Bioquímica

Metabolismo

Metabolismo do Trypanosoma cruzi

Giovanni Salvatore de Simone

Laboratório de Biologia Molecular, Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz

E-mail: dsimone@ioc.fiocruz.br

 

As bases bioquímicas da vida de cada célula evolvem o seu metabolismo que compreende tanto os processos catabólicos (degradação) quanto os anabólicos (síntese). A grade maioria, se não todos, os tripanossomatideos depedem de fontes de carbono que estão presentes em compartimentos específicos de seus hospedeiros para produzirem o seu metabolismo energético.

Enquanto as formas tripomastigotas de T. cruzi utilizam a glicose, que é abundante nos fluidos de seus hospedeiros vertebrados, as formas encontradas no inseto vetor obtêm sua energia preferencialmente dos aminoácidos L-prolina, L-aspartico e L-glutamico/glutamina, constituintes de hemolinfa e fluidos dos tecidos do vetor. Estes aminoácidos também participam do processo da diferenciação de epimastigotas (forma não infectiva e replicativa) para tripomastigotas (forma infectiva não replicativa) e em particular a L-prolina no ciclo de diferenciação intracelular (ocorre no hospedeiro mamífero). Este importante mecanismo catabólico produz cinco vezes mais equivalentes redutores do que o processo catabólico da glicose. Amastigotas e epimastigotas são as formas replicativas do parasito; o primeiro habita o citoplasma (adaptado a um metabolismo baseado em glicose) da célula hospedeira e conseqüentemente tem acesso a substratos de açúcares fosforilados e o segundo cresce normalmete em um meio rico em glicose-aminoácidos (fermentação aeróbica). Interessante é o fato de que o T. cruzi (porém não T. brucei e L. major) tem a capacidade de utilizar D-prolina, além de L-prolina (devido a expressão de uma prolil racemase), e L-histidina.

 

O Catabolismo da glicose e aminoácidos

O que conhecemos hoje das vias metabólicas provém de estudos realizados em  diversos parasitos e é aceito, após a finalisação do genoma de importantes kinetoplastideos, que o simples metabolismo energético da glicólise é comun a todos os tripanossomatideos, porém existem pequenas porém significativas diferenças entre os vários organismos.

 

A via glicolítica

A via glicolítica está organizada de forma que as primeiras sete enzimas de conversão da glicose a 3-fosfoglicerato estão organizadas no interior dos glicossomos (organelas peroxisomas-símile), enquanto as tres últimas enzimas da via encontram-se no citosol. Em condições aeróbicas, o piruvato é o único produto excretado e a síntese líquida de ATP ocorre no citosol, devido a reação catalizada pela piruvato quinase (PYK, etapa 13), enquanto o consumo (etapas 1 e 3) e produção (etapa 9) de ATP nos glicossomos é balanceado. Igualmente o balanço glicossomal redox é mantido, desde que, o NADH produzido pela gliceraldeído-3-fosfato desidrogenase (GAPDH, etapa 8) é reoxidado pelo desvio do glicerol 3-phosphate (GP, etapa 6 e 45) e a oxidase alternativa presente na mitocondria (etapa 47). Em contraste, o catabolismo da glicose em todos os outros tripanossomatídeos (ou formas adaptativas) analisados até a presente data envolve uma rede complexa de trocas metabólicas entre os glicossomos e a mitocôndria. Isto é exemplificado pelo modelo proposto para o estágio procíclico de T. brucei (Figura 1), que mostra as três pricipais diferenças comparadas com a forma sanguínea lenta do T. brucei. Primeiro, fosfoglicerato quinase (PGK, etapa 10) está localizado no citosol e, portanto, 3-fosfoglicerato é produzido no citosol. Segundo, os glicossomos contêm duas adicionais quinases que convertem fosfoenolpiruvato (PEP) em malato (PEPCK: PEP carboxiquinase, etapa 14) ou piruvato (piruvato fosfatodiquinase, etapa 15). Segundo, a etapa de fixação de CO2 catalisada pela PEPCK é a etapa inicial da via de bifurcação que leva a produção de succinato, o principal produto final excretado pela maioria dos tripanossomatideos. Terceiro, o piruvato esta localizado num ponto de cruzamento chave e pode ser direcionado para diversos produtos finais, como acetato, l-alanina, etanol e l-lactato.

O acetato é o principal produto final formado na mitocôndria de todos os tripanossomatideos e é excretado por processo de difusão simples através das membranas mitocondrial e citoplasmática. Além disso, algumas formas adaptativas, especialmente os estágios presentes no inseto, usam aminoácidos presente em seus hospedeiros para a produção de energia. Por outro lado, o estágio infectivo tripomastigota metacíclico do inseto do T. cruzi vive em um ambiente rico em lprolina, proveniente dos fluidos do inseto, justificando sua preferência por esta fonte de carbono. Contudo, preferencialmente consome glicose quando ambos glicose e aminoácidos estão disponíveis. Por outro lado, o papel essencial do metabolismo da l-prolina na produção energética do estágio tripomastigota metacíclico foi demonstrada em um experimento em que a depleção de glicose do meio, ocasionou um aumento do consumo de l-proline pelo T. cruzi. É intrigante a capacidade adaptativa destes parasitos em cultura, podendo desviar e adaptar suas vias metabólicas rapidamente em função da presença ou não de glicose no meio.

Na maioria dos tripanossomatídeos, o succinato é o principal produto final excretado do metabolismo da glicose, porém a via principal de sua produção tem sido assunto de intensa discussão. A controversia é devida a importância da fumarato redutase-NADH-dependente (FRD) na produção de succinato. Contudo, é aceito que o succinato é produzido no citoplasma a partir do PEP por uma via colateral. A enzima PEPCK glicossomal (etapa 14) e malato desidrogenase (etapa 16) convertem PEP em malato, que é convertido em fumarato pelas duas isoformas de fumarase. Fumarato é finalmete reduzido a succinato que é excretado pelas isoformas FRD glicosomal e mitocondrial (etapas 18 e 20).

O principal papel da via de produção de succinato (fermentação succinica) provavelmete é a manutenção do balanço redox glicosomal, fornecido pelas duas ezimas oxidoredutases glicossomal (etapas 16 e 18) que permitem a reoxidação do NADH produzido pela GAPDH na via glicolítica (etapa 8). Comparada com a fermentação lática, que envolve a lactate desidrogease (LDH), a fermentação succínica oferece a vantagem de ser necessário somente a metade do PEP produzido para manter o balanço NAD+/NADH.

O lactato tem sido detectado em diversos tripanossomatideos (ex. T. brucei e Leishmania spp) porem aparece freqüentemente como produto final minoritário. Este fato está associado com a informação da inexistência de seu gene no genoma de T. cruzi e que a atividade LDH é somente detectada em extratos de parasitos sugerindo que este produto final deve ser obtido através de outras vias metabólicas. Em Leishmania, este sistema é composto de duas enzimas, glioxalase I e glioxalase II, que covertem metilglioxal em d-lactate usando tripanotiona como cofator.

 

Gliconeogenese

A presença das enzimas glicogeogênicas nos glicossomas é bem entendida, uma vez que catalizam reações reversíveis da via glicolítica, em condições fisiológicas. Contudo, a existência de um mecanismo de controle que impeça a atividade descontrolada de ambos processos parece ser essencial, porém este mecanismo ainda não foi identificado.

 

Via das pentoses-fosfato (VPF)

A VPF, é uma via alternativa de oxidação de glicose na maioria das células eucarióticas e é uma possiilidade das células ajustarem suas necessidades de ATP, poder redutor e precursores nucleotídicos. Existem várias razoes que indicam que esta via distribui-se entre os glicossomos e citosol. A atividade da glicose-6-fosfato desidrogenase e 6-fosfato glicolactonase de T. brucei foi detectada entre os glicossomos (15%) e citosol (50%). Acredita-se que isto ocorra também com outras enzimas e em T. cruzi e Leishmania spp, pois várias outras seqüencias contendo PTS foram identificadas nos genomas (ex: ribulose-5-fosfoepimerase,ribose-5-fosfoisomerase, transcetolase).

O produto final ribose 5-fosfato é convertido a 5-ribosil-1-pirofosfato que seguirá para a síntese das bases nitrogenadas purinas e pirimidínicas (processos que ocorrem nos glicossomas). NADPH é uma coenzima produzida exclusivamente por esta via e é poder redutor para biossíntese de ácidos graxos. Além disso, nessa via são produzidos açúcares fosforilados de diferentes tamanhos, permitindo as células ajustarem suas necessidades através de trocas com a glicólise.

A VPF compreende uma etapa oxidativa inicial, em que a glicose-6-fosfato é transformada em ribose 5-fosfato e CO2 por duas oxidações e uma etapa oxidativa ocorre no sentido NADPNADPH. A esta é seguida a trasformação da ribulose-5-fosfato em ribose-5-fosfato pela ação de uma isomerase e a pentose após várias transformações gera açúcares fosforilados com variáveis números de átomos de carbono. Todas as etapas não-oxidativas são reversíveis permitindo interconverter os diferentes açúcares. A energia da oxidação da glicose é armazenada na molécula do NADPH e não como ATP, como na glicólise. O mecanismo de regulação da VPF não é ainda conhecido porém sabe-se que o fluxo é maior nas formas proliferativas.

A enzima sedoeptulose 1,7-bisfosfatase (S1,7BPase) é uma enzima que parece estar presente exclusivamente em cloroplastos e envolvida no ciclo de Calvin. Embora esta seqüência gênica tenha sido detectada em T. cruzi e outros tripanossomatideos (T. brucei e L. major), os genes que codificam a ribulose-1,5-bisfosfatase carboxilase (“rubisco”) e outras enzimas do ciclo não foram ainda encontrados. Por outro lado, como o ciclo de Calvin e a via das pentoses são processos intrinsecamente organizados e possuem enzimas comuns, foi postulado que em tripanossomatideos a S1,7BPase pode estar envolvida de uma maneira não usual, porém até a presente data não demonstrada, ou identificada para a via das pentoses. O substrato da S1,7BPase, em cloroplastos é formado pela ação de uma aldolase bifuncional que pode realizar a reação regular da via glicolítica, condensação do gliceraldeído 3-fosfato e diidroxiacetona fosfato a frutose 1,6-bisfosfato, e também a condensação da gliceraldeído 3-fosfato e eritrose 4-fosfato a S1,7BPase. A aldolase glicolítica pode realizar somente a reação no sentido reverso.

 

Regulação

A regulação da VPF ainda não é bem entendida entretanto um alto fluxo é indiscutivelmente necessário nas formas proliferativas. nas formas sanguíneas de T. brucei, o fluxo relativo através da VPF é negligenciável, como sugerido pela medida de piruvato produzido através da glicólise. Em células cultivadas a quantidade de piruvato produzido aproxima-se de duas moléculas por molécula de glicose consumida. Portanto, a interligação da glicólise com a VPF parecer ser pequena. Além disso, as enzimas da VPF possuem baixa atividade específica comparada às da via glicolítica. Contudo, as atividades específicas são consideravelmente altas em formas procíclicas de T. brucei e em promastigotas de Leishmania. Em geral, na maioria dos organismos eucarióticos, quando as trocas energéticas das células são altas, o fornecimento de glicose-6-fosfato pela VPF também é alta e depende da relação ATP/ADP e NADPH/NADP. As duas desidrogenases convertem NADP em NADPH e a enzima pode ser inibida competitivamete pelo NADPH. Quando a taxa ATP/ADP é baixa, a glicose é consumida pela glicólise produzindo ATP; a síntese de ácidos graxos não ocorre e a relação NADPH/NADP é alta, conseqüentemente inibindo a VPF. Entretanto, se a relação ATP/ADP é alta, a via glicolítica poderá ser inibida e a síntese de ácidos graxos ocorre, consumindo NADPH e desbloqueando as desidrogenases.

 

Importância do acetil-CoA como intermediário metabólico

Acetil-CoA é um metabólito intermediário chave do metabolismo de carboidratos, aminoácidos e ácidos graxos. O catabolismo das principais fontes de carbono (glicose, l-prolina e l-treonina) geram a formação de acetil-CoA. A maioria do piruvato produzido pela glicolítica é descarboxilado a acetil-CoA pelo complexo piruvato desidrogenase mitocondrial (PDH, etapa 25). As primeiras observações em diferentes tripanossomatideos sugeriram, que o acetil-CoA produzido pelo metabolismo da glicose deveria ser convertido em CO2 e acetato através do ciclo dos acidos tricarboxílicos (ATC). Entretanto, estudos recentes envolvendo o uso de tripanossomos procíclicos contendo o gene da aconitase nocauteado (etapa 30) revelaram que a maioria do  acetil-CoA é convertido em acetato excretado. É sabido que todas as formas adaptativas de tripanossomatideos analisados até o momento (exceto as formas sanguíneas de T. brucei) produzem acetato a partir de glicose, mostrando a importância desta via na produção de ATP. O acetato é produzido por duas enzimas: acetato:succinato CoA-transferase (ASCT, etapa 26) que transfere o CoA do acetil-CoA ao succinato, fornecendo acetato e succinil-CoA que é subseqüentemente reconvertido em succinato pela succinil-CoA sintetase (SCS, etapa 28) com concomitante produção de ATP.

Por outro lado, o acetil-CoA produzido pelas várias vias catabólicas pode ser usado para a biossíntese de lipídeos, da mesma forma a glicose e l-treonina  são substratos para a biosíntese de ácidos graxos, através da produção de acetil-CoA. Desde que este processo ocorre no interior da mitocôndria, e a síntese de ácidos graxos no citoplasma, o acetil-CoA e oxaloacetato são condensados a citrato pela citrato sintase (etapa 29) que é então trocado pelo malato citoplasmatico e convertido de novo em acetil-CoA e oxaloacetato pela citrato liase (etapa 42). Embora o genoma dos tripanossomatideos possua genes codificados da citrato-liase e citrato-liase, resultados experimentais sugerem a existência de outros possíveis sistemas de trocas que alimentam as vias anabólicas e a biossíntese de lipídeos.

 

Produção de ATP

Até recentemente, era aceito que a maioria dos tripanossomatídeos cultivados em um meio primário rico produziam ATP através da fosforilação oxidativa. Aléem disso, toda a engrenagem enzimática para um metabolismo oxidativo está presente na maioria das formas adaptativas. Isso inclui uma cadeia respiratória contendo citocromos funcionais capazes de gerar um gradiente de próton, e também  duas oxidases terminais (complexo IV-citocromo-oxidase sensível a cianeto e uma oxidase alterativa sensível a salicílico-hidroxâmico-etapa 47) .

Neste modelo, o gradiente de prótons gerados pela cadeia respiratória  (complexos I, III and IV) é usado pela F0F1-ATP sintetase (etapa 48), considerada o principal sítio de formação de ATP. Entretanto, o papel essencial da síntetase-F0F1-ATP na produção de energia, em condições de excesso de glicose, tem sido questionada recentemente. Além disso, um excesso de oligomicina, um inibidor específico da F0F1ATP sintetase não afeta a viabilidade das formas procíclicas e uma grande quantidade é necessária para matar as células em meio rico de glicose. Em contraste, quando cultivadas em meio sem glicose as mesmas células tornam-se 1000 vezes mais sensíveis a oligomicina, sugerindo que, em presença de glicose, as células procíclicas não são dependentes da fosforilação oxidativa para a produção de ATP. Em presença de glicose, quando as células desviam seu metabolismo para o catabolismo de aminoácidos, a fosforilação oxidativa torna-se essencial. Este fato implica também que, num meio rico em glicose, a maioria do ATP é produzido por fosforilação em nível de substrato, tendo como enzimas chaves a PGK citosólica (etapa 10), PYK (etapa 13) e a SCS mitocondrial (etapa 28). Por outro lado, foi estimado que a produção de ATP pela fosforilação em nível de substrato é pelo menos tres vezes maior em meio rico de glicose do que em meio sem glicose. Portanto, as recentes evidências experimentais apontam que a ATP-sintetase F0F1 mitocondrial possui um papel negligenciável em tripanossomos procíclicos cultivados em meio rico de glicose, e que a maioria da ATP é sintetizado por fosforilação em nível de substrato. Entretanto, como os tripanossomos regulam a fosforilação oxidativa é ainda uma questão a ser definida.

As células eucarióticas desenvolveram várias alternativas de controle da fosforilação oxidativa, incluindo a regulação pela disponibilidade de substrato como o oxigênio, ADP e equivalentes redutores. Estes últimos podem desempenhar um papel importante, desde que o catabolismo da L-prolina produza aproximadamente cinco vezes mais equivalentes redutores do que o catabolismo da glicose. O grau de acoplamento entre a respiração e fosforilação oxidativa pode também estar sob controle. Dois distintos processos regulatórios têm sido descritos em eucariotos: o sistema de dissipação do potencial eletroquímico de prótons representado pelo não acoplamento de proteínas e os sistemas de dissipação potencial redox representados por oxidases alternativas. Somente este último tem sido descrito em tripanossomatideos (etapa 47). A transferência de elétrons através da via mediada por citocromos (complexos III e IV) está acoplada a produção de ATP através da geração de um gradiente de prótons. Contrastando, o fluxo de elétrons através da ubiquinol pela via oxidase alternativa não está acoplada à produção de ATP. Este sistema ambígüo pode fornecer bastante flexibilidade para modular a geração de um gradiente de prótons e então estar envolvido na regulação da fosforilação oxidativa.

 

Porque a fermentação aeróbica é necessária?

Como mencionado anteriormente, quando os tripanossomatideos crescem em um meio rico (contendo alta concentração de glicose e aminoácidos) degradam glicose e aminoácidos em produtos finais parcialmente oxidados, pela fermentação aeróbica (fermentação na presença de oxigênio). Aparentemente, a fermentação aeróbica é a conseqüência da ausência de um efeito Pasteur (inibição da glicólise na presença de oxigênio), contudo o princípio básico da estratégia metabólica desenvolvida pelos parasitos não está clara. Numerosos organismos usam a fermentação na ausência de oxigênio, entretanto, os estágios presentes no inseto não estão acostumados a um crescimento contínuo em condições aeróbicas. Os epimastigotas de T. cruzi têm uma baixa capacidade de funcionar em anaerobiose e têm um reduzido cosumo de glicose durante a hipóxia ou estresse oxidativo, portanto, é dependente da respiração para proliferar. Indubitavelmente, a fermentação aeróbica não é nem uma preadaptação a, e nem a necessidade de um estilo de vida aeróbico em que o parasito pode necessitar desenvolver-se no inseto vetor. É também notável o desenvolvimento pelos insetos de um complexo de tubos interconectados (o sistema traqueal) que transportam oxigênio e outros gases através do corpo. Este sistema permite que as formas do inseto possam proliferar em condicões aeróbicas e não necessitem de uma adaptação longínqüa em ausência de oxigênio. Além disso, a alta concentração de glicose encontrada no sague (5 mM) favorece a produção de ATp pela via glicolítica. Sob estas condições o metabolismo oxidativo não é necessário e esta forma adaptativa down-regulates a expressão das enzimas do ciclo dos ATC e componentes da cadeia respiratória, apesar da presença do oxigênio que é importante para remover o excesso de equivalentes redutores pela oxidase alternativa. O estágio do inseto de T. brucei cresce em um ambiente natural rico em prolina, porém prefere glicose à prolina quando disponível um meio rico. Como proposto o excesso de glicose (6 mM) combinado com a falta de um efeito “Pasteur” permite um relativo alto fluxo glicolítico suficiente para gerar ATP por fosforilação em nível de substrato. Consequentemente, para down-regulate o metabolismo oxidativo dos tripanossomos procíclicos necessitam provavelmente da ATP-sintase F0F1, cadeia respiratória e ciclo dos ATC fucionais. Esta hipótese é consistente com a dramática diminuição da sensibilidade a oligomicina observada no meio rico em glicose comparado ao sem glicose, que é interpretado como down-regulation da fosforilação oxidativa. A down-regulation do consumo da l-prolina no meio rico em glucose fortalece esta opção, uma vez que o catabolismo da l-prolina pode estimular a fosforilação oxidativa pela geração de cinco vezes mais equivalentes redutores do que o catabolismo da glicose (equivalentes redutores produzidos pela glicólise são primeiramente reoxidados pela fermentação succinica). Este modelo foi baseado nos resultados de T. brucei procíclicos, contudo podem ser aplicados ao estágio epimastigota (do inseto) do T. cruzi, que tambem prefere glicose aos aminoácidos. O mecanismo deste efeito de repressão-glicose não é ainda conhecido.

 

Metabolismo de aminoácidos

Não existem evidencias de que ocorra a síntese endogena de L-arginina ou outros aminoácidos em T. cruzi. A L-arginina é obtida pelo parasito através de um trasportador de alta afinidade independente de Na+ e é acumulado em acidocalcinomas, organelas que servem como reservatório de aminoácidos básicos. Aparentemete, L-arginina é precursor do *NO (uma molécula de multi-propriedades), fosfoseria e possivelmete poliaminas.

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Ferro

O metabolismo do ferro em T. cruzi: o efeito do heme e suas possíveis implicações na biologia do parasito

 Marcia Cristina Paes

Laboratório de Interação de Tripanosomatídeos e Vetores, Departamento de Bioquímica- Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Email: marcia.paes.uerj@gmail.com

 

Natália Pereira de Almeida Nogueira

Laboratório de Interação de Tripanosomatídeos e Vetores, Departamento de Bioquímica- Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Email: natty_nogueira@yahoo.com.br

 

O ferro (Fe) é o quarto elemento mais abundante da crosta terrestre e crucial para a vida, já que quase todos os organismos vivos precisam de ferro para a realização de várias atividades biológicas. Além disso, o Fe atua como cofator de uma variedade de proteínas presentes em quase todos os organismos vivos, tanto procariotos quanto eucariotos. O Fe também é importante para vários processos biológicos, como a respiração celular, o transporte de oxigênio, o ciclo do ácido tricarboxílico, para a regulação gênica e para a síntese de DNA; no entanto, muito pouco se sabe sobre como ocorre a captação de ferro ou quais são as fontes de ferro utilizadas pelo Trypanosoma cruzi. Assim como um outro tripanossomatídeo, a Leishmania donovani, que se alimenta exclusivamente do ferro lábil, é possível que os amastigotas intracelulares de T. cruzi utilizem o ferro livre como nutriente, uma vez que o aumento do ferro livre disponível também leva ao aumento da infecção de macrófagos pelo T. cruzi. No entanto, dada ampla gama de vetores e células hospedeiras, é possível que o T. cruzi explore várias fontes de ferro diferentes, como por exemplo, a mioglobina ao infectar cardiomiócitos (uma fonte de ferro e heme); ou a transferrina (uma proteína ligadora de ferro presente no soro do hospedeiro vertebrado) já que as formas amastigotas apresentam um receptor específico de transferrina na bolsa flagelar. De fato, formas amastigotas de T. cruzi absorvem a transferrina ligada ao ferro quando cultivadas in vitro, mas o significado fisiológico desta observação ainda não está claro. Transferrina fica restrita ao lúmen da via endocítica, e não está presente no citosol da célula hospedeira, onde as formas amastigotas intracelulares se replicam. Portanto, o mecanismo pelo qual o T. cruzi adquire ferro durante sua fase de replicação no citosol da célula hospedeira permanece a ser respondido. É possivel que os parasitos dependam de um conjunto transitório de complexos de ferro redox ativos.Apesar de serem essenciais, as espécies reativas de oxigênio (ROS) são extremamente perigosas se não houver equilíbrio fisiológico. Curiosamente, aumentados níveis de ROS em macrófagos promovem o crescimento intracelular de amastigotas de T. cruzi, por meio de um mecanismo que pode envolver a liberação de ferro da ferritina, ou de proteínas com centros de ferro-enxofre. Os estudos também mostram que a proliferação do parasita nos macrófagos é inibida pelo esgotamento de ferro lábil, indicando uma regulação redox. O estímulo do crescimento do T. cruzi por ROS não se restringe aos macrófagos, uma vez que um ambiente oxidativo persistente pode ser gerado pelos parasitos em outros tipos celulares, como nos cardiomiócitos.O ambiente oxidativo é muito importante, especialmente para as formas epimastigotas que se multiplicam no interior do intestino do inseto vetor, e utilizam os nutrientes presentes no sangue, incluindo o heme ligado à hemoglobina dos glóbulos vermelhos. Após o inseto vetor ingeir o sangue do hospedeiro, no intestino médio posterior, a hemoglobina é digerida em aminoácidos, peptídeos e heme livre. O heme é uma molécula ubíquota geralmente associada às cadeias de polipepitídeos através de interações entre o átomo de ferro e resíduos de histidina ou metionina. As hemeproteínas e o heme estão envolvidas em funções básicas como a respiração celular (citocromos), o transporte de oxigênio (hemoglobina), o metabolismo energético, defesas antioxidantes (peroxidases), o crescimento celular, enzimas de desintoxicação de drogas (CYP450) e diferenciação celular, todas elas essenciais para a sobrevivência dos organismos. Ainda assim, os efeitos tóxicos da molécula de heme foram demonstrados em vários modelos, com base em sua natureza pró-oxidante ou através de sua ação detergente. Apesar de sua importancia, estudos bioquímicos demosntraram a ausência de uma via biossintética completa de heme em T. cruzi e mais tarde isso foi corroborado pelo seqüenciamento do genoma do parasito. Desta forma, esta ausência das enzimas indica que o T. cruzi precisa obter essa molécula dos hospedeiros. É sabido que as formas proliferativas capturam o heme e armazenam nos reservosomas para as formas infecciosas durante seu ciclo de vida. De fato, o processo de captação de heme em epimastigotes de T. cruzi é inibido por moléculas análogas ao heme e por inibidores de transportadores do tipo ABC e, ambas as formas proliferativas: amastigotas e epimastigotas captam a molécula de heme através de um transportador presente na bolsa flagelar, chamado TcHTE.

Surpreendentemente, apesar de seus efeitos potencialmente prejudiciais quando em elevadas concentrações, heme (mas não outras porfirinas) apresenta um efeito benéfico sobre as formas epimastigotas, promovendo a sua proliferação. A molécula de heme modula a atividade de um tipo incomum de factor 2 de iniciação da tradução (eIF2α quinase), a TcK2. O heme se liga especificamente ao domínio catalítico de TcK2, inibindo a sua atividade, o que promove a proliferação do parasita e na ausência de heme a TcK2 é ativada, bloqueando o crescimento celular e induzindo a diferenciação de epimastigotas em tripomastigotas metacíclicos.

A proliferação de epimastigotas induzida por heme também foi observada acompanhada de um aumento da concentração de ROS ao longo do tempo. Por outro lado, antioxidantes como o ácido úrico ou a glutationa reduzida (GSH) reverte a produção de ROS induzida pelo heme e também diminui a proliferação das formas epimastigotas. Além disso, apenas os inibidores específicos da Calmodulina Kinase II (CaMKII), são capazes de abolir a formação de ROS induzida pelo heme em epimastigotas levando ao comprometimento do crescimento do parasito, indicando que a presença da molécula de heme favorece um ambiente oxidativo transitório que estimula a proliferação de epimastigotas de T. cruzi através de um mecanismo mediado por uma via de sinalização de CaMKII. Consequentemente, a produção de ROS parece ser o mecanismo pelo qual o heme promove a proliferação de epimastigotas. De fato, o heme promove modificações na fisiologia mitocondrial do T. cruzi diminuindo seu consumo de oxigênio, aumentando a atividade de transferência de elétrons entre os complexos mitocondriais II e III e diminuindo a atividade da citocromo c oxidase (complexo IV). Portanto, o aumento de superóxido mitocondrial induzido por heme parece ser uma consequência da hiperpolarização da membrana interna mitocondrial no intuito de manter a proliferação e a sobrevivência das formas epimastigotas.

Embora o ROS induzido por heme desempenhe um papel fundamental na proliferação das formas epimastigotas, quando se trata da diferenciação dessas formas em tripomastigotas metacíclicas as espécies reativas de oxigênio apresentam o efeito contário prejudicando a metaciclogênese. Este efeito pode ser revertido pelos antioxidantes N-acetil cisteína (NAC) ou urato, tanto in vitro e in vivo, demonstrando a importância do estado redox para a biologia de T. cruzi. De fato, a quantificação da carga parasitária das porções anterior, posterior e no reto do intestino de triatomíneos infectados com T. cruzi mostra que os antioxidantes levam ao aumento da porcentagem de tripomastigotas. Isso indica que a indução de um ambiente redutor pela adição de antioxidantes, mimetizando a ampola retal do vetor, prejudica a proliferação de epimastigotas e estimula a metaciclogênese do T. cruzi in vivo.

Apesar da sua importância para a biologia do parasito, a molécula de heme deve ser rigorosamente regulada devido aos seus potenciais efeitos tóxicos. Os epimastigotas apresentam uma enzima Heme Oxygenase-like (HO) funcional que é responsável pelo catabolismo do heme e pela produção dos intermediários clássicos de sua degradação: o alfa-meso-hidroxiheme, o verdoheme e a biliverdina indicando mais uma vez que o heme não é tóxico para o T. cruzi , mas sim uma molécula fisiológica capaz de modular a biologia desse parasito.

Desta forma, o conhecimento gerado até agora nos mostra que a molécula de heme e o ferro representam uma interface chave entre o parasita e seu vetor e na infecção de vertebrados, sugerindo que essas interações podem determinar um grande avanço no conhecimento da transmissão da doença de Chagas.

 

 

 

 

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Macromoléculas

Carboidratos de superfície do Trypanosoma cruzi

Lúcia Previato

Programa de Biologia Celular Parasitologia, Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro

E-mail: luciamp@biof.ufrj.br

 

Os glicoconjugados da superfície de protozoários patogênicos contêm um domínio carboidrato com estruturas incomuns. Essas estruturas únicas sugerem uma relação específica entre os carboidratos e a virulência do parasito. O Trypanosoma cruzi é recoberto por uma glicocálice cujos componentes estão envolvidos em sua sobrevivência e infectividade. O glicoconjugado mais abundante do T. cruzi é uma família de moléculas semelhantes a mucinas, altamente O-aGlcNAc-glicosiladas denominadas sialoglicoproteínas. A incorporação de ácido siálico ao terminal b-galactopiranosil das O-glicanas é independente de CMP-ácido siálico e dependente da atividade da enzima trans-sialidase, também presente na superfície do T. cruzi. Os carboidratos O-aGlcNAc-ligados das sialoglicoproteínas contém novos tipos de glicosilação, podendo ser usados como protótipos para a síntese de compostos visando o desenvolvimento de vacinas contra a doença de Chagas; ou como inibidores específicos para a atividade de glicosiltransferases específicas envolvidas na biossíntese das O-glicanas no T. cruzi.

A glicobiologia é o estudo dos aspectos estruturais e funcionais de glicoconjugados presentes nas células. Os bio-oligômeros e biopolímeros que fazem parte do grupo dos glicoconjugados são diversos. Produtos naturais como glicoproteínas, glicolipídios, glicosaminoglicanos e âncoras glicosilfosfatidilinositol são moléculas contendo carboidratos, que usualmente recobrem a superfície de células, sendo o domínio carboidrato (ou oligossacarídio ou glicana) considerado um modulador ou mediador de mecanismos envolvidos em interações célula-célula e molécula-célula; e, também, em processos de interação entre parasitos e as células hospedeiras.

Diferente dos peptídeos e oligonucleotídeos, cujas estruturas são frequentemente lineares, os oligossacarídeos podem ser ramificados. Por não haver um controle genético direto, os glicoconjugados são quase sempre heterogêneos. E as técnicas de amplificação ou sistemas de expressão em bactérias não existem para os glicoconjugados. A extração de carboidratos de sistemas biológicos era, até recentemente, a única maneira de obter essas moléculas. Apesar da análise de carboidratos ter tido um grande desenvolvimento nas últimas décadas, devido à diversidade estrutural, metodologias analíticas diferentes são necessárias para caracterizar, por exemplo, a composição das várias classes de açúcares em uma determinada glicomolécula.

Bactérias patogênicas e protozoários parasitos expressam em sua superfície carboidratos que são distintos daqueles de seus hospedeiros. Tais carboidratos são considerados marcadores da superfície celular desses microrganismos, podendo ser a base para diagnósticos específicos, vacinas, quimioterapia e estudos imunopatológicos.

 

O T. cruzi e a doença de Chagas

O T. cruzi é o agente da tripanosomíase americana ou doença de Chagas que afeta milhões de indivíduos na América Latina. A principal via de transmissão da doença é a vetorial, pelas fezes de insetos triatomíneos infectados. T. cruzi é um protozoário da família Trypanosomatidae. Essa espécie forma um grupo geneticamente diverso com cepas que variam quanto ao tropismo tecidual, taxa de multiplicação, morfologia e glicoconjugados de superfície. As formas tripomastigotas podem invadir uma variedade de células de mamíferos in vivo e in vitro incluindo fibroblastos, células epiteliais, células endoteliais e neurônios, mostrando preferência por células do sistema fagocítico mononuclear e células musculares. O genoma do T. cruzi contém centenas de genes que codificam uma família de moléculas com e sem atividade enzimática (trans-sialidases ativa e inativa) e glicoproteínas aceptoras de ácido siálico, as sialoglicoproteínas (moléculas semelhantes a mucinas). Apesar dos mecanismos moleculares responsáveis pela invasão da célula do hospedeiro não terem sido completamente elucidados, é sugerido que essas moléculas funcionem como ligantes ou receptores, em alguma etapa do processo de infecção. Os estudos de proteínas de células de mamíferos que se ligam a ácido siálico, demonstram que estas proteínas estão envolvidas em diferentes processos biológicos, como adesões intercelulares; a interação com a superfície de microrganismos; e a sinalizações.

 

Os ácidos siálicos

Os ácidos siálicos são açúcares carboxilados com nove carbonos (Figura 1) podendo ser encontrados no terminal não redutor de cadeias oligossacarídicas, formando ligações a2,3; a2,6 com galactopiranose b-ligada (bGalp) ou N-acetilgalactosamina (GalNAc) ou formando polímeros de ácido siálico a2,8 ou a2,9 ligados. O ácido siálico mais comum é o ácido N-acetil-neuramínico (Neu5Ac) (Figura 1) sendo considerado o precursor dos outros membros da família como, por exemplo, do ácido N-glicolilneuramínico (Neu5Gc) (Figura 1) e do ácido 2-deoxi-2,3-didehidro-N-acetilneuramínico (Neu5Ac2en) (Figura 1). Geralmente, o ácido siálico é adicionado à unidade de bGalp através da atividade de sialiltransferases, presentes no Golgi, que utilizam a forma ativada do Neu5Ac, citidina monofosfato-Neu5Ac (CMP-Neu5Ac) como substrato doador.

Figura 1

 

 

Os ácidos siálicos presentes em glicoproteínas e glicolipídeos estão envolvidos em funções biológicas como nos processos de reconhecimento celular; na meia vida de células e proteínas plasmáticas; na modulação do sistema imune; e apoptose. Os ácidos siálicos são ligantes para moléculas de adesão como selectinas ou sialoadesinas, mediando adesão celular ou transdução de sinais, podendo ainda ter um papel importante na interação parasito-hospedeiro.

 

Sialidases

As sialidases ou neuraminidases são enzimas que catalisam a hidrólise de ácido siálico. Em mamíferos as sialidases modulam a distribuição de ácido siálico na superfície celular com efeitos no sistema imune; na meia vida de células circulantes e apoptose.

As sialidases são encontradas em muitos microrganismos patogênicos e muitas vezes estão associadas à virulência desses patógenos. O envolvimento de sialidases no processo patogênico é bem descrito para o vírus influenza. Em bactérias as sialidases estão envolvidas em diversas doenças como por exemplo na cólera onde a sialidase do Vibrio cholerae catalisa a conversão de gangliosídeos complexos para GM1 aumentando os receptores para a ligação da toxina da cólera.

 

A presença de ácido siálico no T. cruzi

Em T. cruzi o ácido siálico foi primeiramente descrito na superfície de formas epimastigotas através do uso de lectinas e métodos colorimétricos. A presença de ácido siálico em formas epimastigotas foi comprovada por cromatografias em camada delgada e gás-líquida e espectometria de massas. Ainda em 1983, Pereira e colaboradores observaram a capacidade de tripomastigotas liberarem Neu5Ac de eritrócitos humanos e de glicoproteínas plasmáticas, descrevendo uma atividade, estágio específica, neuraminidásica.

Em 1985, Previato e colaboradores caracterizaram, pela primeira vez, a capacidade de formas epimastigotas de incorporarem ácido siálico em moléculas de superfície do parasito, utilizando como substrato doador sialoglicoconjugados exógenos e sugeriram que a incorporação do ácido siálico às glicoproteínas da superfície do T. cruzi não se processava pela via convencional, onde o CMP-Neu5Ac é o substrato doador de ácido siálico. Esses resultados sugeriram, fortemente, que, em T. cruzi, a sialilação de glicoproteínas ocorria por uma nova rota metabólica, envolvendo reações de trans-glicosilação para ácido siálico. A capacidade de incorporação de ácido siálico em tripomastigotas foi demonstrada in vitro e in vivo. Nos estudos in vivo foi demonstrada a incorporação de Neu5Gc à superfície de formas tripomastigotas obtidas de camundongos infectados. Finalmente, a atividade trans-glicosilase para ácido siálico foi caracterizada como a enzima trans-sialidase (TS) responsável pela transferência de ácido siálico de substratos exógenos para glicoproteínas presentes na superfície do T. cruzi formando o epitopo Ssp-3.

Esses estudos demonstraram que o sítio catalítico estava localizado no domínio N-terminal de um antígeno denominado SAPA (shed acute phase antigen) presente no soro de pacientes infectados com T. cruzi. E que, o domínio C-terminal do antígeno SAPA continha unidades repetitivas de amino ácidos que geravam forte resposta imune durante a fase aguda da doença de Chagas.

 

Propriedades da TS

A TS catalisa, preferencialmente, a transferência de ácido siálico de sialomoléculas contendo Neu5Aca2,3Galpb1-x para unidades terminais de bGalp ligadas, formando, exclusivamente, ligações a2,3 (Figura 2). A TS de T. cruzi difere das sialiltransferases encontradas no Golgi que utilizam o CMP-Neu5Ac como substrato doador. Na ausência de b-galactosídeos (substrato aceptor) a TS catalisa a transferência do ácido siálico para moléculas de água uma reação de hidrólise (Figura 2) similar a neuraminidases de vírus, bactérias e mamíferos.

 

Figura 2

 

Em tripomastigotas a TS é ancorada por glicosilfosfatidil inositol (GPI) à membrana do parasito. A presença de âncora-GPI permite que a TS possa ser clivada e liberada da superfície do T. cruzi pela ação de uma fosfolipase C presente na superfície do parasito. Esses dados justificam a detecção do antígeno SAPA e da atividade sialidásica no soro de pacientes na fase aguda da doença de Chagas. A TS purificada de tripomastigotas forma agregados multiméricos que dão origem a proteínas de massa molecular aparente entre 120 a 220 kDa.

Em tripomastigotas, a TS é formada por dois domínios distintos. O domínio N-terminal que contém o sítio catalítico com aproximadamente 680 amino ácidos, resultando em uma massa molecular de aproximadamente 60 kDa. O domínio C-terminal é formado pela repetição de 12 amino ácidos D-S-S-A-H-(S/G)-T-P-S-T-P-(A/V) não necessários à atividade enzimática. A porção C-terminal da TS permite a oligomerização e a ligação da enzima à superfície do parasito e induz a produção de anticorpos direcionados ao antígeno SAPA. Os autores sugerem que o domínio C-terminal da TS atuaria numa primeira fase da infecção estabilizando a atividade TS no sangue, aumentando sua meia vida na circulação. Em uma segunda fase da infecção esses complexos induziriam a geração de anticorpos que inibiriam a enzima.

A TS encontrada em epimastigotas apresenta as mesmas especificidades e propriedades cinéticas que a enzima expressada em tripomastigotas com diferenças estruturais significativas. A enzima é monomérica, não apresenta a porção C-terminal e não é ancorada via GPI à superfície do parasito.

 

Especificidade dos substratos da TS

A TS apresenta atividade sobre uma grande variedade de moléculas aceptores como sacarídeos, glicolipídeos e glicoproteínas contendo unidade de bGalp no final não redutor da molécula. Unidades de galactose não são substratos aceptores para a enzima, mesmo sabendo-se que, quando em solução, o anômero bGal é o mais estável. No entanto o metil b-galactosídeo (Me-bGalp) é um bom substrato para a TS de T. cruzi. Em experimentos com a TS nos quais diferentes dissacarídeos foram utilizados como substratos aceptores a lactose (Galpb1,4Glc) e a N-acetillactosamina (Galpb1,4GlcNAc) são os melhores substratos. Oligossacarídeos contendo unidades terminais de a-Gal no final não redutor não são substratos para a TS. Os oligossacarídeos Galpb1,4(Fuca1,3)GlcNAc e Galpb1,3(Fuca1-4)GlcNAc não são reconhecidos pela enzima, consequentemente os ligantes de selectinas sialil Lewisx e sialil Lewisa não são substratos para a TS. A incorporação de uma unidade de Neu5Ac impede a incorporação de uma segunda unidade no oligossacarídeo aceptor, contendo dois sítios potenciais de sialilação.

A enzima TS reconhece unidades terminais de Neu5Ac e Neu5Gc a2,3 ligados e sintetiza unicamente ligações a2,3 sialosídicas. Nem o ácido siálico a2,6 ligados nem polímeros de ácido siálico a2,8, a2,9 ligados são substratos para a enzima. Os substratos sintéticos, ácido 4-metilumbeliferil-N-acetil neuramínico (4-MUNeu5Ac) e o ácido p-nitrofenil-N-acetil-a-neuramínico (pNPNeu5Ac) são excelentes substratos para a TS.

A presença dos C8 e C9 do grupamento glicerol do ácido siálico do substrato doador não influencia no reconhecimento pela TS, já que substratos doadores submetidos à oxidação branda por periodado e redução, mantiveram a atividade da enzima. Por outro lado, a acetilação nos C4, C7 e C8 inibiu a atividade trans-sialidásica, sugerindo que esses sejam sítios de contato do ácido siálico com a enzima.

A TS apresenta atividade enzimática em uma larga faixa de pH, sendo a atividade ótima em pH 7, decaindo cerca de 50% quando se aproxima de pH 5,5 ou 8,5. As demais sialidases apresentam atividade ótima em torno de pH 5,5. A reação de trans-glicosilação é máxima em torno de 13 oC com 50% de atividade próximo a 4 e 37 oC. No entanto a atividade sialidásica aumenta com a temperatura sendo a ação máxima em torno de 37 oC.

O composto Neu5Ac2en, potente inibidor de sialidases de vírus, bactérias e mamíferos não inibe a reação de transferência catalisada pela TS nem a ação sialidásica do sobrenadante de cultura de tripomastigotas. Compostos que inibem eficientemente a atividade catalítica da TS de T. cruzi ainda não foram descritos. A busca de possíveis inibidores tem sido alvo de pesquisa de diversos grupos com o objetivo de esclarecer o papel da TS na patogênese da doença de Chagas.

 

Os aceptores de ácido siálico na superfície do parasito

Os substratos da TS, aceptores de ácido siálico na superfície do T. cruzi, são glicoproteínas O-glicosiladas. Em tripomastigotas derivados de cultura de células, o ácido siálico é incorporado em glicoproteínas com massa molecular que varia entre 60-200 kDa. Essas moléculas são reconhecidas por anticorpo monoclonal, estágio específico, o Ssp3. Em tripomastigotas metacíclicos de cultura axênica e em formas epimastigotas as sialoglicoproteínas têm massa molecular entre 34-50 kDa e são GPI ancoradas à superfície do parasito. Os oligossacarídeos O-ligados de sialoglicoproteínas de epimastigotas apresentam grande diversidade estrutural entre as cepas de T. cruzi estudadas (Figura 3).

A primeira etapa da biossíntese das O-glicanas das sialoglicoproteínas de T. cruzi é catalisada por uma O-GlcNAc-polipeptidil transferase que adiciona N-acetilglucosamina (GlcNAc) na configuração a, exclusivamente, ao amino ácido treonina (Thr) da porção protéica da molécula. A Figura 3, mostra, que dependendo da cepa a sequência Thr-aGlcNAc pode ser alongada pela adição de unidades de Galp, galactofuranose (Galf) e Neu5Ac.

 

Figura 3

 

O papel do ácido siálico e da TS na interação do T. cruzi com o hospedeiro

Diversos trabalhos sugerem que a adesão e a penetração do T. cruzi na célula hospedeira são moduladas pela atividade sialidase/trans-sialidase. O controle da sialilação de glicoconjugados da superfície do parasito ou o controle da ligação do parasito à unidade de ácido siálico das proteínas da superfície das células hospedeiras seria responsável pela adesão e penetração. Alternativamente, a TS poderia sialilar ou desialilar glicoconjugados da célula do hospedeiro, facilitando a adesão e a penetração do parasito.

A importância do ácido siálico na superfície das células hospedeiras foi demonstrada por vários trabalhos independentes através experimentos com células de ovário de hamster deficientes de ácido siálico. Essas células são fracamente invadidas pelo T. cruzi quando comparadas com as células selvagens. Por outro lado, se os epitopos sialilados da superfície dos tripomastigotas estão envolvidos na invasão de células de mamíferos é um tema controverso. Alguns trabalhos demonstraram que a presença de ácido siálico do parasito aumentou a infecção; outros trabalhos sugerem que o ácido siálico na superfície do parasito não é necessário à invasão.

A primeira evidência de que as unidades de ácido siálico na superfície do parasito poderiam participar no processo de invasão foi demonstrada por Piras e colaboradores. A incubação de tripomastigotas em meio contendo sialoglicoproteínas, aumentou a penetração do T. cruzi em cultura de fibroblastos. Em outro artigo, utilizando anticorpos monoclonais que reconhecem epitopos sialilados na superfície do tripomastigota (Ssp3), Schenkman e colaboradores demonstraram que esses anticorpos eram capazes de inibir a adesão e a penetração do parasito na célula do hospedeiro.

Por outro lado, a ausência de ácido siálico na superfície do parasito, aumentando a invasão das células hospedeiras por tripomastigotas foi verificada por vários autores. De acordo com esses resultados, Yoshida e colaboradores demonstraram que a remoção do ácido siálico da superfície de tripomastigotas metacíclicos aumentou a interação do parasito com células HeLa.

O ácido siálico pode ainda estar envolvido no escape de T. cruzi do vacúolo fagossomal formado durante a invasão da célula do hospedeiro. A de-sialilação de sialoglicoproteínas da membrana do fagossoma pela TS poderia estar envolvida no escape do T. cruzi para o citoplasma. Mais recentemente, foi demonstrado que a maior expressão da TS em tripomastigotas de cultura de células favoreceu a liberação mais rápida dessas formas do parasito do vacúolo parasitóforo para o citoplasma da célula hospedeira e a sua subsequente diferenciação em amastigotas.

As interações, parasito-hospedeiro, mediadas por carboidratos podem ser do tipo lectínico. Lectinas participam como receptores ou ligantes para interações de parasitos com células hospedeiras, resultando no reconhecimento, adesão e invasão da célula hospedeira e imunoregulação permitindo a replicação do parasito e o estabelecimento da infecção. Recentemente, foi demonstrado que a TS enzimaticamente inativa é uma lectina que se liga a ácido siálico e co-estimula células T pela ligação à leucosialina (CD43). Foi demonstrado, ainda, que a forma inativa da TS, apresenta um sítio adicional de ligação para unidades de b-galactopiranosil. Inicialmente, a presença desse sítio adicional foi sugerida pela inibição do efeito co-mitogênico da enzima inativa sobre as células T, pela adição de N-acetillactosamina. Posteriormente, a interação da TS inativa com b-galactosídeos foi investigada por espectroscopia de ressonância magnética nuclear (RMN). Todeschini e colaboradores demonstraram de maneira direta, por RMN, que o domínio de reconhecimento para a unidade de b-galactosídeo só ocorria após a ligação da enzima com uma molécula contendo ácido siálico a2,3-ligado. A propriedade bivalente da TS inativa permite uma ligação cruzada entre glicanas que é considerada uma propriedade essencial para a transdução de sinais celulares, podendo exacerbar as reações imunopatológicas na doença de Chagas.

 

Avanços Recentes e Perspectivas

Durante muitos anos, a falta de conhecimento sobre metodologias para o estudo da glicobiologia dificultou a solução, por biologistas e pesquisadores da área médica, de vários problemas que envolviam carboidratos. Na década passada, tecnologias de sequenciamento e síntese, que são de uso comum ao estudo de ácidos nucléicos e proteínas, tornaram-se disponíveis ao estudo dos glicoconjugados. Atualmente, apesar das dificuldades ainda encontradas para a purificação de glicoconjugados, devido à microheterogeneidade e da ausência de procedimentos que permitam a amplificação dessas moléculas, a sequência primária dos carboidratos vem sendo feita sistematicamente.

A caracterização de oligossacarídeos específicos e a comparação de sua sequência com os oligossacarídeos sintéticos vêm permitindo estudos sobre as interações de glicanas a proteínas. O envolvimento de oligossacarídeos em vias de sinalização tem sido determinado, assim como a compreensão, a nível molecular da ligação carboidrato-proteína. Através cristalografia de raio-X e espectroscopia de ressonância magnética nuclear, as interações proteína-carboidrato vêm sendo determinadas e, consequentemente, um melhor conhecimento das funções biológicas dos carboidratos, trazendo avanços no diagnóstico e na terapia de determinadas doenças. Exemplos concretos já existem em infecções bacterianas e virais. O mesmo vem acontecendo com as doenças parasitárias como a malária, as leishmanioses e as tripanosomíases. Recentemente, resultados estruturais e imunobiológicos relevantes, obtidos com glicomoléculas purificadas de T. cruzi já tornou a glicobiologia uma área de estudo extremamente excitante com aplicabilidades no controle e na prevenção da doença de Chagas.

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Antígenos

José Franco da Silveira

Departamento de Microbiologia Imunobiologia e Parasitologia, Universidade Federal de São Paulo

E-mail: franco@ecb.epm.br

EM CONSTRUÇÃO.

 

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Proteoma

Análise proteômica do T. cruzi: mais de uma década de estudos

Rubem F. S. Menna-Barreto

Laboratório de Biologia Celular, Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, 21040-360, Brazil

Email: rubemb@ioc.fiocruz.br

 

Estudos descritivos

A proteômica de alta vazão tem se tornado especialmente atrativa para estudos em tripanosomatídeos uma vez que a presença de open reading frames em longas regiões policistrônicas nesses parasitos que leva à uma regulação da expressão gênica bem peculiar pós-transcricional. No T. cruzi, abordagens proteômicas tem sido empregadas para aumentar a acurácia das anotações do genoma assim como a descrição do papel fisiológico das proteínas do protozoário de diferentes estágios evolutivos como será revisado a seguir. Cronologicamente, o primeiro estudo com T. cruzi  usando proteômica foi realizado em 2004 por Paba e colaboradores, analisando todas os estagios do parasito derivados de cultura por eletroforese bidimensional (2-DE), seguido por espectrometria de massas fingerprinting (MALDI-TOF: matrix-assisted laser desorption/ionization–time of flight). Comparações entre as formas do parasito foram feitas, apontando abundância relativa de proteínas estágio-específicas. Como exemplo, proteínas da estrutura paraflagelar foram mais abundantes em tripomastigotas infectivos do que em formas proliferativas, sugerindo um possível papel biológico para esta estrutura durante a infecção e/ou disseminação do parasito. Na Figura 1, o perfil de 2-DE de epimastigotas pode ser observado. Um ano mais tarde, em 2005, a primeira análise shotgun foi realizada pelo grupo de Atwood. Nesse estudo, perfis proteômicos de epimastigotas, amastigotas, tripomastigotas de cultura e metacíclicos foram analisados. A abordagem  de cromatografia líquida seguida tandem espectrometria de massas (LC-MS/MS) permitiu a identificação de 2784 proteínas de T. cruzi, sendo apenas 30% identificadas em todos os quatro estágios. Surpreendentemente, chaperonas, além de proteínas ribosomais e de superfície (trans-sialidases e GP63) foram as mais abundantes. Diferenças importantes foram detectadas entre os estágios do protozoários e algumas hipóteses foram levantadas. Por exemplo, enzimas antioxidantes como a ascorbato peroxidase e triparredoxina peroxidase foram altamente expressas na forma infectiva, sugerindo que a exposição dessa forma ao burst oxidativo nos hospedeiros vertebrados. Entretanto, estas hipóteses ainda precisam ser confirmadas e validadas por técnicas ortogonais.

 

Figura 1. Perfil de 2-DE típico de epimastigotas de T. cruzi. Gel corado com azul de coomasie coloidal.

 

A diversidade genômica do T. cruzi encorajou uma avaliação proteômoca descritiva de diferentes DTUs. Analisando por 2-DE/MALDI-TOF epimastigotas das cepas CL Brener (organismo híbrido derivado das DTU I e DTU II) demonstrou algumas proteínas previamente descritas para esta forma do parasito, e também uma enzima da via das poliaminas, arginina quinase, identificada pela primeira vez. Todavia, apenas um estudo comparativo entre as DTUs foi realizado até o momento. Em 2010, perfis proteicos de epimastigotas dos isolados 3663 (DTU III) e 4167 (DTU IV) foram caracterizados por 2-DE/MALDI-TOF, e as comparações apontaram a possibilidade de correlação entre virulência e heterogeneidade da composição da superfície do parasito. Entretanto, estudos adicionais precisam ser realizados com diferentes DTUs para compreender características cruciais deste parasito na natureza.

A respeito da diversidade das condições ambientais durante o ciclo de vida do T. cruzi, o sucesso da infecção depende das adaptações do parasito frente aos diferentes hospedeiros, incluindo a variação térmica de 28°C (inseto) para 37°C (mamíferos). Nesse contexto, análises por 2-DE/MALDI-TOF foram realizadas em epimastigotas incubados de 28 a 42°C, sendo 24 proteínas apresentaram diferente abundância relativa ao controle (28°C) como as chaperonas e enzimas associadas com diferentes vias metabólicas. Interessantemente, o aumento da temperatura também levou à uma superexpressão de proteínas de superfície relacionadas a infectividade e virulência, correlacionando infecção e estresse.

Alguns anos mais tarde, em 2012, metaciclogênese foi reanalisadapor LC online com espectrometria de massas (LC-MS/MS). Este método acurado permitiu a quantificação de 3000 proteínas envolvidas no processo de diferenciação. A alta abundância de isoformas de trans-sialidases em formas metacíclicas, corrobora o aumento na infectividade, assim como a superexpressão de proteínas estruturais durante a diferenciação, resultando em grandes mudanças morfológicas no parasito.

Depois de uma década, o primeiro estudo proteômico de tripomastigotas sanguíneos foi publicado pelo nosso grupo, e 3716 proteínas da forma sanguínea foram identificadas, incluindo muitas proteínas de superfície, enzimas relacionadas a todo tipo de vias metabólicas e proteínas estruturais. Nesse estudo, os perfis proteômicos da forma sanguínea e de outros tripomastigotas (metacíclicos ou derivados de cultura) previamente analisados por proteômica foram comparados, mostrando 2202 proteínas presentes apenas na forma sanguínea, reforçando que as diferenças nos perfis possa ser decorrente da exposição dos parasitos ao sistema imune do hospedeiro. A avaliação descritiva dos tripomastigotas sanguíneos pode contribuir para a compreensão da patogênese da doença nos hospedeiro vertebrado. Na Figura 1, um sumário cronológico de todos os estudos proteômicos do T. cruzi pode ser observado.

 

Figura 2. Principais estudos proteômicos em T. cruzi (2004-2017).

 

Proteômica subcelular

A primeira avaliação proteômica de organelas isoladas do T. cruzi foi realizada em epimastigotas empregando LC-MS/MS visando a localização subcelular de proteínas. Depois do subfracionamento, 38 proteínas não previamente identificadas no proteoma desta forma do parasito foram detectadas, demonstrando que o uso de frações enriquecidas para análise por espectrometria de massas levou a identificação de novas proteínas. Alguns anos mais tarde, em 2009, o primeiro proteoma específico de uma organela de T. cruzi foi realizado. A avaliação do subproteoma de uma organela endocítica exclusiva de epimastigotas chamada reservossoma, bem descrita na seção organização estrutural (http://chagas.fiocruz.br/organizacao-estrutural/#eletronica). A análise por 2D-LC-MSMS apontou 709 proteínas identificadas desta organela, incluindo cruzipaína, serina carboxipeptidase, fosfatases ácidas, calpaínas, dentre outras, reforçando os reservosomas como a principal localização de hidrolases lisossomais nesta forma do parasito.

Em paralelo, a cromatografia líquida em duas dimensões (2D-LC) acoplada a espectrometria de massas tandem (MSMS) foi utilizada para analisar a fração de membrana solúvel a detergente de epimastigotas e tripomastigotas metacíclicos, sendo descritas 98 e 280 proteínas, respectivamente. Cerca de 60% das proteínas identificadas apresentaram modificações pós-traducionais como miristoilação, ancoras GPI, ou mesmo prenilação. Uma vez mais, a repertório de glicoproteínas de superfície da forma metacíclica foi vasto, sendo este achado relacionado aos processos de adesão/invasão. Em 2013, a tripsinização de proteínas de superfície biotiniladas seguida pela purificação por cormatografia de afinidade foi usada para avaliar o subproteoma da superfície de epimastigotas, levando a identificação de 2095 proteínas. O trabalho subsequente do mesmo grupo de pesquisa utilizando a mesma abordagem para caracterizar as formas do parasito presentes no vertebrado, detectou enzimas antioxidantes em tripomastigotas, sugerindo um papel como fator de virulência dessas moléculas. Por outro lado, numerosas enzimas relacionadas ao metabolismo de lipídeos e/ou carboidratos também foram detectadas em amastigotas, indicativo da interferênciaa no metabolismo do hospedeiro para a sua própria manutenção intracelular.

Em 2011, a composição proteica do complexo do vacúolo contrátil de epimastigotas foi investigada por eletroforese unidimensional e LC-MS/MS, e 220 proteínas foram identificadas como glicoproteínas, calpaínas, amastinas, proteínas relacionadas a transporte intracelular e próton pirofosfatases tipo vacuolar, um bem conhecido marcador de acidocalcissomas, confirmando uma vez mais a participação desta organela na regulação osmótica do parasito. Vale ressaltar ainda que 109 novas proteínas foram detectadas na forma do parasitopresente no inseto durante este estudo, reforçando subfracionamento como método crucial para o aumento do número de identificações.

Durante o seu ciclo de vida, o parasito se diferencia em formas proliferativas e não proliferativas, dependendo do hospedeiro e/ou condições ambientais, e este evento influencia diretamente o controle transcricional. Neste cenário, o mapeamento proteômico da cromatina de epimastigotas e tripomastigotas foi realizado em 2017. Surpreentemente, esta análise não evidenciou somente proteínas nucleares bem conhecidas, mas também enzimas da via de carboidratos e proteínas de citoesqueleto. Diferenças claras puderam ser observadas entre os estágios do parasito, especialmente relacionadas a abundância de histonas em tripomastigotas (variante H2B em particular) e a proteínas associadas à dinâmica do DNA como topoisomerases em epimastigotas.

 

Proteômica e modificações pós-translacionais

A primeira análise proteômica focada em modificações pós-traducionais (MPT) foi realizada em 2006 utizando a separação por LC-MS/MS em tripomastigotas de cultura depois do fracionamento subcelular. O isolamento de glicoproteínas foi realizado pela afinidade com lectina e a quantificação por marcação isotópica, levando a identificação de 29 glicoproteínas, especialmente proteínas de superfície associadas a mucinas (MASPs) mostrando MPT N-glicosilação. Em 2017, a abordagem de enriquecimento de glicopeptídeos associada a LC-MS/MS foi empregada e o glicoproteoma do parasito analisado mais profundamente tanto em tripomastigotas quanto em epimastigotas. 690 Glicoproteínas foram identificadas apresentando 1309 sítios de N-glicosilação, sendo 334 detectados somente em tripomastigotas (membros da família de mucinas e MASPs).

O fosfoproteoma de epimastigotas foi realizado utilizando o fracionamento de fosfopeptídeos/fosfoproteínas e análise LC-MS/MS. Em 2009, 119 proteínas foram identificadas com 237 fosfopeptídeos envolvidos em diferentes processos biológicos como diferenciação e motilidade. Em 2011, outro estudo apontou 753 fosfoproteínas com2572 sítios de fosforilação. Entretanto, o primeiro acesso ao perfil fosfoproteômico da forma do parasito presente no vertebrado foi somente realizada em 2014, avaliando o processo de amastigogênese, sendo evidenciadas 165 e 18 peptídeos mono- e multi-fosforilados, respectivamente.

Em 2016, a N-miristoilação foi investigada pela técnica de química click baseada em bead e LC-MS/MS. Esta abordagem levou a identificação de 56 proteínas, sendo 32 confirmadas por marcação estável isotópica (SILAC). Interessantemente, a grande maioria de proteínas miristoiladas no parasito foi hipotética ou não caracterizada; algumas proteínas participam da regulação de processos metabólicos como sinalização ou tráfego celulares.

Em  2017, a acetilação foi analisada em epimastigotas pela abordagem de LC-MS/MS, sendo 389 sítios de lisina acetilada e 235 proteínas detectadas. Esses dados sugerem fortemente a participação desta MPT na regulação de inúmeros processos metabólicos, sendo postulada que a atividade de enzimas cruciais envolvidas nas defesas oxidativas depende na acetilação. Esses achados apontam para o desenvolvimento de inibidores de deacetilases e/ou acetiltransferases específicos como alternativa para o tratamento da doença de Chagas.

A associação do subfracionamento com a análise de MPT por proteômica, o secretoma do T. cruzi foi avaliado por 2D-LC-MS/MS, alcançando 367 proteínas distintas, 102 e 22 exclusivas de epimastigotas e tripomastigotas metacíclicos, respectivamente. Essas proteínas estão envolvidad em eventos biológicos como a expressão gênica, ligação a DNA, respostas a estresse, e podem desempenhar papel essencial na patogênese da doença. Usando quantificação sem marcação, os autores demonstraram GP82 e a proteína ligadora de cálcio em fração enriquecida de vesículas. Complementarmente, a imunoprecipitação de exovesículas secretadas de tripomastigotas e amastigotas com soro de pacientes com doença de Chagas sequido pela subsequente análise por LC-MS/MS identificou 766 proteínas, sendo as trans-sialidades as mais proteínas imunorreativas mais recurrentes, juntamente com a proteína de superfície de amastigotas, regulatórias de complemento, poliubiquitina e transportadores. Em 2017, o secretoma de tripomastigotas foi revisitado, e a comparação de formas derivadas de cultura de diferentes DTUs foi realizado, identificando 591 proteínas secretadas como trans-sialidases, MASPs e GP63, como previamente demonstrado em formas metacíclicas.

 

Identificação proteômica de alvos moleculares de drogas e antígenos promissores

Como mencionado na seção de terapias (http://chagas.fiocruz.br/tratamento/#terapias), muitos esforços tem sido feitos visando desenvolver alternativas para o atual tratamento da doença de Chagas. Nesse sentido, alvos moleculares de drogas promissores podem ser identificados por técnicas de alta vazão como a proteômica. Entretanto, até o momento, somente três estudos proteômicos foram publicados nesta direção. Em 2008, a resistência de epimastigotas frente ao benzinidazol foi avaliada por 2-DE e MALDI-TOF/TOF, apontando 36 proteínas moduladas nos parasitos resistentes, incluindo peptidases, peroxiredoxina e ferro superóxido dismutase, dentre outras. Subsequentemente, a ligação direta de proteínas do parasito ao benznidazol foi analisada por proteômica química, demonstrando a interação de proteínas  da família da aldo-cetoredutase com a droga, provavelmente derivadas da sua redução pela nitroredutase tipo I, mas experimentos complementares precisam ser realizados para provar esta hipótese. Em 2010 e 2016, nosso grupo investigou o modo de ação de derivados de beta-lapachona em epimastigotas (2-DE e MALDI-TOF)  e tripomastigotas sanguíneos (2D-DIGE e LC-MS/MS, Figura 3), respectivamente. Ambos estudos apontaram a mitocôndria como o principal alvo desses compostos. O tratamento de epimastigotas e tripomastigotas também induziu uma siginificativa redução nos níveis de tubulina, especialmente o conteúdo de microtúbulos lábeis, comprometendo o tráfego intracelular e também a mitose em epimastigotas. Epimastigotas tratadps mostraram um aumento na abundância de tripanotiona sintetase, uma enzima envolvida nas defesas antioxidantes do parasito, entretanto esses derivados não apresentam potencial redox para justificar a produção de ROS direta. Esses mecanismos estão sob investigação no momento em nosso laboratório. Por outro lado, nossos dados indicam diferenças no mecanismo de ação desses derivados entre os estágios do protozoário, envolvendo uma grande variedade de vias e processos biológicos. Mais estudos proteômicos sobre drogas tripanocidas tem que ser realizados visando classificar os melhores alvos moleculares presentes nas formas clinicamente relevantes do parasito. Na Tabela 1 são comparados os processos biológicos envolvidos nos mecanismos de ação destas três drogas identificados por proteômica. A Figura 2 sumariza todos os alvos moleculares de drogas sugeridos por abordagens proteômicas.

 

Figura 3. Análise por DIGE de formas tripomastigotas sanguíneas tratadas com drogas: exemplos de baixa e alta abundância induzida pelo composto.

 

Tabela 1. Vias bioquímicas descritas nos estudos proteômicos de drogas contra T. cruzi

Via bioquímica Epimastigotas tratados com BZa Epimastigotas tratados com NIb Tripomastigotas tratados com NI
Metabolismo energético 14.3c 12.1 14.3
Metabolismo de poliaminas 2.4 3.0 3.6
Metabolismo oxidativo 11.9 18.2 3.6
Metabolismo de ácidos nucleicos e transcrição 14.3 0.0 3.6
Metabolismo de proteínas e biossíntese 14.3 42.4 32.1
Degradação de proteínas 11.9 6.1 3.6
Sinalização celular 2.4 3.0 3.6
Proteínas estruturais 7.1 12.1 25.0
Outras vias 21.4 3.0 10.7

aBZ: benznidazol

bNI: naphthoimidazóis

cPercentagem de proteínas diferenciais

 

 

 

Figura 4. Identificação proteômica dos alvos moleculares de drogas em T. cruzi e seus eventos biológicos correlatos.

 

A busca por novos antígenos para vacinas ou diagnóstico historicamente depende da discoberta de candidatos promissores especialmente presentes na superfície do parasito, ou mais recentemente no perfil secretado (por meio de vesículas ou solúvel). Como discutido anteriormente, estudos de glicoproteoma apontaram proteínas associadas a mucinas e outras glicoproteínas como antígenos interessantes. Análises de LC-MS/MS de tripomastigotas mostraram 45 epítopos imunogênicos e proteínas de superfície ancoradas por GPI envolvidas na patogênese, sendo depositadas em bancos de dados de antígenos para vacinas para serem validadas no futuro. Utilizando microarranjo de peptídeos de última geração para identificar afinidades de anticorpos do soro para triar antígenos, 457 proteínas do parasito foram reconhecidas por anticorpos dos pacientes, revelando 97 novos antigenos e 2031 epítopos lineares associados à doença. Este estudo pode vir a contribuir para a descoberta de novos marcadores peptídicos para doença de Chagas bem como na potencial descrição biomarcadores serológicos para diagnóstico.

 

 

 

 

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Parasito/Hospedeiro

Interação do Trypanosoma cruzi com seus hospedeiros

Sergio Schenkman

Departamento de Microbiologia Imunologia e Parasitologia, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo

E-mail: sschenkman@unifesp.br

 

O Trypanosoma cruzi, que é o protozoário flagelado causador da Doença de Chagas no homem, tem dois hospedeiros. O hospedeiro intermediário que é um mamífero, ou o próprio homem, e os hospedeiros definitivos que são insetos hemípteros que se alimentam de sangue (hematófagos) e pertencem à família Reduviidae, mais especificamente da subfamília Triatominae. Nestes hospedeiros o protozoário assume diferentes formas morfológicas.

O T. cruzi se reproduz no intestino médio dos insetos por fissão binária a cada 20-24 horas e para isto adquire nutrientes oriundos do sangue que foi sugado na alimentação do inseto. Nesta fase, o parasita assume uma forma denominada epimastigota, definida pela projeção do flagelo a partir da lateral de seu corpo unicelular. Ele está adaptado a sobreviver à ação de enzimas que digerem o sangue no intestino do inseto. Para isto tem na sua superfície uma cobertura resistente a proteases e glicosidases. Esta cobertura é formada por glicoproteínas e glicolipídeos peculiares ancorados à membrana através de fosfatidilinositol. As glicoproteínas se assemelham a mucinas pois é formada por um esqueleto de aminoácidos ricos em treoninas onde estão ligadas cadeias glicídicas. Tal estrutura glicídica impede a aproximação de enzimas proteolíticas. Os glicolipídeos se projetam da superfície para fora do parasita e servem também para retenção do parasita nas células intestinais do inseto.

No intestino do inseto a digestão do sangue gera radicais livres pois este é rico em hemoglobina que contém ferro, um metal altamente suscetível à oxidação. Para se proteger de danos produzidos por radicais livres o parasita tem um eficiente sistema de detoxificação através de enzimas óxido redutoras. As proteínas e hemoglobina produzidas são utilizadas como fonte de energia e de carbono pelo parasita através de seu elaborado sistema de endocitose e vacúolos digestivos. O excesso de nutrientes absorvidos é acumulado em vacúolos modificados denominados reservossomos.

Quando o alimento oriundo do repasto sanguíneo começa a se escassear no intestino do inseto, o conteúdo de proteínas presentes nos reservossomos diminui e o parasita inicia um programa de diferenciação celular denominado metaciclogênese que envolve mudanças morfológicas e metabólicas que leva aproximadamente 48 horas. Cessa a divisão celular, o volume celular diminui, e a posição de inserção do flagelo passa gradativamente ser da região posterior onde estavam os reservossomos para a região anterior. Ao final do processo o flagelo fica associado a todo o corpo do parasita, definindo a forma tripomastigota. Neste momento a síntese de proteínas é reduzida e somente novas proteínas necessárias para a interação com as células do hospedeiro mamífero passam a ser expressas. A proporção de mucinas da superfície aumenta e os glicolipídeos diminuem fazendo com que o parasita se dissocie da parede intestinal e migre para o intestino posterior e reto do inseto. Estas formas tripomastigotas são finalmente liberadas com as fezes e urina quando o inseto faz um novo repasto sanguíneo e podem assim entrar em contato com o hospedeiro intermediário.

Os tripomastigotas liberados na pele podem entrar em contato com mucosas do olho, boca, ferimentos ou serem ingeridas pelo mamífero. Nas mucosas, os tripomastigotas conseguem se deslocar como uma serpente devido a ligação do flagelo ao longo de todo corpo celular até encontrar a superfície de células do hospedeiro. O contato envolve a participação de outro tipo de glicoproteína de tamanho entre 80 e 90 kDa produzidas somente pelos tripomastigotas. Estas glicoproteínas aparentemente reconhecem diversos tipos de moléculas da superfície da célula do hospedeiro e de elementos da matriz extracelular e disparam sinais tanto no parasita como na célula hospedeira que culminam com a invasão celular. Os tripomastigotas liberam proteases, peptídeos e glicosidases que provocam também alterações na membrana, no citoesqueleto e nas organelas facilitando a deformação da membrana plasmática e formação de um vacúolo contendo o parasita no interior da célula hospedeira.

O vacúolo com o parasita é acidificado pela fusão com lisossomos da célula através de sua bomba de prótons. Os lisossomos também depositam no vacúolo parasitário glicoproteínas membranares, ricas em ácido siálico que é um carboidrato com carga negativa. Nos lisossomos o ácido siálico protege a membrana da autodigestão pelas enzimas lisossomais. O parasita então libera uma enzima denominada trans-sialidase que remove o ácido siálico das proteínas lisossomais, possibilitando juntamente com a acidificação que uma outra proteína do parasita denominada TcTox rompa a membrana do vacúolo e o parasita escape para o citosol da célula hospedeira.

O processo de invasão e a acidificação induzem no tripomastigota a dissolução do flagelo, por um mecanismo que envolve a ação de proteases endógenas. As formas resultantes e com flagelo diminuto são denominadas amastigotas que estando localizadas no citosol da célula hospedeira passam novamente a contar com um ambiente rico em nutrientes. Entre estes estão proteínas intracelulares que são hidrolisadas por proteases do parasita, fornecendo os aminoácidos para a sua proliferação. Por isso, inibidores destas proteases capazes de inibir o crescimento intracelular do parasita. A forma amastigota passa então a se dividir por fissão binária a aproximadamente cada 16 horas até ocupar todo o espaço celular excetuando o núcleo. Estas formas interagem intimamente entre si e/ou com estruturas ainda não identificadas uma vez que ocupam uma posição bem definida no citoplasma da célula hospedeira. Quando o parasita ocupa toda a célula ele começa a alongar o seu flagelo transformando-se em uma forma semelhante à forma epimastigota. Nesta fase os nutrientes do hospedeiro começam a ficar escassos sinalizando ao parasita para que novas proteínas de superfície que serão necessárias na sua fase extracelular  dentro do hospedeiro mamífero sejam sintetizadas. O parasita começa a expressar trans-sialidase e mucinas que irão recobrir a sua superfície. A trans-sialidase que é produzida por estas formas tem na região carboxi-terminal um número variável de repetições de 12 aminoácidos necessárias para a oligomerização da enzima e para estender a sua parte catalítica localizada no amino-terminal da membrana do parasita longe do parasita. Já as mucinas têm cadeias proteicas mais longas, porções glicídicas mas extensas e uma âncora de glicofosfatidilinostilol diferente daquela das mucinas encontradas nas formas dos insetos.

O parasita induz o rompimento da célula hospedeira por um mecanismo ainda não bem conhecido, e já diferenciado em forma tripomastigota escapa para o meio extracelular. A grande quantidade de trans-sialidase presente na superfície dos parasitas captura o ácido siálico presente em proteínas do meio extracelular que são transferidos para as galactoses terminais das mucinas do parasita. Esta sialilação do parasita ajuda a proteger o parasita recém eclodido da ação de anticorpos naturais, fazendo com que este consiga atingir a corrente sanguínea e disseminar a infecção. A trans-sialidase também é fator importante na passagem do parasita através das células endoteliais, e como ela é liberada na corrente sanguínea atua na modulação do sistema imune do hospedeiro através da indução de apoptose em diversos tecidos. Ao mesmo tempo a porção lipídica das mucinas produzidas por estes tripomastigotas, e da grande quantidade de proteases liberadas pelos parasitas circulantes, atuam em receptores diversos modulando a resposta imune do hospedeiro.

Os tripomastigotas circulantes passam em seguida a expressar diversas proteínas da família de glicoproteínas de 80-90 kDa como os tripomastigotas de inseto. Estas também interagem com proteínas da matriz extracelular como colágeno, fibronectina e laminina, e com receptores de superfície celular como citoqueratinas, promovendo a retenção e re-invasão de células de forma análoga à descrita anteriormente. Diferentemente das formas de inseto, estes tripomastigotas liberados das células expressam grandes quantidades de trans-sialidase e rapidamente escapam do vacúolo parasitóforo, o que pode garantir a sobrevivência do parasita em um hospedeiro já imuno-estimulado.

Quando após alguns ciclos de infecção – em torno de 7 a 30 dias – o número de parasitas circulantes aumenta o hospedeiro passa a desenvolver uma robusta resposta imune e a infecção passa a ser controlada. No entanto, alguns parasitas parecem permanecer, contribuindo com a patologia da doença de Chagas. O ciclo de vida se completa quando o sangue de um hospedeiro mamífero infectado é novamente sugado pelo inseto vetor.

 

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