Taxonomia Morfológica
Métodos Morfológicos
Wanderley de Souza e Juliana Vidal
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, Universidade Federal do Rio de Janeiro
E-mail: wsouza@biof.ufrj.br
O Trypanosoma cruzi pertence à ordem Kinetoplastida, família Trypanosomatidae e ao subgênero Schizotrypanum. Nesta família encontramos flagelados com 1 ou 2 flagelos que se originam de uma abertura, conhecida como bolsa flagelar, e normalmente possuem flagelo com estrutura adicional chamada paraflagelar (exceto naqueles tripanosomatídeos que possuem bactéria endossimbionte). Além disso, os exemplares desta família possuem uma estrutura conhecida como cinetoplasto, uma região que concentra o DNA mitocondrial. A posição do cinetoplasto com relação ao núcleo dita a forma de desenvolvimento que o protozoário se apresenta (Figura 1). A figura 1 é um desenho esquemático das formas de desenvolvimento que os tripanosomatídeos podem apresentar. Note também a direção da natação que cada forma realiza. Vale ressaltar que estes protozoários possuem uma mitocôndria única e ramificada por todo o corpo celular. A família Trypanosomatidae é composta em sua maioria por protozoários monoxênicos, que possuem apenas um hospedeiro invertebrado e por heteroxênicos, que alternam seu ciclo de vida entre dois hospedeiros. Entre os gêneros desta família estão: Bodonídeos, Paratrypanosoma, Trypanosoma, Blechomonas, Sergela, Wallacemonas, Hepertomonas, Phytomonas, Blastocrithidia, Leptomonas, Lotmaria, Leishmania, Crithidia, Angomonas, Strigomonas e Kentomonas. A informação foi retirada do artigo intitulado: “New Approaches to Systematics of Trypanosomatidae: Criteria for Taxonomic (Re)description.” Votýpka et al., 2015. (Figura 2).
Figura 1: Desenho esquemático das formas de desenvolvimento encontrados entre a família dos tripanosomatídeos. Note a posição do cinetoplasto em relação ao núcleo e a direção da natação que cada forma realiza.
Figura 2: Árvore filogenética da família Trypanosomatidae. Note as três subfamílias (letra azul) que são reconhecidas até o momento: Blechomonadinae, Leishmaniinae e Strigomonadinae. Em verde estão alocadas as espécies de Bodonídeos. Em amarelo estão as espécies de Tripanosomatídeos que são monoxênicas e em vermelho estão os Tripanosomatídeos heteroxênicos.
O gênero Trypanosoma é um dos mais importantes dentro da família Trypanosomatidae por incluir uma série de espécies causadoras de doenças humanas importantes, como o Trypanosoma cruzi, agente da doença de Chagas (ou Tripanossomíase americana), Trypanosoma rhodesiense e Trypanosoma gambiense, agentes da doença do sono, e de animais como é o caso do Trypanosoma brucei, Trypanosoma equiperdum e Trypanosoma equinum. Com base no comportamento do parasito nos seus hospedeiros, principalmente no vetor, o gênero Trypanosoma foi dividido em dois grupos. O primeiro, chamado de Stercoraria, inclui tripanosomas que se desenvolvem no tubo digestivo do vetor, progredindo no sentido da porção intestinal com liberação de formas infectantes pelas fezes. Aqui temos o T. cruzi e o T. lewisi. O segundo, chamado de Salivaria, inclui tripanosomas que se desenvolvem inicialmente no tubo digestivo e que posteriormente atravessam o epitélio digestivo e atingem as glândulas salivares onde podemos encontrar as formas infectantes que são inoculadas mecanicamente. Nestes grupos encontramos o T. brucei, T. congolense e T. rangeli. A grande complexidade no comportamento biológico dos tripanosomatídeos do gênero Trypanosoma levou à criação de alguns subgêneros. No subgênero Schizotrypanum estão alocados exemplares que passam por uma forma de desenvolvimento intracelular, formas amastigotas, que habitam e se multiplicam no interior de células hospedeiras. Neste mesmo grupo estão T. cruzi e também estão incluídos outros tripanosomas encontrados principalmente em morcegos do velho e do novo mundo, como é o caso do T. dionisii, T. vespertilionis, T. myoti, T. erneyi, T. herthameyeri. Todos os protozoários citados acima apresentam um ciclo de desenvolvimento em culturas axênicas e representam células morfologicamente semelhante ao T. cruzi.
Bioquímica e Molecular
Métodos Bioquímicos e Moleculares
Bianca Zingales
Instituto de Química, Universidade de São Paulo
E-mail: bszodnas@iq.usp.br
T. cruzi é representado por um conjunto de populações que circulam em hospedeiros mamíferos e insetos vetores. Estas populações, também denominadas isolados ou cepas, apresentam grande heterogeneidade de comportamento biológico como, por exemplo, diferentes graus de virulência para animais experimentais e humanos, variações na sensibilidade a drogas e tropismo tissular. A explicação para esta diversidade fenotípica reside no fato do T. cruzi ser um organismo diplóide que se multiplica predominantemente por divisão binária. Desta forma, o genoma de cada isolado evolui independentemente. É interessante notar que a doença de Chagas também apresenta uma diversidade de apresentações clínicas (formas indeterminada, cardíaca e digestiva). Assim, um grande desafio para a comunidade científica vem sendo identificar marcadores genéticos dos isolados capazes de reuní-los em grupos discretos, visando sua caracterização do ponto de vista epidemiológico e de patogenia.
Perfis eletroforéticos de isoenzimas
Os primeiros estudos de genética das populações de T. cruzi foram realizados pelo grupo de Michael Miles a partir do final da década de 70. Analisando o polimorfismo dos perfis eletroforéticos de seis enzimas os isolados foram reunidos em três grupos principais, denominados zimodemas. Os zimodemas Z1 e Z3 agrupavam predominantemente cepas do ciclo silvestre (gambás e triatomíneos) e o zimodema Z2, cepas do ciclo doméstico (humanos e mamíferos domésticos). Estas conclusões eram muito encorajadoras uma vez que os zimodemas podiam ser associados a diferentes padrões de transmissão epidemiológica. No entanto, a análise de um número maior de isoenzimas mostrou um aumento considerável do número de zimodemas que passou para 43. Desta forma, a análise dos padrões de isoenzimas reforçou o conceito da diversidade genética entre as cepas de T. cruzi, embora sugerindo a possibilidade de agrupamentos.
Marcadores genotípicos polimórficos
Outros marcadores genéticos começaram a ser buscados no genoma do parasito. Para a geração de marcadores genotípicos polimórficos foram empregadas técnicas distintas: (i) polimorfismo de tamanho de produtos de digestão do DNA (RFLP); (ii) amplificação aleatória do DNA polimórfico por PCR (RAPD) e (iii) impressões digitais do DNA (DNA fingerprint).
Historicamente, estes marcadores foram inicialmente pesquisados no genoma mitocondrial, representado por uma rede complexa de milhares de moléculas de DNA circular, denominada cinetoplasto (Figura 1A). Em T. cruzi, o DNA mitocondrial (kDNA) perfaz cerca de 20 a 25% do DNA total da célula e é composto por dois tipos de moléculas, os maxicírculos e os minicírculos. Os maxicírculos (20.000 pb; 50 cópias por célula) codificam para proteínas da cadeia de transporte de elétrons e RNA ribossômico mitocondrial. Os minicírculos (1.400 pb; 10.000 a 20.000 cópias por célula) codificam para RNAs pequenos (RNAs guia) que participam do processo de editoração dos transcritos do maxicírculo. O minicírculo contém quatro regiões de sequência conservada separadas por quatro regiões de sequência variável (Figura 1B). As últimas apresentam alta taxa de mutação, que confere diversidade entre os minicírculos dos isolados. Morel e colaboradores exploraram esta característica e estabeleceram o padrão de RFLP dos minicírculos de várias cepas de T. cruzi (Figura 1C). Os padrões obtidos (denominados esquizodemas) confirmaram sua elevada heterogeneidade.
A caracterização das cepas também foi explorada pela técnica de impressões digitais do DNA nuclear (Figura 1D); RAPD e análise de microsatélites. Em todos os casos a heterogeneidade genética entre as cepas foi observada. Salienta-se que os dados de RAPD podem ser utilizados para a construção de dendrogramas e que os microsatélites permitem determinar se um isolado de T. cruzi é uma população monoclonal ou multiclonal. As características do maxicírculo ditaram um ensaio parasitológico por PCR altamente sensível e específico.
Figura 1: (A) Micrografia eletrônica de epimastigotas, K= cinetoplasto; (B) Estrutura do minicírculo; (C) Perfis de digestão do minicírculo de isolados de T. cruzi com enzima de restrição e análise por eletroforense em gel. (D) Impressões digitais do DNA nuclear.
T. cruzi é dividido em dois grupos principais
Em contraposição à grande diversidade genética das cepas, evidenciada pelas técnicas acima mencionadas, a análise de sequências com uma taxa de evolução menor: os genes de RNA ribossômico – marcadores clássicos de evolução, e os genes de mini-exon – utilizados para a taxonomia de tripanossomatídios, mostraram um claro dimorfismo entre os isolados (Figura 2), determinando sua divisão em dois grupos. A análise de 50-60 loci por RAPD mostrou que os dois grupos correspondem a duas grandes linhagens filogenéticas. Foi verificado que as duas linhagens divergiram há muito tempo (entre 40 e 10 milhões de anos atrás). As duas linhagens foram confirmadas utilizando outras abordagens metodológicas e passaram a ser denominadas por consenso grupos T. cruzi I e T. cruzi II, em 1999.
Figura 2: Tipagem molecular de isolados de T. cruzi. Ensaios de PCR para o gene de rRNA 24Sα e para o espaçador intergênico do gene de mini-exon permitem dividir os isolados em dois grupos. PCR para 24Sα origina um produto de 110 pb para TcI e de 125 pb para TcII. PCR para mini-exon origina um produto de 350 pb para TcI e 300 pb para TcII. Iniciadores: setas em vermelho (Souto et al. 1996).
Posteriormente, com base na análise de outros marcadores genéticos foi proposta a sub-divisão do grupo T. cruzi II em cinco sub-grupos denominados II a – IIe. Foi também evidenciada a presença de isolados híbridos originados por trocas genéticas entre cepas parentais. É interessante salientar que o clone CL Brener, organismo de referência do projeto genoma de T. cruzi, é um isolado híbrido.
A distribuição epidemiológica dos grupos T. cruzi I e T. cruzi II foi investigada, concluindo-se que cepas do grupo T. cruzi I predominam no ciclo silvestre e cepas do grupo T. cruzi II predominam no ciclo doméstico da transmissão do parasito. Em países do Cone Sul, isolados de T. cruzi II são os principais responsáveis pelas manifestações clínicas da doença de Chagas (Figura 3).
Figura 3: Ciclos epidemiológicos do T. cruzi. Parasitos de T. cruzi I predominam nos reservatórios silvestres ao passo que parasitos T. cruzi II são responsáveis pela doença de Chagas no ciclo doméstico. A ligação entre os dois ciclos é feita por vetores que albergam T. cruzi II e que invadem os domicílios. (Zingales et al. 1998).
Dois pontos devem ser ressaltados: (i) que em países do norte da América do Sul e na América Central e México a doença de Chagas pode ser promovida por cepas do grupo T. cruzi I; e (ii) que em países do Cone Sul, isolados do grupo T. cruzi II induzem as diferentes apresentações clínicas da doença de Chagas. Desta forma, parece claro que a patogênese da doença de Chagas é resultante da inter-relação entre as características genéticas (e, portanto, biológicas) dos isolados do parasito e as características imunogenéticas do hospedeiro humano. No momento, estes marcadores genéticos estão sendo ativamente pesquisados, uma vez que têm um valor preditivo para a evolução da doença e, consequentemente, serão úteis para a adoção de procedimentos terapêuticos no âmbito do Sistema de Saúde.
Conclusões
A diversidade genética entre as cepas do T. cruzi está amplamente documentada. Esta característica levanta a questão se T. cruzi é uma única espécie ou um táxon artificial que inclui mais de uma espécie. Neste sentido, o gênero Leishmania, que apresenta uma diversidade genética semelhante a T. cruzi, possui um número elevado de espécies. A comunidade científica reuniu os isolados de T. cruzi em dois grupos principais que apresentam características epidemiológicas particulares. Os taxonomistas podem ser divididos em duas categorias: aqueles que exploram a diversidade entre as populações e aqueles que preferem reunir estas populações em blocos. Embora nem todos os taxonomistas possuam estas visões extremas, grande parte pende para uma ou outra direção em função do objetivo que têm em mente. Em nossa visão mais pragmática, a classificação das cepas em grupos discretos permitirá explorar melhor as características relacionadas ao prognóstico e tratamento da doença de Chagas.