trabalhamos com a doença de Chagas de uma forma ampliada em um município no interior do Piauí, buscando a compreensão da organização social daquele espaço e da forte expressão da doença em sua fase crônica, a partir de um estudo clínico, epidemiológico e de história oral. Este trabalho somente foi possível a partir de uma grande parceria da Universidade Federal do Rio de Janeiro com a Escola Nacional de Saúde Pública, a Fundação Museu do Homem Americano e o Instituto Oswaldo Cruz. Ressalto aqui a saudosa amizade do Prof. Adauto José Gonçalves de Araújo, a quem devo, juntamente com a Profa. Diana Maul de Carvalho, minha primeira incursão como “responsável” por um trabalho de campo de tanta complexidade. A pessoa do Prof. João Carlos cada vez mais se materializava pelas parcerias e amizades dentro desta nova rede em que me encontrava, a ponto de quase ter sido concretizada a sua participação em minha banca de defesa do mestrado. Infelizmente não foi possível.
O primeiro “encontro” ocorreu, de fato, dentro do processo de construção do Primeiro Consenso Brasileiro em Doença de Chagas, publicado em 2005. Após a conclusão do mestrado, passei a atuar como membro do Comitê Nacional de Epidemiologia da antiga Coordenação Nacional de AIDS do Ministério da Saúde, o que oportunizou, por exemplo, a contribuição com as discussões que tinham como objetivo a inserção da doença de Chagas como definidora de aids para fins de vigilância epidemiológica, fato concretizado em 2004. Em meio à mudança do Rio de Janeiro para Fortaleza, Ceará, para atuar como professor junto ao Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, abriu-se naquele momento um novo espaço para minha inserção direta e sistemática nas atividades das Reuniões de Pesquisa Aplicada em Doença de Chagas. Era uma forma estratégica de potencializar as ações de vigilância e controle da doença de Chagas no Brasil a partir da aproximação com a equipe de aids que contava naquele momento, com uma grande estrutura e equipe. Acabei sendo um mediador deste processo… Um marco significativo foi constituição, juntamente com um grupo de pesquisadores com liderança na área, da “Rede Brasileira de Atenção e Estudos em Co-Infecção Trypanosoma cruzi e HIV”. A forte aproximação com a equipe técnica de doença de Chagas do Ministério da Saúde consolidou-se com o processo de construção do manual de coinfecção T. cruzi e HIV/aids e tornou-se duradoura.
Como consequência, passei a compor junto ao Ministério da Saúde a equipe de organização deste Consenso em 2005, trazendo um pouco da experiência acumulada nos processos vivenciados na aids. Estávamos eu e Prof. João Carlos, além de tantos ícones e referências em doença de Chagas no País como Alejandro Luquetti, Aluízio Prata, Anis Rassi, Antônio Carlos Silveira, Egler Chiari, Guilherme Rodrigues da Silva, Joffre Rezende, José Rodrigues Coura, Octavio Fernandes, Sonia Andrade, Vanize de Macedo, Wilson de Oliveira, Zilton Andrade, entre outros(as), debatendo juntos sobre diferentes aspectos da doença no País… Digna de nota é sua militância para o fortalecimento da atenção primária à saúde a partir do reconhecimento da singularidade deste espaço na rede de atenção à saúde e de sua relevância para o alcance da integralidade do cuidado e do controle de grandes endemias no Brasil. Enfim, encontro pleno, onde a cada fala ou intervenção do Prof. João Carlos, uma lição valiosa para mim e tantos(as) outros(as).
Ao longo do tempo, pude comprovar cada vez mais tudo o que lá no início de minha formação, nos primeiros “encontros”, emergiu a partir de leituras de textos de referência. A forma respeitosa, elegante e gentil no trato das pessoas, aliada à firmeza nas posições técnico-científicas, perpassaram os vários momentos de atuação conjunta desde então. Impressionante a fundamentação teórica e prática, a capacidade de mobilizar atenção, a singeleza expressiva no discurso, o entremear da história e a paixão no trato das palavras, muitas vezes compostas em poemas tão significativos. Suas memórias, histórias e estórias, os bons “causos”, uma leveza de ser que leva a sua missão com responsabilidade. Neste sentido, percebia o seu grande entusiasmo, por exemplo, em tornar as reuniões de pesquisa aplicada possíveis para sustentar um legado tão significativo pela representatividade que do evento até hoje. Olhar para trás toda a caminhada percorrida nas reuniões de Uberaba é perceber que, para uma doença negligenciada, a demarcação de espaços é um movimento de resistência e luta.
“Mais tarde, quando a historia tiver que lhe apontar os feitos e serviços extraordinários, sua obra benemérita há de impressionar as gerações porvindouras, tocando-lhes o espirito agradecido na suave emoção do gozo intellectual. Então já será o passado a attestar-se pelo seu brilho, e o passado é a verdade suprema…
Clementino Fraga
Compreendi que o seu trabalho está fortemente associado ao legado deixado por seu avô, Ezequiel Dias, e por seu pai, Emmanuel Dias, médicos e cientistas brilhantes que demarcaram seu espaço na história do enfrentamento da doença de Chagas no País, deixando belos exemplos. Daí certamente emerge a força interior tão contundente em alguns fragmentos de seus textos, ainda tão atuais:
“Como se esperaria, os interesses ligados aos negócios na saúde têm reagido ferozmente e obstaculizado todas as iniciativas de avanço político e social desta reforma. Acrescem aqui a tibieza e a complacência dos legislativos, em geral atrelados ao imediatismo e ao clientelismo, que se somam aos executivos, reféns das forças supranacionais de globalização, das dívidas externas e das lógicas de mercado… Teria Chagas previsto ou imaginado este quadro?”
João Carlos Pinto Dias
“Carlos Chagas, na sua grandeza, o sabia. Sabia-o também no seu silêncio e na sua dignidade, ao priorizar o prosseguimento das pesquisas e da construção de seu trabalho, em vez de lamuriar-se e perder tempo com invejosos, medíocres e oportunistas. E, em sua incrível maturidade, sabedor de que o processo social é dialético e transcorre por etapas, deixou-nos as bases desta luta e preparou seus seguidores para dar-lhe continuidade. Mirando a história, vê-se que isto tem sido conseguido, e que hoje já se descortina o horizonte do controle desta doença. Isso não se conseguirá, ainda, sem um grande esforço, pois faltam grandes áreas a sanear e outras onde a consolidação das ações requer persistência e prioridade. Vê-se também que o sonho inicial, por um país novo e digno, se ampliou na construção de um continente. Uma nova América Latina, tendo como um dos motes justamente a superação de um problema eminentemente seu, por meio de técnicos e cientistas eminentemente seus, forjados a partir do mesmo sonho. A requerer e a preservar sua grande e bela ciência. Em outras palavras, um Chagas vivo e renovado nas sucessivas gerações, uma história de bravos, um exemplo.”
João Carlos Pinto Dias
Nesta dialética anunciada do processo social, vislumbro-o como um seguidor da luta de Carlos Chagas, um bravo, que foi fortemente influenciado e tem sido iluminada referências às novas gerações. Seus textos sintetizam perfeitamente a sua mais completa tradução; suas falas traziam consigo a energia e a motivação de tantos outros encontros seus… com pessoas notáveis, como o Prof. Carlos Chagas Filho. O poema que se segue, retrata um pouco esta constatação e nos faz enxergá-lo com sua luz tão intensa diante de todos(as) nós…
Carlos Chagas Filho (como vejo e como todos me disseram) – João Carlos Pinto Dias
“Foi sempre um visionário
Amou as pessoas, a ciência e o mundo
Soube escutar e estar presente
Nunca desmereceu a sua herança
Nunca fez mal a ninguém
E deu a seu país e a sua gente muito,
muito mais do que se pode imaginar,
sem perder a suavidade e ternura”.
Com sua grande disponibilidade, tive a oportunidade de estar com ele trabalhando ao longo dos anos em diversas reuniões técnicas e científicas no país e no exterior, como também na construção de documentos referenciais significativos, a maioria para o Ministério da Saúde e Organização Pan-americana de Saúde. Entretanto, os projetos comuns que certamente mais nos aproximaram foram o longo processo de construção em estreita parceria do Segundo Consenso Brasileiro em Doença de Chagas, finalizado em 2015 e publicado em 2016 (em português e inglês), e a condução conjunta da coordenação da XXXI Reunião Anual de Pesquisa Aplicada em Doença de Chagas e XIX Reunião Anual de Pesquisa Aplicada em Leishmanioses, 2016. Esta coordenação foi uma missão desafiadora que recebi em um momento tão difícil do País que a alternativa foi realiza-la pela primeira vez fora de Uberaba, em Maceió, Alagoas. Esta mudança foi o caminho possível para sustentar este legado diante do contexto político e econômico, com uma reunião aninhada ao Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.
Mesmo diante das dificuldades, ousamos abrir juntos um espaço na reunião de pesquisa aplicada e no congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical para o Forum Social Brasileiro de Enfrentamento de Doenças Infecciosas e Negligenciadas. Emerge pela primeira vez na história dos congressos da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, em sua abertura, o espaço para o discurso do Movimento Social em Doença de Chagas, com a leitura da Carta de Maceió. Novamente, para este ano (2017) seguimos juntos novamente na missão, agora na construção da programação específica da doença de Chagas dentro da XXXII Reunião Anual de Pesquisa Aplicada em Doença de Chagas em Cuiabá, Mato Grosso. Uma nova edição do Forum Social Brasileiro ganha corpo e ampliando redes, movimentos e protagonismos…
Na última “reunião presencial” com o Dr. João Carlos em maio de 2017, em Belo Horizonte (já que seguimos trocando mensagens sobre projetos comuns em andamento), em meio às comemorações de doença de Chagas no Instituto René Rachou, estivemos juntos com ele eu, Dra. Andrea Silvestre de Sousa, Dra. Simone Petraglia Kropf e Dona Rosinha (sua eterna companheira). A força deste legítimo representante “dos Carlos Chagas” impressionava: preocupações com o país, com todos(as) os(as) companheiros(as), com os projetos em andamento, com a Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, com a Reunião de Pesquisa Aplicada, com novas possibilidades de objetos e temas para pesquisa e, sobretudo, com o reverenciar da história, em seus mínimos e mais delicados detalhes… A cada palavra, a responsabilidade sendo enaltecida para seguirmos todos, juntos, na missão. Um momento único, eternizado.
“Eterno, é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata…”
Carlos Drummond de Andrade [Fazendeiro do Ar (1954), p. 408]
Enfim, deixo esta breve e singela reflexão sobre os vários “encontros” com esta figura notável que tem ainda muito a nos iluminar.
Prof. João Carlos Pinto Dias, seguimos firmes juntos!
Um abraço fraterno, do aluno, companheiro de lutas e amigo de sempre.
Referências:
João Carlos Pinto Dias. Atualidade de Carlos Chagas. Os 90 anos do descobrimento e a importância social da doença de Chagas. Biblioteca Virtual Carlos Chagas. Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz/Prossiga, CNPq, 1998. Disponível em:
http://www.bvschagas.coc.fiocruz.br/lildbi/docsonline/get.php?id=511
João Carlos Pinto Dias. Problemas e possibilidades de participação comunitária no controle das grandes endemias no Brasil. Cad. Saúde Pública 1998;14(suppl.2):S19-S37.
João Carlos Pinto Dias. Carlos Chagas Filho e a doença de Chagas. Alguns traços à luz de confidências e inconfidências. Rev. Soc. Bras. Med. Trop. 2000;33(3):325-329.
João Carlos Pinto Dias. As engrenagens da vida do mestre Carlos Chagas. 20/10/2009. Disponível em: https://ufrj.br/noticia/2015/10/22/engrenagens-da-vida-do-mestre-carlos-chagas
João Carlos Pinto Dias. Chagas disease: still a challenge around the world. Rev. Soc. Bras. Med. Trop. 2015;48(4):367-379.
João Carlos Pinto Dias e colaboradores. II Consenso Brasileiro em Doença de Chagas, 2015. Epidemiol. Serv. Saúde, 2016;25(no.spe):7-86.
João Carlos Pinto Dias e colaboradores. 2nd Brazilian Consensus on Chagas Disease, 2015. Rev. Soc. Bras. Med. Trop., 2016;49(suppl.1):3-60.